sábado, 13 de agosto de 2011

Crônica de uma morte anunciada

Obs.: quando o Jornal O Globo jorrou luz sobre a MM Dra. Juíza Patrícia Acioli em extensa matéria, escrevi o artigo abaixo e postei neste blog com o título em destaque. Boa oportunidade para rememorá-lo junto com os leitores para demonstrar que ninguém pode alegar desconhecimento quanto ao fato de que a juíza corria riscos graves em virtude do exercício da profissão, assim como os promotores de justiça que atuam na esfera criminal em São Gonçalo igualmente se arriscam pelos mesmo motivos que resultaram no assassinato da indefesa magistrada.




Sobre a insegurança pública em São Gonçalo



O Jornal O Globo de hoje, 13/09/2010 (2ª edição – RIO), traz extensa matéria nas páginas 22 e 23 sobre o Município de São Gonçalo e o excesso de homicídios supostamente perpetrados por PMs do 7º BPM, dissimulados em “autos de resistência” de difícil digestão pelo Ministério Público e pela Justiça Criminal locais. Mas este não é o mérito desta reflexão, os dados divulgados e as entrevistas das autoridades públicas infelizmente são convincentes. No entanto, como sou nascido em São Gonçalo e assentei praça na antiga PMRJ exatamente cursando e servindo por seis meses no antigo 1º BPM (1965), hoje 7º BPM, situado em Alcântara, populoso bairro do Município em questão, de onde saí para cursar a Escola de Formação de Oficiais (EsFO), em 1966, creio estar habilitado a ponderar sobre a segurança pública naquela localidade que é meu torrão natal. Mais ainda pesa o fato de eu ter vivido durante anos em São Gonçalo, já oficial da briosa e casado, oscilando o meu tempo de serviço entre o 12º BPM (Niterói), a Companhia Escola de Recrutas e a própria EsFO, ambas situadas também em Niterói. Portanto, preencho o requisito que o saudoso professor espanhol Manuel Garcia Morente (1886-1942), na sua obra FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA – LIÇÕES PRELIMINARES, ED. MESTRE JOU, São Paulo, 1930, citando Bergson, valoriza em importância: a “vivência”.
Enfim, não conheço São Gonçalo por nenhum mapa da cidade, mas por nascer, viver e conviver com conterrâneos e parentes e ainda hoje frequentá-la. Conheço o Município antes de ser desordenadamente ocupado por migrantes, formando favelas planas e montanhosas onde só havia a natureza exuberante. Conheço São Gonçalo antes de se tornar uma “cidade partida”, irreconhecível aos nativos anteriores à explosão demográfica. E posso comparar a segurança pública daquela época nem tão remota com o que na cidade há atualmente. Antes (1983), havia dois Batalhões de Polícia Militar (o 4º BPM, sediado em Neves, e o 1º BPM, sediado em Alcântara). Houve a Fusão e o 4º BPM tornou-se 11º BPM. Depois foi transferido para Nova Friburgo, ficando no seu local o Laboratório Industrial Farmacêutico (LIF) da nova PMERJ. Reduziu-se então a PMERJ ao 1º BPM, tornado o 7º BPM de hoje. Eis a contradição: enquanto a PMERJ encolhia sua estrutura e seu efetivo operacional, a cidade crescia exponencialmente, fazendo valer a lógica de Manuel López-Rey (O CRIME – Ed. ARTENOVA, Rio de Janeiro, 1973) do aumento da criminalidade proporcional ao aumento populacional: “... A relação entre o crime e a população é direta, no sentido que quanto maior é a população tanto maior é o número de crimes...” A afirmação se inclui a outras explicitadas pelo renomado e sempre atualíssimo autor, mas interessa aqui apenas a sublinhada.
Atualmente, o Município de São Gonçalo é caótico em matéria de desordem urbana, violência e criminalidade, mas continua sendo tratado pelo Estado como bucólica cidade interiorana, capaz de reagir à violência com uma estrutura mínima de Segurança Pública e de Justiça Criminal. A tal ponto que sobre os ombros de uma Juíza de Direito pesa um volume de crimes que a ela, em instância local, cabe atalhar, pondo-a em risco de danos físicos e imprimindo-lhe o cartaz de juíza “linha-dura” apenas porque ela age como determinam as leis e nada faz além de zelar por seu dever funcional. Designá-la como “linha-dura” (assim está no jornal), pode criar a falsa impressão de que ela se diferencia dos demais colegas dela, que, no caso, seriam então “linhas-moles”?... Na verdade, ela está é muito sozinha a cumprir a tarefa hercúlea de aplicar indistintamente a lei penal diante de inúmeros fatos criminosos que lhe chegam em processos acionados pelo Ministério Público, não lhe importando quem sejam os acusados: a lei é igual para todos.
Se atentarmos para o Sistema de Segurança Pública de São Gonçalo abarcando todos os organismos estatais que nele se incluem, a conclusão será, sem dúvida, desanimadora. E não é de agora a carência, o que me obriga a lembrar minha tese defendida no Curso Superior de Polícia, em 1988, disponível no meu site para leitura e impressão (www.emirlarangeira.com.br). Na ocasião, – tendo em vista a minha preocupação com a progressão do crime em São Gonçalo e a diminuição dos meios para controlá-lo, – pesquisei sobre a possibilidade de o aumento da população pauperizada e a incidência de acidentes de trânsito (ocorrências não-criminosas) ocuparem exageradamente a pouca estrutura operacional destinada a conter o avanço do crime. A conclusão, testada estatisticamente em ocorrências reais e registradas em Talões de Registro de Ocorrências (TRO) pelo 7º BPM no ano de 1987, foi absurda: a PMERJ não estava controlando o crime porque quase todos os seus meios se destinavam ao atendimento de ocorrências assistenciais num patamar além do tolerável. Em resumo: a radiopatrulha que deveria estar circulando na prevenção do crime ou na sua repressão passava mais tempo na porta de hospitais e afins socorrendo pessoas paupérrimas ou atendendo a ocorrências de trânsito. O Teste de Significância aplicado aos dados reais do 7º BPM está disponível no conteúdo da minha Monografia. Não se trata de aplicação de teste estatístico simplório, não. É só conferir...
Claro que a desproporção dos meios da segurança pública em São Gonçalo, – fruto de descaso governamental tão aberrante que suprimiu um batalhão na cidade, algo inédito e até inacreditável, – ocorreu na contramão do aumento populacional e da consequente extensão do crime. A esse quadro situacional desfavorável acresceram-se a evolução do tráfico de drogas e a dominação das comunidades carentes por quadrilhas fortemente armadas, enquanto o efetivo policial permaneceu e ainda permanece em queda livre. Ora, é evidente que o risco enfrentado hoje por qualquer policial civil ou militar em São Gonçalo é maior. Falo de risco de morte, o que situa o problema num tal nível de aflição cujo resultado não poderia ser outro: aumento da violência policial como forma antecipada de defesa da própria vida, ou seja, a violência gerada pelo temor da morte ante uma criminalidade inegavelmente superior em homens e armas e organizada em formato de guerrilha urbana.
Leis penais e processuais penais e rigor judicial à parte, ao policial gonçalense (mais aos PMs) restam-lhe a omissão para não morrer (omissão é crime!) ou a ação violenta e dissimulada em “autos de resistência” insustentáveis (o que também é crime!). Acontece que o acionamento das patrulhas é feita à distância por quem não possui nenhuma vivência do terreno. Entretanto, descumprir ordem de atendimento a ocorrências delituosas é transgressão grave da disciplina e crime militar pra começo de conversa. Então a radiopatrulha ou outra guarnição mais ofensiva (PATAMO) é obrigada a atender à ordem superior de “Maré 36” e se vê diante da possibilidade de ser recebida a tiros de qualquer arma, desde o fuzil AK-47 ou M-16 ao revólver de calibre .22.
A questão que se impõe categoricamente à guarnição é esperar vir o tiro, identificar o calibre, para depois responder com igual calibre desde que não seja antes atingido. Se, por exemplo, o PM portar um fuzil de igual potência de fogo ao do marginal, posto na sua mão pelo Estado, e responder com essa arma geralmente letal à agressão de um bandido portando um revólver .38, estaria ele ultrapassando os meios moderados e necessários à sua defesa? Provavelmente, sim! Mas, como ele fará? Deixará o fuzil de lado para sacar o revólver .38 ou a pistola .40 e assim equilibrar seus meios bélicos ao do bandido? Terá ele tempo e discernimento para tal empreitada? E o medo que já lhe ocupa o espírito ante a desvantagem que de antemão ele sabe que enfrentará? Como lidar com esse medo? Ou será que há quem pense que PM não tem medo de morrer?... Mas seria ele capaz de admitir ser um medroso?... Duvido! A cultura interna é diametralmente oposta ao medo até como ideia. Associam-no logo à covardia, predominando o emocional sobre a indispensável racionalidade que deve primar no exercício da atividade policial, afastando-a da ideia de “guerra” contra o crime. Ocorre, porém, que a criminalidade está a mais e mais organizada e atuando no ambiente social como guerrilha urbana, corroborando a tradição histórica dos ensinamentos político-ideológicos recebidos dos presos políticos na ilha Grande dos tempos de chumbo. Para quem não lembra, aquela incipiente “Falange Vermelha” é hoje o poderoso Comando Vermelho e isto não é ficção.
Não sei se a matéria, de inegável utilidade pública, gerará consequências agradáveis à população de São Gonçalo. Tomara que sim, e que as autoridades maiores acordem para a infeliz realidade de que a luta da polícia contra o crime em São Gonçalo está desigual e tão descontrolada que daqui a pouco bastará à Justiça Criminal local retirar do portal do 7º BPM a sua identidade de quartel e torná-lo “2º BEP”, em desdobramento do BEP (Batalhão Especial Prisional) situado na Capital e já apinhado de PMs acusados de crimes vários, não interessando aqui adentrar o mérito das acusações. Trata-se apenas de constatação.
Não nego, portanto, minha opinião no sentido de que a matéria é útil. E faz justiça ao esforço hercúleo de um Promotor de Justiça e de uma Juíza de Direito, ambos, porém, intranquilos e cercados de segurança pessoal por punir maus policiais, quando, na realidade, deveriam estar condenando marginais contumazes presos por bons policiais. Por outro lado, sinto uma ponta de ironia do jornal quando publica que a Juíza afirma não temer ameaças, embora não permita que seu rosto seja fotografado, o que sugere o contrário. Nada demais, ela deve, mesmo, se proteger e ser protegida. Ora, algo está errado nessa história de terror!... Juiz de Direito e Promotor de Justiça não podem se sentir ameaçados exatamente por quem lhes deveria escudar de ameaças. E a sociedade gonçalense, já desesperada em sua insegurança, ao ler a matéria de hoje decerto temerá sair de casa e mais desconfiará da PM, que, aliás, quase não vê circulando nas ruas do abandonado Município de São Gonçalo. Que a matéria então produza reação inversa e o povo gonçalense exija dos governantes mais segurança em todos os sentidos, a começar por garantir a indispensável proteção daqueles que, por dever de ofício, penalizam malfeitores, sejam ou não policiais, contando apenas com as leis e a caneta!

Um comentário:

Leonardo disse...

Realmente foi lamentavel o ocorrido...Cade o estado para garantir a tarnquilidade no exercício da profissão ... imagino quantos juízes não estão sobre ameaça de morte por exercerem sua profissão... A questão é: Será que a repercursão do caso vai trazer justiça para São Gonsalo???? ou será que a juiza será mais uma estatistica.... porque o governo sabendo da ameaça que a juiza sofria retirou sua escolta???? Onde isso vai parar..
Que Deus conforte a familia nesse momento tão difícil

Abraços