quarta-feira, 9 de novembro de 2011

“Incidente em Antares”...


Ponho aqui o título do romance de Erico Verissimo, escritor e jornalista, para homenagear o cinegrafista da BAND Gelson Domingos, alvejado por fuzil e morto durante confronto entre PMs e traficantes ao executar seu arriscado ofício na linha de tiro. Aliás, a câmera vista de longe sugere ser arma, até pela empunhadura do cinegrafista apontando-a em direção ao alvo a ser filmado. Ironia do destino?... Não! Não!... Consequência do serviço reflete mais a realidade!... Espero que a morte dele sirva para a Justiça melhor compreender o que as guarnições da PMERJ enfrentam diuturnamente nas favelas do RJ.
Soma-se ainda à tragédia particular do cinegrafista o brutal atentado contra a vida do irmão e do cunhado de um PM do 12º BPM, ambos torturados, baleados e enterrados no alto de um morro niteroiense. Por milagre, o irmão do PM fingiu-se morto e posteriormente se desenterrou, logrando escapar mesmo gravemente ferido. Foi encontrado e socorrido por populares. Já o cunhado do PM não teve a mesma sorte: ficou debaixo da terra, sem vida. Tudo porque foram reconhecidos por traficantes, num baile funk, como parentes do PM. Esta é a sina dos militares estaduais em razão do exercício da profissão. Melhor mesmo é não se ligar a nenhum PM, nem por conta de serviço nem por parentesco, pois o risco da profissão é tão tamanhão que ultrapassa a pessoa do PM e atinge terceiros...
Como todos puderam assistir ao vivo e a cores, o cinegrafista estava atrás do PM ao ser atingido sem muito alarde além do seu grito de dor, algo meio surreal, como se saído do nada... Invertendo os papéis, se o PM à sua frente acertasse antes o peito do assassino, e fosse ele algum adolescente armado de fuzil, logo depois encontrado sem arma, eis que geralmente ela é recolhida por outro traficante em plena ação, teríamos então um Auto de Resistência difícil de ser deglutido em meio à papelada fria que posteriormente se juntaria em inquéritos policiais, denúncias ministeriais e processos criminais. Para o PM explicar um fato somente inteligível no seu momento consumativo é-lhe impossível: nenhum relato verbal ou escrito conseguirá fielmente retratá-lo. Ademais, a desconfiança (preconceito) contra o pobre-diabo é regra já cristalizada na mente dos futuros inquisidores.
A verdade é que se tornou moda contestar Autos de Resistências aqui, ali e acolá, e não há argumento que sirva ante quem indicia, acusa e julga as ações de militares estaduais. Todos preferem crer no abuso dos profissionais de polícia durante enfrentamentos geralmente violentos, mas ignorados por vingativos indiciadores, acusadores e julgadores. Deveriam eles, por amor ao dever de ofício, e em nome do respeito mínimo à dignidade da pessoa humana, atentar que nenhum PM pode recusar ordem superior no sentido de se confrontar belicamente nas centenas de favelas infestadas de bandidos e não privilegiadas com instalação de UPPs. Sim, as centenas de favelas jamais receberão UPPs porque é impossível instalá-las em todos os lugares onde a pacificação é igualmente indispensável. Sobra então, como alternativa de ação policial, o eventual enfrentamento ou a omissão. E a arma que o Estado lhe põe nas mãos é o letal fuzil, de modo a “equilibrar” um lado e outro na “guerra das drogas”, sendo certo que nenhum disparo é passível de controle depois de acionado o gatilho, mesmo que o projétil acerte alvo: ele segue produzindo estragos incontroláveis em inocentes.
Enfrentamento arcando com riscos incontroláveis ou omissão... Claro que a segunda hipótese é inaceitável, até configura crime. Daí a ordem de repressão bélica ao tráfico, que se desdobra em crescente violência mútua, tal como a que matou o cinegrafista. Mas é missão da PMERJ neste ambiente de violência sem precedentes no país, embora alguns a designem, falaciosamente, como “missão de reconhecimento, que, recebida a tiros, apenas reage”... Ora, é só nomenclatura a justificar os letais tiroteios; e, se tombar morto o PM, o azar faz parte desta desgraçada profissão. Nem rende mais notícia... Mas, se o PM matar o bandido, cena rara na telinha da tevê, — é arriscadíssima a filmagem desse momento, como intentava fazê-lo o cinegrafista vitimado, — aí o bicho pega! E o infeliz do PM responderá severamente por supostos excessos subjetivamente medidos por inquisidores, acusadores e julgadores em má vontade e/ou sede de vingança. Ah, o PM que se dane!... Cá entre nós, morrer como o cinegrafista seria melhor: uma foto banal num jornal pronto a embrulhar o peixe no dia seguinte (Tá lá o corpo/Estendido no chão/Em vez de rosto uma foto/De um gol/Em vez de reza/Uma praga de alguém/E um silêncio/Servindo de amém...”), uma família desconhecida a sofrer o luto, mais uma viúva de PM na longa fila a receber migalhas... Porém, nenhum processo-crime a atazanar sua vida e pôr sua esposa na fila da visita com “direito” a revista íntima...
Esta é a realidade que o PM enfrenta na base do manu militari e em razão de desespero por não se inserir na mobilidade social deste país da roubalheira no andar de cima e de miséria e morte no andar de baixo. Ser PM, com todos esses riscos (especialmente o de morrer ou ser preso), é sua alternativa única de sustento da família. E, mesmo ganhando migalhas, ele não pode deixar de se arriscar a matar ou morrer no cotidiano desta trágica profissão. Tal situação lembra os tempos remotos em que os jovens eram levados ao extermínio, fardados de soldado, em troca de...: “... Que as alegres canções dos trovadores eram sufocadas pelo barulhento tilintar das armas, que as festivas passeatas com tochas eram substituídas por marchas guerreiras para os campos de batalha, e que os exuberantes jovens, no verdor da mocidade, eram chamados às armas pelo sino de guerra, para dar suas vidas pela Igreja ou pela coroa, pela honra do senhor feudal ou pelo orgulho dos burgueses.” (René Fülöp-Miller – Os Santos Que Abalaram O Mundo)... Ah, em troca de nada!

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