Eis que, num mesmo ambiente pacificado, um PM é baleado por quadrilheiros do tráfico. Encontra-se em estado gravíssimo, com risco de tetraplegia. Simultaneamente, trinta colegas dele são afastados por suspeita de recebimento de propina oriunda da mesma quadrilha que o feriu. Enfim, − malgrado a elogiosa e transparente reação da PMERJ afastando os investigados, − aflora o intratável conflito urbano envolvendo dois personagens da tríade (“trabalhador-policial-bandido”) a que aludi em outra reflexão inspirada em pesquisa da antropóloga Alba Zaluar sintetizada em livro (A Máquina e a Revolta), com destaque para o capítulo intitulado “Trabalhadores e bandidos: identidade e discriminação”.
Em resposta ao desencanto pelo desaire daqueles antes apontados como autênticos representantes da “renovação” no seio de uma tropa “viciada”, anunciam-se mais UPPs embolando alegrias e tristezas num drama que tende à tragédia sem tempo de reformulação do roteiro. Esse quadro decepcionante não deve, porém, nos desanimar. Persistir é preciso, como, aliás, sugeriu o Jornal O Globo em editorial, faz uma semana, com o título: “UPP precisa de tempo para se firmar”.
Está certo o jornal, mas o momento exige mais correções de rumo que avanços, de modo que as UPPs não terminem melancolicamente como o exército napoleônico no inverno russo de 1812: famélico e sem logística... Sugeri esta grosseira comparação em artigo postado quando o anúncio das UPPs ainda guardava indisfarçável mistério. Depois ficou mais claro o objetivo da antiga modalidade de policiamento anunciada como “nova”, tal como se apresenta uma roupa velha banhada em tintura. Que me desculpem também os que se referem aos azares das UPPs como “casos isolados” num mundo onde nada é isolado, tudo é subsistema de sistemas entrelaçados entre si e o ambiente! Isolar um tema significa empurrá-lo para baixo do tapete ou forçá-lo a desaparecer como um êmbolo a acumular forças até ocluir seu receptáculo ou irromper como um vulcão adormecido sem aviso aos que antes o subestimaram...
Como estou questionando as UPPs desde o início, não com espírito destrutivo, mas por saber que o ideal seria haver menos ufanismo e mais realismo exatamente para evitar desastres como os que vêm ocorrendo, torno ao tema para insistir na dificuldade de se vencer a cultura favelada somente com boa intenção. Porque, como se confirma na prática, não adianta agir ingenuamente numa esfera em que a ingenuidade inexiste. Cá entre nós, não se pode supor que sofridas comunidades carentes sejam ingênuas a ponto de engolir a isca da pacificação sem engasgos. Também é impraticável imaginar uma sociedade, que tão bem conhece seus vícios, crendo na pureza de policiais nascidos do seu viciado ventre; muito menos se pode crer na desistência pura e simples de bandidos enraizados a sangue de muitos deles nos territórios aparentemente pacificados. Ao contrário, tudo funciona nas favelas segundo o mesmo “determinismo social” da casa-grande e da senzala e conforme a cultura do crime tão bem sintetizada pelo pesquisador Manuel López-Rey em seu clássico sobre o tema.
Se os mentores das UPPs adrede conhecessem as pesquisas de Alba Zaluar e Manuel López-Rey e a obra de Michel Foucault (Vigiar e Punir), não teriam tentado interferir apenas superficialmente na complexa interação entre trabalhadores e bandidos favelados, reduzindo-a a ações policiais. Entretanto, prefiro crer nas boas-fés dos mentores das UPPs. Até porque a ânsia pelo acerto dessa modalidade de intervenção estatal anulou o sentido de realidade que se deveria impor na análise das ações policiais implantadas com toques de “originalidade” e retoques de “genialidade”. Ora bem, sei que me arrisco ao insinuar ter havido intenções escusas por parte de políticos profissionais. Mas não vejo outro modo de me expressar, não consigo perceber “candidamente” nenhum ingênuo nesta roda, assim como não enxergo policial, de qualquer instituição, capaz de penetrar a ambígua interação entre trabalhadores e bandidos favelados.
Contudo, a experiência das UPPs, mesmo com seus azares, permanece válida como meio de minimizar a discriminação das comunidades faveladas resumida na repressão policial como regra e nenhuma prevenção como exceção. Sabemos que o ideal seria pacificar todas as favelas, o que é impossível, dado o seu elevado número. Não significa, todavia, desistir do projeto. Insistir, ou “persistir”, − como simpaticamente sugere o editorial de O Globo, − é indispensável. Portanto, é preciso enfrentar serenamente os óbices e traçar soluções no curso da implantação de UPPs, de modo a provar a utilidade da PMERJ na democratização do policiamento preventivo.
Eis como continuo torcendo pelo sucesso das UPPs, apesar do difícil momento pelo qual elas passam e mesmo sabendo que o efetivo da corporação, por mais que seja aumentado, talvez jamais seja suficiente para proteger o território fluminense e sua população no seu todo. Só espero que a PMERJ, − passado o tempo deste governo sustentado por UPPs, − não se transforme num hodierno “exército napoleônico” errante em tempo e lugar à espera da morte...
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