(manifestação de opinião escudada na Lei no 7.524, de 17 de julho de 1986)
Se o homem falhar em conciliar a justiça e a liberdade, então falha em tudo.”
(Albert Camus)
Alguns manifestantes militares estaduais considerados líderes da ameaça de greve da PMERJ e do CBMERJ (paralisação que, ao fim e ao cabo, não se concretizou) foram trancafiados em presídio destinado a bandidos perigosos (Bangu I). Mais que mera punição, o ato em si tem fetidez de desforra, espécie de reedição dos tenebrosos tempos em que valiam tão-somente as leis de natureza na relação crime-castigo. Só que vivenciamos o Estado Democrático de Direito (pelo menos em ilusória tese), pacto nascido nas sociedades civilizadas exatamente para sepultar o estado de guerra predominante nas obscuras sociedades de antanho. No caso específico do militarismo, as normas disciplinares e penais não se humanizaram, elas são ainda tacanhas ao extremo de o rigor militar eliminar o cidadão tanto física como espiritualmente. Cá entre nós, são tão absurdas que tornam o Absurdo de Albert Camus um singelo conto de fadas.
Não pretendo defender o direito de greve dos militares estaduais, não domino argumentos jurídicos para tanto, daí inclusive eu ter me posicionado contra a greve. Mas entendo que o específico recolhimento de militares estaduais em prisão destinada a marginais traduziu-se em ato de vingança. Sou então impelido a desaprová-lo (minha opinião), também porque as reivindicações eram e continuam sendo legítimas. Tanto é verdade que o governante culminou reconhecendo o pleito e o atendeu velozmente, o que sem dúvida contribuiu para evitar a greve. E foi um prêmio à tropa, que, por outro lado, manteve-se em maioria fiel ao juramento no sentido de respeitar as leis e arriscar a vida em defesa da sociedade. Por isso não creio, sinceramente, que houvesse greve, mesmo se o governo não reagisse positivamente às reivindicações.
Também devo reconhecer o predomínio da liderança responsável e serena dos comandantes, chefes e diretores de OPMs e OBMs, o que em muito contribuiu para refrear o movimento antes que se descontrolasse. Desde os comandantes-gerais das duas instituições aos comandantes intermediários e operacionais, dentre outras unidades com destinações diversas, o tom conciliador, ainda que enérgico (a situação o exigia), evitou um mal de consequências imprevisíveis. Pois uma greve geral em pleno Carnaval cheirava a baderna, o que nenhuma pessoa de bom senso aprovaria. Por outro lado, descarregar ressentimentos contra alguns mais afoitos (muitos deles desavisados e tomados de emoção) talvez não seja prudente em vista do futuro.
Muito bem, fechando então o zum, vejo este um bom momento para torcer pelo perdão governamental aos mais açodados, e nem tanto “perigosos líderes”, como insiste o sistema situacional em alardear para legitimar o corte de algumas cabeças na guilhotina hodierna de um poder que vem apodrecendo a Lei. Portanto, e para não me doer a mim a consciência, eu me enfio nesta digressão a reafirmar que a retaliação de militares estaduais faz parte duma cultura tacanha que não mais se justifica num sistema de liberdade democrática. Isto é coisa antiga, não é fruto de humor de específicos superiores hierárquicos, mas cultura corporativa difícil de ser vencida e de uso comum nas adversidades institucionais em que o clamor público muitas vezes gera o pânico interno, que se traduz nos rigores disciplinares contra os quais não é possível a defesa em igual contrapartida.
Esses rigores excessivos lembram outros maus exemplos corporativos, a começar pela chacina de Vigário Geral, ocorrida em agosto de 1993. Na época, o espanto ante o clamor midiático elevou o sistema situacional ao extremo de aprisionar dezenas inocentes militares estaduais (talvez centenas), sob artificiosos pretextos disciplinares. Eles foram amontoados como gado em piquete cercado de arame no Regimento Caetano de Farias (mais parecendo campo de concentração), permitindo-se ainda filmagens televisivas e fotos jornalísticas dos desesperados, como se fossem eles chacinadores antes de qualquer apuração e desde logo merecessem o fuzilamento sumário.
Desta forma absurda, os rapidamente escolhidos foram expulsos da corporação a partir da delação premiada de um facínora do CV (foragido da justiça e detentor de vasta folha penal), em depoimentos secretamente coletados na sede da PM.2 (Comunidade de Informações da PMERJ) e por via de promessas de prêmio até hoje inconfessáveis. Mas o artifício anterior do aprisionamento coletivo foi tão-somente disciplinar, e a partir de faltas simplórias e antigas dos eleitos, como rapar o bigode que constava em foto da identidade ou não comunicar mudança de endereço e outras abobrinhas semelhantes. Assim foi o numeroso rebanho punido em Boletim Ostensivo da PMERJ, numa lista de rigorosa sequência. Depois a boiama foi submetida a uma espécie de “controle de qualidade”, momento em que algumas cabeças do gado humano foram retiradas do rol maior para o menor, sem jamais perder a sequência original, tudo registrado em forjados depoimentos prontamente assinados pelo bandido como se tudo houvesse saído da lembrança dele – um absurdo! E o rol de alvos seguiu em frente na mesma ordem nominal até a denúncia, com todos os investigadores do sistema aclamando a memória fotográfica da tal testemunha-chave, o misterioso “I”, em alusão à primeira letra do nome dele: Ivan Custódio Barbosa de Lima. A razão do mistério quanto ao nome do facínora depois emergiu como um inesperado relâmpago: tratava-se de perigoso membro do CV. Enfim, o sistema situacional não lidava com nenhum terceiro-sargento do Exército Brasileiro e motorista de praça, como anunciara à alvoroçada mídia, mas com um contumaz criminoso da cúpula da organização criminosa Comando Vermelho.
Havia, sim, a específica promiscuidade do facínora com um dos quatro PMs assassinados na véspera da chacina por traficantes de Vigário Geral (Sargento Ailton), de quem o bandido era sócio num barco de pesca, tanto que o tal do “I”, – deste modo alardeado pela mídia que gostara do suspense, – participou do sepultamento do seu sócio e culminou “preso disciplinarmente”, por engano, como se fora PM. Ora, ele jamais foi PM! Não passava de perigoso marginal detentor de vastíssima folha penal... Daí não ser demais concluir que ele tenha participado da chacina, pois motivação para tanto não lhe faltava. Contudo, – e também por motivos óbvios, – o bandido não tinha interesse em apontar os verdadeiros culpados, decerto amigos dele, e cuidou de desviar a culpa para PMs notoriamente desafetos do CV, facção que o acolhia na cúpula para assaltar bancos e transportar drogas no atacado pela rota Colômbia-São Paulo-Rio de Janeiro – eis o seu elevado grau de periculosidade e de inconfiabilidade. Mas foi deste modo escroto, já escolhidos os alvos do sistema estatal pela artificiosa via disciplinar, que se iniciou em estardalhaço a caça às bruxas contra PMs facilmente identificados no contexto interno dos batalhões, geralmente integrantes de guarnições de PATAMO ou equivalentes (grupo de cinco PMs), e que por algum motivo (justo ou injusto) eram investigados. Já outros foram escolhidos por conta da necessidade de sustentar vindictas políticas e pessoais...
Nesta condição de autores e culpados pela morte de 21 pessoas na favela de Vigário Geral, – assim denunciados e antes mesmo de julgados, – os PMs amargaram a dor física, e, principalmente, a dor moral, esta bem pior que a outra por lhes alcançar indistintamente a família. Muitos filhos dos injustamente presos, denunciados e processados em meio ao clamor midiático foram humilhados em seus colégios, universidades, locais de trabalho etc., bastando-lhes a identificação de parentesco com alguns daqueles erradamente réus expostos pela grande mídia à execração pública mesmo sem culpa formada.
Centenas de homens, mulheres e crianças enfrentaram toda essa desgraceira porque não houvera apuração alguma, mas apenas pressupostos infundados e posteriormente derrocados diante do Júri por gritantes provas de inocência. E a maioria foi absolvida a pedido do próprio Ministério Público. O mal, porém, estava feito, e ainda hoje perdura: muitos desses inocentes morreram, adoeceram ou vivem a amargura da perda do emprego e da miséria em seus lares. Não se consertou e jamais se consertará o mal que lhes causaram, mas isto não interessa ao Estado despótico de ontem, de hoje e quiçá de amanhã. Também neste caso o sistema estatal fez valer as leis de natureza. Infelizmente...
O mesmo aconteceu com a mal contada história do desaparecimento dos Onze de Acari e com a chacina da Candelária. No segundo caso, também aprisionaram inocentes, dentre eles um negro levado a compor grupo de reconhecimento visando a identificar um participante da chacina que teria o apodo de Pelé. Entre inúmeros brancos, o único negro era ele: um PM da P.2 do 5º BPM, usado como personagem apenas por estar nas imediações de onde haveria o ato de reconhecimento, já que o crime ocorrera na área do supracitado batalhão. Sim, as crianças sobreviventes da chacina não tiveram dúvida em apontar o único negro da fila como Pelé. Também os investigadores acusaram um serralheiro e um tenente reconhecidos por um sobrevivente que, paradoxalmente, fora socorrido por ambos em local afastado do ato sangrento. De salvadores, ambos passaram a chacinadores, igualmente amargando a dor física da prisão e a dor moral que matou o pai do então tenente, um cabo PM. Depois restou provado mais esse engodo promovido pela PMERJ, pela PCERJ e por desatentos membros do MP. Os três então foram soltos, também por iniciativa do MP, diga-se por amor à verdade, após três anos de cárcere e humilhações indescritíveis. Nos dois casos, porém, em vez da serenidade e da isenção nas apurações o fator decisivo foi o clamor de vingança, exatamente como nos tempos das barbáries e dos castigos-espetáculos cujas lembranças tenebrosas chegam a nos arrepiar. Sim, novamente o clamor público (ou publicado) foi atendido na base do manu militari, gerando apressadas opiniões ministeriais. E o sistema judicial engoliu a isca no primeiro momento de pura encenação...
Com a recente ameaça de greve, toda essa história parece se repetir em matizes e texturas de vingança. A verdade é que mesmo condenados, – e enquanto militares, – PMs e BMs não deveriam ser presos em lugar que não fosse quartel, não se justificando o recolhimento de coronel PM no presídio de Bangu I em aberrante atropelo às leis vigentes. Do mesmo modo, não se justifica o recolhimento de graduados e praças na mesma prisão, eis que todos são tão militares quanto o coronel, sendo certo que a patente deste último, idêntica à do comandante-geral da PMERJ, ou do CBMERJ, foi reduzida a pó. E neste ponto indago provocativamente: E se amanhã for enquadrado em situação semelhante um oficial-general das Forças Armadas?... Afinal, há oficiais-generais desviados de função no Complexo do Alemão e o azar pode alcançar um deles...
Sim, o trancafiamento de militares estaduais em Bangu I atropelou os direitos e garantias individuais gravados em ouro na Carta Magna, valendo-se o sistema estatal apenas de subjetiva eloquência para atender aos seus irascíveis anseios de vingança e não de justiça. Que a greve de militares estaduais é discutível, não se há de pôr dúvida; é, porém, tema controvertido em vista de opiniões doutrinárias garantindo esse direito aos militares estaduais. Mas não é este o foco da reflexão, que se deve prender à ilegalidade (ou seria legalidade?...) da decisão judicial de pôr a ferros militares estaduais tal como se faz com perigosos bandidos... Eis, por exemplo, o que prescreve a respeito da prisão de PMs o Estatuto da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que vem sendo queimado na fogueira e reduzido a cinzas como nos terríveis tempos da Inquisição:
LEI Nº 443, DE 1º DE JULHO DE 1981.
Dispõe sobre o Estatuto dos Policiais-Militares do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. (...)
Art. 71 - As prerrogativas dos policiais-militares são constituídas pelas honras, dignidades e distinções devidas aos graus hierárquicos e cargos.
Parágrafo Único - São prerrogativas dos policiais-militares: (...)
3 - cumprimento de pena de prisão, reclusão ou detenção somente em organização policial-militar, cujo Comandante, Chefe ou Diretor tenha precedência hierárquica sobre o preso ou detido; (...)
Ora, a questão prende-se ao respeito às leis vigentes em oposição às barbáries, mesmas leis que asseguram vitaliciedade a juízes, por mais venais ou criminosos que o sejam. E me vem outra indagação: Será que um juiz eventualmente acusado de crime hediondo seria trancafiado em Bangu I?... Vale a indagação para tenentes, sargentos, cabos e soldados, inativos ou ativos, para os quais o local de prisão também é quartel. Enfim, parece que a tirania da retaliação predomina no país, tornando-se o Estado Democrático de Direito algo menor diante da vontade de políticos contrariados, como se fossem eles imitações de um Luís XIV de França (L'État c'est moi). Porque aqui no RJ prevaleceu a Lex talionis (olho por olho, dente por dente). A questão é saber até quando...
“Fim da picada! Eis o Brasil: ou segue a lei e se torna ingovernável, ou se ignora a lei para governá-lo!” (Reinaldo Azevedo –http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/?gclid=CIfi9c6L064CFQuf7QodpFTH4w)
E para encerrar, e como me referi ao bandido do CV, de nome Ivan Custódio Barbosa de Lima (o famigerado “I”), eis um pequeno esboço de alguns crimes e matérias jornalísticas comprovando o liame material dele com a cúpula do CV. Para quem não crê em coincidências, e possui isento tirocínio, um pingo é letra. E aqui ponho bem mais que um pingo...
2 comentários:
Cel Larangeira.
A julgar por situações que já vivi e presenciei dentro da PM, os mentores e executores dessas prisões e também agora transferências de Bopeanos para batalhões longíquos são homens que usam a mesma farda e as mesmas insígnias, portanto militares de uma mesma tropa que deveriam lutar juntos em busca de um objetivo comum. Jamais vi esse tipo de comportamento em qualquer outro lugar.
Quando não existe respeito dentro da nossa própria casa, fica difícil para os de fora respeitar.
Será que a culpa é desse retrógrado e arcaico RDPM que se deixa manipular?
Confesso que não resisti em comentar meu próprio texto, porém apenas acrescentando a manifestação abaixo, que, aliás, dispensa comentários:
“O superior não erra e continua inimputável porque ele não se sente culpado e, no máximo, pode sentir – se for descoberto ou pego em flagrante – um tiquinho de vergonha.” (ROBERTO DAMATA – Grandes ideias – para Celso Lafer – artigo publicado no O GLOBO de 14 de março de 2012 – coluna OPINIÃO – p.7)
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