segunda-feira, 1 de outubro de 2012

UMA REFLEXÃO

 



 Sobre a vivência em contraposição à ideia, os estudiosos da filosofia gostam de citar o pensamento de Bergson, como, por exemplo, o faz Manuel Garcia Morente nos seus “Fundamentos de Filosofia – Lições Preliminares” – Editora Mestre Jou, São Paulo, 1930 – tradução e prólogo de Guilhermo de la Cruz Coronado (Catedrático da Universidade do Paraná). Edição antiga, texto porém atualíssimo, bastaria resumir de Bergson a frase sublinhada por Garcia Morente: “(...) Entre vinte minutos de passeio a pé por uma rua de Paris e a mais vasta e minuciosa coleção de fotografias, há um abismo.” 

 Com efeito, assim informa Bergson para diferenciar ideia de vivência, e é por esta ótica que reflito a respeito das duas opiniões gravadas no Jornal O GLOBO de 1º de outubro de 2012 (em destaque): de um lado a ideia do jornal e do outro a vivência de um legítimo representante de comunidade favelada. Impressiona a clarividência deste em comparação à dubiedade e ao reducionismo do jornal. Não que o jornal por isso deixe de ter alguma razão, ressalvando, porém, que as UPPs não passam de velha tática de conquista e ocupação do “terreno inimigo”. Mas tem funcionado, como nos chegam as ideias dos interessados em promover positivamente as comunidades “pacificadas”, com ressalva de alguns problemas pontuais tão graves que não puderam ser ocultos debaixo do tapete, como os assassinatos de PMs novatos e de inocentes favelados por traficantes que permaneceram ou retornaram às comunidades conquistadas e ocupadas com policiamento permanente. 

Sabemos que a dinâmica do jornalismo faz com que uma notícia empurre a outra, anterior, para a peixaria, exceto quando interessa à imprensa promover o que chamam de “suíte”. É o caso das UPPs, que não saem das páginas, numa demonstração de apoio à PMERJ jamais antes ocorrida. Tudo bem, não vamos aqui discutir o óbvio, as cartas foram adrede marcadas, cada UPPs teve seu local escolhido em razão de fatores sociais e econômicos exaustivamente explicados. Mas que há uma “caixa-preta” nessa história não se há de negar, em especial quanto à movimentação frenética do efetivo, de tal modo que um PM morador em Maricá e lotado no 12º BPM poderá dormir nesta condição e acordar transferido para a Rocinha ou para o Complexo do Alemão ou outra qualquer UPPs cujo efetivo se demonstre insuficiente ante uma nova realidade. Para tanto, basta a imposição do manu militari e que “se vire nos trinta” o agraciado com a punição geográfica, curiosamente por ser novo e ter ficha limpa, razões mais que suficientes para premiá-lo em vez de puni-lo. 

E assim o tempo escorre e o atual governo saboreia os louros de uma ação operacional da PMERJ privilegiadíssima e que muitos lauréis conquistarão na Copa do Mundo e nas Olimpíadas... Ah, não sei como se dará o final dessa história de sucesso na superfície e obscuridade nas profundezas de uma realidade intramuros dos quartéis militares estaduais e no íntimo das circunscrições faveladas que receberam o privilégio da pacificação. Pois a verdade disso tudo talvez esteja na opinião do senhor Ricardo Crô (Secretário da Associação de Moradores da Comunidade Coreia-Trapicheiro), síntese fatal que por mérito de jornalismo isento o jornal O GLOBO corajosamente destacou na contramão do seu manifesto otimismo com as UPPs. 

Nessas condições, entre uma opinião e outra, fico no meio... Já que “militar é superior ao tempo” e ordem militar não se discute, cumpre-se. E não pode ser considerada absurda, pois o PM, antes de ser chefe de família e ter o benefício da lotação perto do lar, é um cumpridor de ordens e o quartel lhe oferece alojamento e comida, claro que com ele se virando para se manter com o uniforme impecável sob pena de punição. Mas com relação à sua abrupta transferência de um local ideal ao seu convívio familiar e social para outro que lhe pode significar o inferno, quanto a isso ele não tem o direito de chiar, está tudo militarmente estabelecido e fim de conversa. 

O problema, todavia, reside no seu estado de espírito, nos seus anseios e valores atropelados em vista de interesses que lhe passam ao largo. Manter-se motivado desta maneira não parece simples. Daí a motivação dele resumir-se, como se dizia antigamente, ao “pau-e-corda”, ou seja, o policial militar era literalmente laçado e açoitado para vestir farda e até ser mandado à Guerra do Paraguai, recebendo o prêmio post mortem da lembrança institucional heroica, da qual ele apenas se inseriu como número. É o que ainda hoje chamamos “RG”, sigla numérica que não abandona o seu titular nem depois de extinto por um balaço, por doença ou por velhice. Porque o PM, novo ou velho, é nada mais que seu “RG” a ser movimentado tal como se movimenta o gado marcado nos piquetes, até que ele entre no corredor do abate e dali não mais torne à vida. 

Eis como entendo o “tapete” do cidadão Ricardo Crô, de tão espantosa coragem cívica e fruto de tão inegável vivência que merece ser cotejado com a ideia jornalística que o ladeia, cansativa de tão repetida. Que de ambas, porém, aflore uma saída honrosa enquanto é tempo...

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