terça-feira, 19 de julho de 2011

Sobre a violência no RJ: os “Autos de Resistência”


Nada mais polêmico que esse instrumento “jurídico-político-policial” no cotidiano operacional da PMERJ, e também da PCERJ em menor dimensão. Nos confrontos das instituições policiais contra marginais, com vítimas fatais, tornou-se regra lavrar em sede da polícia judiciária o controvertido “Auto de Resistência”, formal comunicação de resistência à prisão, crime tipificado no Código Penal e corriqueiro no labor policial. A questão é que o delinquente, em resistindo à prisão, obriga ao policial o uso da força. Nesse entrechoque muitas vezes inesperado o policial não pode exceder seus limites, sob pena de, se ultrapassá-los, responder criminalmente pelo excesso, demais de cobranças disciplinares simultâneas.
Nos tempos românticos dos conflitos sociais atalhados pela polícia ao “modo londrino”, a resistência à prisão não resultava mais que responsabilização penal do delinquente imobilizado ante uma força superior, contrária e moderada, ficando o policial na condição de vítima. Nos dias atuais das escaramuças típicas de guerra urbana, com policiais e bandidos portando fuzis e gastando munição à vontade, estabelecer reais limites no tocante à seletividade do uso da força não é simples. Aliás, é dificílimo ou impossível controlar rajadas de fuzil ou direcioná-las precisamente contra alvos móveis ou fixos: nenhum treinamento de ambos os lados (policiais ou bandidos) garante eficácia (objetivo visado = resultado ótimo) no uso desta arma de alto poder destrutivo. Nem sabemos se esses treinamentos são feitos com regularidade, e eu me arrisco a firmar que no tocante à polícia a resposta é não.
A PMERJ talvez pudesse se recusar a enfrentar bandidos em favelas para evitar contratempo com o Ministério Público, instituição que abriga alguns titulares de opinio delict que não engolem “Autos de Resistência” e costumam denunciar policiais como homicidas por estraçalharem corpos de bandidos a tiros de fuzil. Mas é bom lembrar que esse material bélico é adquirido pelo Estado, que o distribui à larga aos policiais, conhecendo, porém, seu elevado poder destrutivo. Por outro lado, algumas autoridades ministeriais não costumam considerar que o bandido também estraçalha corpos de policiais, e que não há outra forma de evitar esse resultado violento a não ser pela omissão, o que é também crime. Como, afinal, pode a polícia ignorar a presença ostensiva de traficantes portando fuzis em centenas de comunidades carentes no RJ, dominando-as em absurda tirania?... Enfim, um complicado dilema: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.”
Contribui sobremodo para o dilema a forma complexa desses confrontos, pois os marginais possuem total liberdade na favela: invadem o lar dos que bem entendem, usam pessoas inocentes como escudos e atiram sem qualquer preocupação com a possibilidade de ferir quem quer que seja. Eles sabem de antemão que a morte de inocentes tende a ser anotada na conta da polícia, bastando para tanto acionar os favelados, a medo de retaliação, para se manifestarem contra a ação policial. E se a bala perdida realmente tiver saído do fuzil do policial?... Ah, ele está ferrado!... E não lhe cabe se omitir ao receber a ordem de operar em favelas: é enquadrado nos rigores disciplinares e muitas vezes expulso da corporação. No fim de contas, o tacanho militarismo estadual permite aos superiores mil e um modos de danificar a carreira de seus subordinados... Aliás, “em doses únicas ou homeopáticas”...
Cá entre nós, não entendo como um ser humano normal ainda quer ser PM; espanta-me a fila de jovens sonhando ingressar em profissão tão contraditória e desumana. Não creio que seja por vocação, mas consequência do desemprego que assola calamitosamente este país inobstante a propaganda oficial em contrário. Essa mínima ou nenhuma mobilidade social é a principal motivação (ou ansiedade) dos jovens para se integrarem ao rebanho fardado.
No caso da PCERJ, seus efetivos não se obrigam tanto a guerrear em favelas. Podem se esquivar dentro da lei. Mas quando intentam e executam ações em comunidades carentes o modelo não difere do da PMERJ: vão meio fardados e portando fuzis. E lavram os mesmíssimos “Autos de Resistência” que seus colegas PMs quando abatem marginais; e choram a morte dos companheiros ante a mesmíssima indiferença da sociedade... Mas, sem embargo, quando a chapa fica quente, como está nessas últimas semanas por causa da morte do menino Juan, os policiais civis podem tranquilamente abortar suas operações em favelas, a pretexto de outras atividades de polícia judiciária, até que a chapa esfrie...
Certo é que não se pode comparar a obrigação da PMERJ, como polícia administrativa de manutenção da ordem pública, com a missão da PCERJ como polícia judiciária. A PMERJ não pode se escusar de agir a pretexto de fazer outra coisa, o que reduz a discussão à forma como ela atua no cotidiano do policiamento ostensivo. E neste ponto se há de questionar o modelo operacional da PMERJ em favelas, pois falta à instituição uma doutrina firme e clara. Ou melhor, ou pior, não há doutrina. O que vemos diariamente é a ação espalhafatosa de guarnições de PATAMO invadindo favelas sem planejamento prévio para saberem o que buscar. Os PMs incursionam crendo em informações obscuras e objetivos imprecisos. Na verdade, invadem a localidade por conta de enxergarem os traficantes apontando-lhes fuzis em provocação; ou alegam “perseguir meliantes que das ruas adentram determinada favela”; ou estão “em socorro de radiopatrulhas atacadas nas vias públicas, com os agressores se enfiando nas favelas”. Enfim, o que há são mil e uma maneiras de escamotear a real intenção dessas guarnições formadas por autênticos “grupos psicológicos”. Esses grupos exageram na liberdade de agir contando com o beneplácito dos superiores quando tudo dá certo. Por outro lado, os superiores lhes exigem resultados como apreensões de armas, drogas e prisão de traficantes para gerar mídia positiva. Parece até que ainda cultuamos a velha fórmula da “operosidade”, capaz de derrubar comandos operacionais num estalar de dedos (“ocorrências atendidas/efetivo pronto = índice de operosidade”).
Eis a situação a mudar, mas ela esbarra em argumentos inelutáveis. Um deles é que não há mais segurança para a ação ostensiva de pequenos efetivos (uma verdade). Os ataques letais às guarnições de radiopatrulha são volumosos, e, segundo a cultura interna, as guarnições de PATAMO com cinco homens armados de fuzil são protetoras imediatas e únicas das guarnições de dois homens. Por esta razão, nada muda no patrulhamento da PMERJ. Ele continua calcado nas mesmas subdivisões do terreno (área, subárea, setor, subsetor, roteiro e ponto-base), nos quais circula ou estaciona o patrulhamento motorizado, com ressalva das unidades que se postam de modo diferente no terreno em vista de suas especiais atribuições (Batalhão de Polícia Rodoviária, Batalhão de Turismo, Batalhão Florestal etc.).
Enfim, a PMERJ é aquele “edifício de apartamentos residenciais sem banheiro”. Esse “edifício” atípico é constantemente reformado, maquiado por dentro e por fora, mas permanece e irá à eternidade sem os indispensáveis banheiros... Parodiando Louis Sullivan, citado em artigo anterior: o formato não atende à função, ou, de outra maneira, a estrutura não se adapta aos objetivos dinâmicos e mutáveis da convivência social. Culpa da PMERJ?... Não, é a União que não deixa a PMERJ se desenvolver como organização indispensável à harmoniosa e pacífica convivência social. E talvez resultem desse óbice conjuntural e consequentemente estrutural as aberrações funcionais, dentre as quais o “Auto de Resistência”...

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