Assim escreveu López-Rey: O crime, como o amor, o ódio, a ganância, o poder, a insatisfação, não pode ser explicado por uma teoria ou conjunto de teorias que na melhor das hipóteses não são mais que abstrações empíricas de uma faceta da realidade. Em verdade, o crime, como o amor e o ódio, é inerente à condição humana e reduzi-lo a uma expressão teórica ou a um sistema de pesos e medidas, para dar a impressão de uma medição mais exata, é tão ilusório como reduzir o amor e o ódio a uma pequena teoria ou a expressões numéricas. (López-Rey, Manuel – CRIME: Um Estudo Analítico – Artenova – Rio, 1973, Introdução)
A afirmação de Lópes-Rey coaduna-se com a realidade de que o crime faz-se presente em todas as sociedades e está em constante evolução. Talvez por isso a criminologia reúna tantas correntes explicativas que, ao fim e ao cabo, inviabilizam o enquadramento do crime em paradigmas que permitam o seu controle absoluto, descartando-se, também, a hipótese de sua eliminação definitiva do convívio social. Com efeito, não se há de pôr dúvida quanto ao fato de que o crime acompanha o avanço das sociedades, transmuta-se tal como o vírus e se sofistica em maior velocidade que as práticas estatais e societárias destinadas a contê-lo. Por conta dessas dificuldades, o crime se nos afigura assolador, malgrado o esforço humano no sentido de mantê-lo tolerável.
São tantas as teorias sobre o crime desde o passado remoto até o tempo recente que não é simples enumerá-las. Sabemos, contudo, que os extremos do “olho por olho, dente por dente” (lei de talião) e da curandeirice fracassaram e a “análise científica” do fenômeno em tempos e lugares vários vai da máxima seriedade ao bizarro da teoria lombrosiana, dentre outras esquisitices vinculadas a muitas áreas das ciências naturais e sociais. De tal modo que listar escolas criminológicas é esforço estéril. Mesmo assim, muitos estudiosos se dedicam a aprender e a ensinar sobre a evolução histórica do crime, sendo vasto o acervo acadêmico, um tanto ou quanto inútil, é bem verdade, pois o crime permanece um invencível desafio à ordem pública vista como situação de paz e harmonia na convivência das sociedades.
Não é caso, todavia, de menoscabar os esforços de antanho nem os de agora; eles se constituem numa importante fonte de conhecimento; ou pelo menos prova que muito se tentou para aplacar a violência do homem contra o homem, que se mantém viva como se lidássemos com ficções encenadas em teatros, tendo a sociedade como esperançosa expectadora de um final feliz somente alcançável nos contos de fada. E a mais e mais encenam os atores estatais mirabolantes soluções para aplacar o crime, tendo, porém, bem mais no réu que no fato em si o foco da lupa, e na punição exemplar do suposto culpado (o “suspeito”) o elo de um círculo vicioso alimentado por retóricas delirantes enquanto os verdadeiros criminosos permanecem desconhecidos e impunes.
Não significa dizer, porém, que valiosas restrições às barbáries não tenham sido gravadas por pessoas sensatas; mas o crime é muita vez apontado para alguém que não o cometeu, e mesmo assim a punição agrada, tal como nos tempos remotos os “castigos-espetáculos” das forcas, fogueiras e paredões de fuzilamento levavam ao delírio as multidões; isto sem nos esquecermos das confissões mediante tortura, que davam asas à imaginação de gentes poderosas e amantes do sacrifício humano pelo simples prazer de impô-lo como exercício de poder. Porque ninguém se preocupava em avaliar o fato, mas se prendia a outras variáveis espetaculosas o suficiente para cegar o expectador ansioso pela decisão a lhe propiciar o espetáculo da punição, desde que não fosse a si endereçada nem aos seus parentes. Exemplo maior que o sacrifício de Jesus Cristo não há de haver, mas, sem esquecer também o suplício de Tiradentes, vale retratar como seu deu a imolação de Damiens pela pena de Michel Foucault (Foucault, Michel – VIGIAR E PUNIR – Tradução de Raquel Ramalhete – 29ª Edição, EDITORA VOZES, Petrópolis, 2004):
[Damiens fora condenado, a 2 de marco de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e as partes em que será atenazado se aplicará o chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d'Amsterdam]. Essa ultima operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas...
Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: "Meu Deus, tende piedade de mim! Jesus, socorrei-me!". Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de sua idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente.
[O comissário de policia Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando as duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras.
Depois desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços.
O senhor Le Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma como costumamos ver representados os condenados: "Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor!" Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inexprimíveis. O senhor Le Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe se não queria dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe falaram demoradamente; beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: "Perdão, Senhor!"
Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxarem da seguinte forma: os do braço direito a cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante dos atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum.
Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor Le Breton, de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje. Tendo voltado os confessores, falaram-lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar): "Beijem-me, reverendos!" O senhor cura de Saint-Paul não teve coragem, mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-o na testa. Os carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que não blasfemassem, que cumprissem seu ofício, pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de Saint-Paul que rezasse por ele na primeira missa.
Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro.
Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar; mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo a palha ajuntada a essa lenha.
...Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O ultimo pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os oficiais, entre os quais me encontrava eu e meu filho, com alguns arqueiros formados em destacamento, permanecemos no local até mais ou menos onze horas (...).
Ufa!... Fechando agora o zoom no Brasil, sublinho um mestre do Direito, Tobias Barreto: O Direito Penal é uma ciência dos fatos e opera com fatos. Estes não podem ser substituídos pelos conceitos. Seria o mesmo que substituir a mão pela luva e a cabeça pelo chapéu. E também o processualista José Joaquim Calmon de Passos: Todo Direito assenta num fato. E qualquer modificação no fato importa diversificação do Direito. Por conseguinte, em última análise, não há justiça efetiva onde o fato fundamentado no Direito não foi posto com exatidão. Com efeito, o fato em si (e não a pessoa) deveria ser o primeiro plano na elucidação de um delito. Mas, em contrário, o foco é quase sempre a pessoa, o “suspeito”, logo escolhido por circunstâncias que vão da neutralidade bem-intencionada à má fé de alguém capaz de apontar como culpado um inocente para atender a ideologias e a outros interesses inconfessáveis. Tudo oscila conforme os conceitos de época e prima pela vontade daqueles que se comportam tais como déspotas. E, quando se trata de poder acima das leis, é fácil encontrar exemplos de torturas e linchamentos físicos e morais efetuados por agentes informais a partir de pressupostos meramente ideológicos ou dogmáticos, ou encetados por agentes formais cujos atos, mesmo extremados e errôneos, não eram e não são ainda hoje alcançados por lei alguma. A suposição é a de que agem em nome do Estado, este que, instituído pelo cidadão para protegê-lo, assume contornos independentes e ilimitados, tornando-se maior que a sociedade que o inventou com a pretensão de vê-lo guardião de valores sadios.
Toda esta digressão, contudo, não teria sentido se não a situássemos no momento presente para focar o atual sistema punitivo brasileiro a partir da Constituinte de 1988, ressaltando principalmente o papel do Ministério Público através de seus membros, já que a instituição não existiria se nela não houvesse pessoas. Essas pessoas, seres humanos como quaisquer outros, adquiriram poderes constituintes de semideuses. Por conseguinte, não diferem muito dos inquisidores do passado, que acusavam inocentes sem temor de punição por suas falsas opiniões. Por amor à verdade, diferem, sim, pois os hodiernos não acusam, julgam e condenam como faziam os inquisidores em nome de dogmas impostos ao povo a ferros da tortura e mediante execuções como a de Damiens. Hoje os inquisidores, membros efetivos do Ministério Público, são inalcançáveis quando erram, não importando se consciente ou inconscientemente. Sim, eles são “infalíveis” ao acusar pessoas e intocáveis no exercício de suas funções. Quando emitem falsas opiniões e a falha resta provada, a “culpa” é do Estado-mandatário-de-tudo, dono da chave do cofre e distribuidor das benesses. Ah, o parágrafo se encerraria neste ponto, até que li uma decisão judicial tão lapidar que não resisto em transcrever um pequeno trecho dela, já que coincidentemente reclamo da “culpa”:
(...) E isso pode ocorrer quando se tem por ótica o perigoso "Estado Policial", onde direitos são solapados, acusa-se primeiro para depois provar, e expõe-se apressadamente a vida de uma pessoa ao repúdio social, e tudo isso sem a menor parcela de arrependimento, ou "mea culpa", porque o Estado investigativo tudo explica à semelhança da tenebrosa ficção de Orwell, em seu livro "1984". (Trecho da decisão do Ex.mo Sr. Desembargador Antônio Carlos dos Santos Bitencourt, em HC concedido ao TCel PM Beltrami)
Em defesa dos membros do MP, por amor à verdade, e para que ninguém considere que minha ideia aqui escancarada seja “crimideia” (1984-Orwell) punível com minha pulverização e desaparecimento, ou me resulte punição semelhante a de Damiens, é imperativo assegurar que a maioria dos membros do MP tem consciência do poder que exerce sobre os seres humanos comuns denominados “cidadãos” e promovem justiça fundada na verdade substancial; mas esses virtuosos não questionam suficientemente os colegas que extrapolam os limites da sensatez, que não amam as leis e agem com crueldade contra os que lhes são antipáticos. Esses poucos, maus por índole, infelizmente existem em meio aos bons. Portanto, não é demais concluir que são capazes de praticar o mal se o desejarem. Seguem o dito popular: “Se uma pessoa se acha capaz de cometer um crime impunemente, comete-o”. E acusar inocentes, transformando-os em réus de processos criminais, tem sido prática comum no Brasil e deveria ser crime específico e duramente cobrado, tanto material como moralmente. Fosse a Justiça suficientemente competente para punir as eloquentes falsidades, haveria menos inocentes no cárcere e menos reputações cruelmente destruídas. Mas nessa democracia de araque os males perdurarão, até que um dia sobrevenha uma desgraça, e dela finalmente nasça o autêntico Estado Democrático de Direito, em que todos sejam iguais perante a lei e não haja mais Olimpo a acolher semideuses.
3 comentários:
Bravo!!!! Eis aí mais uma verdade.
No meu tempo de caserna havia um sargento do 12° BPM, muito correto, que questionava quase tudo, resolveu fazer vestibular e aí vinha a célebre pergunta.
-Vai fazer o que? Ele respondia:
-Matemática.
-Poxa fulano, matemática não tem nada a ver com a nossa profissão, faça Direito. Ele respondia:
-Em matemática "dois mais dois é igual a quatro" e em Direito "todos são iguais perante a lei". Portanto, está tudo muito bem explicado nesse texto.
Um abraço Cel Larangeira. Paulo Xavier
Brilhante texto. Pena que a maioria prefira assistir Big Brother...
Obrigado pelo incentivo!
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