A formação do oficial militar estadual não difere em muito do passado, ou seja, os jovens são submetidos a um rigoroso sistema de pressão, tendo como ameaça maior o desligamento sumário do curso cujo ingresso é disputadíssimo. Salvo pequenas reações de desistência, algumas descaradamente induzidas por ampliação de pressões sobre determinado aluno-oficial que ao sistema interessa descartar (digo-o genericamente, sem a pretensão de focalizar caso algum), a maioria se adapta e se vai tornando conformada, de tal modo que a submissão culmina por se integrar ao psiquismo individual e coletivo dos oficiais militares estaduais, mais até que entre graduados e praças, que são em maior quantidade e nos quartéis se apresentam apenas para cumprir serviços externos, situação rotineira em que são obrigados a discernir individualmente, demais de ampliar a solidariedade entre eles em razão dos reais riscos de morte no exercício da profissão. Mesmo assim, o rigor excessivo não deixa de funcionar como elemento de pressão a inibir reações na base da pirâmide hierárquica, especialmente por conta de punições a generalizar exceções pela difusão sensacionalista, o que afeta a tropa como um todo.
A desgraça do conformismo, como eu denunciei em romance (O Espião – vide site www.emirlarangeira.com.br), decorre de rupturas violentas produzidas na mente dos submissos, tornando-os “corpos dóceis” (vide Vigiar e Punir – Michel Foucault), não importando se consciente ou inconscientemente. No caso específico da oficialidade, como o sistema de pressão predomina sobre a individualidade dos cadetes durante três anos, o final do curso lhes representa uma aparente vitória contra os grilhões, até que eles descobrem que, como aspirantes a oficial, o espectro do desligamento ainda os ameaça, e assim a carreira dos jovens segue debaixo do ferrão de seus superiores, enquanto eles, jovens oficiais, vão forjando seus próprios ferrões para ameaçar quem lhes está subordinado (eis como sofrem silenciosamente os novos oficiais, os graduados e as praças, e quem quiser que enfie a carapuça, com a ressalva de que cuido de cultura e não de pessoas e sei que muitos superiores são bons e justos). Entretanto, não se há de negar o fingimento da expressiva maioria a alardear uma “disciplina consciente” que não passa de falácia.
A perda da individualidade, – ou sua dissimulação em vista da exteriorização obrigatória de submissão às regras formais e informais (no militarismo, uma regra não difere em muito da outra, pois, em falhando a informal, logo emerge a formal com facilidade espantosa), – a perda da individualidade torna-se traço de cultura predominante e enfraquece o espírito do oficial desde cedo, fraqueza que o acompanhará até alcançar seu objetivo maior: a inatividade. No entanto, mesmo depois dela o sistema de pressão não fenece, os regulamentos foram feitos para alcançar quase que a alma do indivíduo. Lembra a prática czarista a registrar como propriedade valiosa para a nobreza rural a alma do escravo, que podia ser vendida a outrem para se somar aos escravos vivos, variando o preço de acordo com a utilidade do corpo em vida (Vide Almas Mortas, romance de Nikolai Vasilievich Gogol). Eis também a Wikipedia sobre o czarismo: O Imperador de todas as Rússias é um monarca autocrata e ilimitado (Czar): O próprio Deus determina que o seu poder supremo seja obedeci¬do, tanto por consciência como por temor. (Artigo I das Leis Fundamentais do Império, publicadas em 1892. Cita¬do por KOCHAN, L., Origens da Revolução Russa, Zahar Editores, pág. 60)
Sim, vem de longe o “temor” como fundamento da obediência cega ao poder pelos civis, e elevado ao extremo no militarismo dos corpos dóceis, o mesmo que ainda prevalece na cultura dos exércitos e assemelhados (as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares), embora a maioria não assuma o detestável perfil talvez por se ver embolada entre si, mandando e sendo mandada. Ora, todos fingem, na verdade, amar a obediência às regras do “mandar com” (“comandar”), assim como os indivíduos fingem crenças religiosas várias com vistas à salvação da alma, sendo certo que as almas dos escravos russos não possuíam esse direito, já que o Czar se garantia por seu poder terreno emprestado por nada mais nada menos que Deus e não libertava as almas escravas do jugo terreno... E, pelo visto, a alma do militar estadual não difere em muito da “alma escrava” dos czares, pois o “RG” (Registro Geral) segue existindo após a morte do seu corpo por meio dos pensionistas. Claro que a comparação é grosseira, mas talvez nem tanto, pois “RG” de coronel vale mais que “RG” de soldado, distinção social (financeira) visível entre viúvas que não se misturam, inobstante serem todas oriundas da senzala...
Muitos neste instante dirão que tresvario, que pirei de vez, que endoideci deveras, mas é só observar os movimentos reivindicatórios para percebermos que é mínima a participação da oficialidade militar estadual aqui e algures. Não falo de greve, mas de movimentos como os da PEC 300, pacíficos e assumidos por muitos políticos que hoje “espirram o taco” na maior caradura. Sim, é incrível que a oficialidade suma do mapa e nem mesmo se mobilize em associações, que efetivamente existem, mas são fracas por falta de representatividade quantitativa. Na verdade, as entidades se sustentam por conta de oficiais tão antigos que os informativos de óbitos dos associados até parecem mau agouro... E a continuar como nos dias de hoje, a tendência aqui no RJ é a de extinção por estagnação dos quadros de associados, até que a morte os alcance e as entidades representativas de oficiais entrem em irremediável processo entrópico...
Honestamente, não sei como esse conformismo será vencido. E o mais desagradável é que a oficialidade estuda Psicologia Social e outras ciências sociais que também cuidam do assunto, não sendo, portanto, novidade para ninguém: todos sabem que estão conformados. Por que então não há qualquer reação inconformada, individual ou coletiva, em vista de reivindicações justas? Por que a oficialidade não se associa, por exemplo, à AME/RJ (antigo Clube dos Oficiais da PMERJ e do CBMERJ), de modo a engrossar as fileiras da entidade e legitimar o seu presidente no âmbito político, que depende bem mais de quantidade que de qualidade?... Ou melhor, necessita do aspirante a oficial e do coronel, sem distinção de posto ou patente, porque lá os sócios se equivalem independentemente de hierarquia, posto se igualarem no valor idêntico do voto individualizado e secreto... Por que também os inativos se mantêm autistas em relação aos movimentos reivindicatórios e torcem de longe?... Ah, honestamente, – e como eu já confessei, – não sei... Por isso imagino que a oficialidade militar estadual seja hoje o mais autêntico manancial de conformismo a merecer estudo acadêmico, embora eu creia que o resultado é adrede sabido... Ora, por que não nos unimos para evitar o abismo do desenho acima e agimos como sugere o desenho abaixo?...
5 comentários:
Opa, eu não misoca......
Cel Larangeira.
Li esse texto várias vezes na busca de inspiração para fazer um comentário que não fugisse da realidade. Num belo dia estava com meu humor azedo e começei a falar sobre casuísmo, omissão e covardia.... peraí, mas é o sistema que torna milhares de valorosos homens, heróis anônimos, em mananciais de conformismo, como o senhor bem diz; então o que fazer? Acho que o melhor a fazer é conviver com o medo e fugir das armadilhas da mata escura, como diz o poeta. Sds, Paulo Xavier
Sr TC
Muito inteligente e elucidativa, como de costume, a alusão ao RG em comparação à alma dos escravos da Rússia do Czar. Nunca havia pensado nisso e o Sr me fez ver que as representações do RG acabam por ser mais fortes ainda do que as emanadas do próprio grau hierárquico do "morto" (vide pensão provisória e suas implicações).
Creio que a busca de mão de obra em candidatos já possuidores de curso superior, aliada à redução do tempo de formação (a exemplo do que já ocorre no RS e em SC, cujos cadetes são todos formados em direito), podem contribuir para a redução dos problemas apontados.
Quanto ao ingresso de sócios na AME, acredito que o advento de patamares simbólicos de contribuição para os militares com menor tempo de serviço e, por tal motivo, mais baixa remuneração, poderia fomentar o ingresso de sócios. Aproveito o ensejo para render homenagens ao Sr Cel Belo, cuja atuação à frente da entidade representativa de Oficiais do RJ é digna de aplausos.
Saudações
Wanderby
Sr Ten Cel, os jovens oficiais não buscam a AME/RJ, pois o certo é o contrário: aquela instituição, que se diz nossa representante, é que tem que nos convencer que:
1) existe;
2) é capaz de responder aos nossos anseios;
3) é necessária a nossa sobrevivência, como oficiais militares estaduais, bem como das nossas Corporações;
4) mostrar para os oficiais, principalmente do interior fluminense, que não é um clube restrito para aqueles que moram na região metropolitana, procurando bases para se representar nas principais cidades do Sul, Serrana, Lagos e Norte do Estado.
Desde que ingressei na PMERJ - e lá se vão mais de 10 anos - NUNCA vi um representante daquela Associação vir a qualquer OPM ou OBM do interior, ou mesmo até a APM para que nos mostrassem a necessidade de ingressarmos em seus quadros, apesar disso parecer uma obviedade.
Seria interessante que ela começasse a percorrer as OPM de todo o estado, mas também do interior para mostrar que a situação pode ser melhor do que eu que o senhor descrevemos, mas enquanto isso não acontecer, está com seus dias contados.
Minhas saudações, e espero ter contato pessoal um dia com o senhor, pois muito me agradaria ter maiores conhecimentos sobre a raiz treme-terra da atual PMERJ.
Concordo em gênero, númwero e grau com as suas palavras. Já as postei e encaminhei ao presidente da AME para reforçar o que lhe venho dizendo faz tempo. Sobre a raiz treme-terra, vou ver se fotografo a amostra treme-terra exposta no CPA em Niterói e fotos da próxima solenidade. Depois verei o que fazer para lhe repassar mais informações. Mande-me seu e-mail para o envio. Obrigado pela participação.
Abs.
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