terça-feira, 12 de julho de 2011

Sobre o sonho do Cel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira de uma polícia cidadã


Estou relendo alguns pensamentos do Cel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira reunidos num livro recentemente lançado (capa em destaque). Esse interesse específico me fez lembrar o Plano Diretor da PMERJ por ele concebido com rara precisão técnica e difundido no âmbito da corporação. Lembra-me bem cada parte daquele documento que, segundo a ótica do Cel Cerqueira, deveria servir para mudar atitudes internas de modo a se consagrar novos comportamentos, em especial entre a oficialidade. Deste modo, numa segunda etapa, − e por meio principalmente de um novo aprendizado a ser instituído em concursos e cursos internos, − sonhava o Cel Cerqueira com uma nova polícia e um novo policial.
O Plano Diretor fora calcado nos conceitos da Teoria Geral da Administração e focava com prioridade o Desenvolvimento Organizacional1, teoria integrante daquela outra e voltada para a efetivação de mudanças no comportamento da tropa até então predominantemente repressivo. Sonhava o Cel Cerqueira com uma polícia preventiva por excelência, modelo operacional compatível com a nova ordem democrática que se iniciava no país. Anos depois, o ilustre comandante-geral, estudioso da criminalidade, admitia num texto por ele subscrito: “Como me enganei!”2
Ele defendia um modelo de policiamento a partir de efetiva integração comunitária. Passou então a disseminar suas ideias e ideais no campo restrito das atitudes. Psicólogo formado, sabia que para mudar o comportamento institucional da PMERJ era necessário mudar antes a atitude dos seus integrantes, ou seja, por meio do convencimento e do conhecimento. Não pretendeu em momento algum impor uma “mudança revolucionária”3, mas antes pretendia que essa mudança fosse lenta (“mudança evolucionária”4) e que se consolidasse no tempo e no espaço. Não foi bem assim...
Hoje, passados os anos, não me saem da cabeça algumas conversas que entabulei com o Cel Cerqueira. Tive esta oportunidade por atuar no Estado-Maior durante o seu primeiro comando. E, por ser formado em Ciências Administrativas, muitas vezes concordei ou discordei dele (ele amava trocar impressões e era ótimo ouvinte). Um dos pontos em que eu discordava dele dizia respeito exatamente à intenção de mudar atitudes em vez de impor novos comportamentos. Ele rebatia assegurando não poder impor novos comportamentos numa instituição agrilhoada a processualismos internos e escudada numa legislação anacrônica desde séculos. Pra começo de conversa, a PM era e continua sendo “força auxiliar reserva do Exército”. Esta saudosista norma constitucional servia e serve de trincheira segura para aqueles que resistiam e resistem às mudanças. Alcançá-los só seria possível instituindo novas atitudes. Confesso que me coloquei cético e de certo modo inflexível quanto às mudanças por ele pretendidas, não que fosse contrário a elas, mas eu as antevia como impossibilidade ante a conjuntura em vigor na segurança pública. Aliás, vigora ainda hoje a mesmíssima conjuntura...
O Cel Cerqueira chegou ao final do seu comando com algumas vitórias significativas, porém apreciando um cisma interno jamais visto: uma ruptura entre a oficialidade marcada pela dicotomia “fodões” (oficiais operacionais, defensores do modelo repressivo) e “bundões” (oficiais burocratas, defensores da integração comunitária e da prevenção). Não seria problema se tal ruptura não colhesse frutos danosos no cotidiano da vida corporativa. Todos devem lembrar o discurso de campanha do governante seguinte ao Sr. Leonel Brizola, Sr. Moreira Franco, que prometia “acabar com a criminalidade em seis meses”, mote vitorioso que deu poder interno aos “fodões”. E assim se passaram mais quatro anos de discórdia interna, com a tradição repressiva e a resistência às mudanças retomando o terreno anteriormente perdido. Tanto que a moda interna dos “fodões” era se referir à “integração comunitária” como “interferência comunitária”...
Ocorre que o Sr. Leonel Brizola reassumiu o governo, o Cel Cerqueira tornou ao comando da corporação, e com ele ressuscitaram suas boas ideias antes sepultadas. Claro que foi um comando diferente: o primeiro, cheio de sonhos inalcançados; o segundo, eivado de rancores. Porque, em vez de consagrar definitivamente o Plano Diretor, o Cel Cerqueira se viu obrigado a conviver com a ruptura, claro que tomando partido a favor dos “bundões” que antes foram combatidos a ferro e fogo pelos “fodões”. O resultado da ruptura, porém, não se resumiu ao campo das especulações teóricas: houve retaliações de parte a parte, inimizades surgiram e se aprofundaram, e muitas carreiras foram danificadas. Enfim, tudo terminou em desastre, o que os partidários de ambas as correntes evitam hoje comentar: sobreviveu uma PMERJ indefinida e traduzida por facções.
Essas facções estão em plena vigência e aprofundam suas dissidências para o campo pessoal, a ponto de não mais se discutir na corporação nenhuma doutrina ou conceito, nada, ficando tudo não “como dantes no quartel de Abrantes”, mas pior que “dantes no quartel de Abrantes”. Na verdade, a PMERJ de hoje, fragilizada por falta absoluta de doutrina; serve às idiossincrasias políticas e se confunde com a Torre de Babel, acertando e errando em confusão resumida à indefinição do seu papel institucional. Porque hoje, e diferentemente de antes, não há privilégios para “fodões” em detrimento de “bundões” nem vice-versa. Atende-se ao personalismo político, e a aleatoriedade operacional decorrente produz situações tragicômicas que vão do máximo aplauso (UPPs) à máxima vaia (morte de inocentes em ações repressivas onde não há UPPs). Ah, se o Cel Cerqueira estivesse vivo decerto repetiria a sua máxima desanimadora: “Como me enganei!”
Ou talvez não, pois a aparente turbulência guarda em si muitas tentativas de mudança que se escudam em seus (dele) exaustivos estudos (tábua de salvação). É o caso das UPPs hoje implantadas em modelo estrutural experimental. Sem ostentar portentosos aquartelamentos, elas ultrapassam em efetivo a fração do Posto de Policiamento Comunitário (PPC) e do Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO). E amanhã poderão servir de inspiração (mudança de atitude) para diminuir o tamanho dos quartéis (comportamento revolucionário). Não por obra e graça de irresponsabilidades governamentais, mas por meio de negociações justas e aquisição de imóveis menores e bem localizados. Eis como se deve descentralizar racionalmente o efetivo, impondo-lhe vocação policial, “formato” ideal a atender à “função”, significando o inverso do que o Cel Cerqueira, em severa crítica, denominava como “pequenos exércitos” ao se referir às Polícias Militares.
É verdade!... O Cel Cerqueira não se enganou... Sua semente floresce, porque, defeituosas ou não, vaiadas ou aplaudidas, as UPPs (fruto de conceitos dele) não mais serão desativadas a não ser por conta de raios e trovões. Por outro lado, serão elas, as UPPs, − no melhor sentido condenadas à proliferação por todo RJ, − serão elas, as UPPs, que determinarão o fim dos grandes efetivos concentrados em batalhões e companhias independentes a pretexto de esperar alguma mobilização pelo Exército para fins de Segurança Interna ou Guerra (hipóteses remotíssimas). Mas segurança pública não é só PM...
A realidade é que a segurança pública no Brasil lembra um edifício destinado a uma numerosa coletividade, mas desprovido banheiros por falha arquitetural. E por mais que tentem reparar o prédio, e novas formas sejam sugeridas (em normas constitucionais, leis e decretos federais, avisos ministeriais etc.) não desenham banheiros, permanecendo o edifício, portanto, inabitável. Sim, a forma não pode seguir a função, pondo por terra a máxima arquitetural de Louis Sullivan (1988)5: “O formato segue a função”. Eis o ponto em que esbarrou o sonho do Cel Cerqueira: ele almejou mudar a “função”, mas não lhe era dado, como Comandante-Geral ou Secretário de Estado de Polícia Militar, o poder de interferir no “formato”, que pertence à União como intransponível óbice conjuntural: as Polícias Militares são “forças auxiliares reserva do Exército” e, segundo a Lei Maior, “compete privativamente à União legislar sobre: (...) normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares;” (Inciso XXI do Art. 22 da CRFB). O grifo meu na organização se deve ao ensinamento da TGA (Teoria Geral da Administração) no sentido de que, para existir, uma organização não pode prescindir de cinco variáveis básicas: “estrutura, tecnologia, ambiente, tarefa, e pessoas”. Acresce a este rol, atualmente, a “competitividade”, sem a qual uma organização poderá ser extinta para dar lugar a alguma concorrente com maior grau de eficiência (estrutural), com acurada eficácia (resultados ótimos) e com maior efetividade (aplausos).
Quando me refiro à segurança pública como aquele edifício sem banheiros, tento resumir o esforço inútil dos amantes deste campo específico do conhecimento que até hoje se observa no mundo acadêmico. São geralmente sociólogos, psicólogos sociais, cientistas sociais, juristas, antropólogos e semelhantes, demais de diversos profissionais de polícia que se dedicam a avaliar exaustivamente como as coisas são feitas em sucesso ou fracasso, mas todos proibidos de indagar: “Por que são feitas?” Foi para vencer esse obstáculo petrificado na Carta Magna que o Cel Cerqueira tentou (e parece que minimamente logrou) mudar atitudes e comportamentos dentro e fora da instituição. Pena que a morte o tenha surpreendido exatamente quando ele reunia todas as suas vivências para jorrar na sociedade suas abalizadas conclusões. Entretanto, não podemos ignorar o maior de todos os óbices: em se tratando de segurança pública, enquanto não se alterar a Carta Magna e leis referentes (“mudança revolucionária”) para se modificar o “formato”, tudo será pouco no sentido de mudar a “função”.

1. Gualazzi, Ilacyr Luiz – Teoria do Desenvolvimento Organizacional – extraído da página HTTP://www.unimep.br/gualazzi.

2. Cerqueira, Carlos Magno Nazareth. “As políticas públicas do governo Leonel Brizola. In: Cerqueira, C. M. N.: O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de janeiro: Freitas Bastos, 2001. In: Sonho de uma polícia cidadã: Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Rio de Janeiro: Núcleo de Identidade Brasileira e História Contemporânea (NIBRAHC – UERJ), 2010.

3. Gualazzi, Ilacyr Luiz – Teoria do Desenvolvimento Organizacional – extraído da página HTTP://www.unimep.br/gualazzi (
http://www.lgti.ufsc.br/O&m/aulas/Aula3/teoria.htm).

4. Ibidem – Teoria do Desenvolvimento Organizacional – extraído da página HTTP://www.unimep.br/gualazzi (
http://www.lgti.ufsc.br/O&m/aulas/Aula3/teoria.htm.).

5. Sullivan, Louis, in CARTER, Cris, Stewart R. Clegg e Kornberger (tradução: Raul Rubenich) – Um livro bom, pequeno e acessível sobre estratégia – Bookman – Porto Alegre
– 2010.

2 comentários:

Paulo Xavier disse...

Relutei bastante antes de tecer esse comentário, mas vamos lá...
Quando o Cel Cerqueira assumiu o comando geral da PMERJ eu havia sido defenestrado da corporação recentemente. Muitos amigos, inclusive oficiais, me aconselharam a entrar com um pedido de reinclusão pois meu caso foi bastante estranho, com uma única acusação de um Sd PM, que nunca teve coragem de me encarar de frente, e muitos depoimentos favoráveis, fui mandado embora assim mesmo, sem nenhuma prova concreta, contrariando uma máxima jurídica em que "o ônus da prova cabe a quem alega". Resumindo, após um novo CRD, foi publicado em boletim do 12° BPM a minha reinclusão, que não foi homologada pelo então cmt geral.
Procurei saber o motivo e vi com tristeza que forças ocultas trabalharam sorrateiramente para impedir a minha reinclusão aos quadros da PM. Aliás gosto de ler e reler as últimas páginas (Dedicatória especial)do livro Cavalos Corredores e gostaria de homenagear esses inimigos com essa dedicatória.
Hoje refiz minha vida, estou bem,aprendi muito com o sofrimento, porém guardo alguma mágoa, inclusive do Cel Cerqueira. Talvez um dia nos encontraremos no outro plano, para onde ele já foi e gostaria de lhe dizer: Carlos Magno, me dê um minuto da sua atenção, que agora eu vou lhe contar toda a verdade.

JORGE ALVES disse...

Sr. Cel. Laranjeira,

Fico, não surpreso, mas admirado como em tão poucas palavras conseguiste resumir de forma próxima a perfeição o momento da nossa Corporação, falando deste que é o maior ícone da História não da PMERJ mas das Policias Militares latino-americanas, Cel. PM CARLOS MAGNO N. CERQUEIRA.

A vinculação das Policias ao Exercito Brasileiro foi obra de Getulio Vargas, após o movimento Constitucionalista de São Paulo em 1932, Getulio questionou o pq levou a três meses de resistência dos Paulistas contra todo o Exercito Brasileiro?
A matemática respondeu da seguinte forma, o exercito paulista possuía quarenta mil homens, sendo quinze mil soldados profissionais, deste, treze mil Policiais Militares.
O governo federal não tinha controle algum das Policias Militares Estaduais, Getulio Vargas cria este controle vinculando como força auxiliar do Exercito as Policias Militares.
O governo federal aumentou o controle sobre as polícias estaduais e dessa maneira diminuiu a influência da Força Pública Paulista, denominação da Policia Militar Paulista à época.
A partir de então, o governo federal publicou uma série de leis e decretos visando a controlar as polícias estaduais. Dentre eles se destaca a lei nº 192, de 1936, que reorganizava as polícias militares, determinando além da competência ordinária de garantia da ordem pública e segurança das instituições, a competência de “atender a convocação do governo federal em caso de guerra externa ou grave comoção intestina segundo a lei de mobilização”, reiterando sua condição de reserva do exército prevista na Constituição de 1934.
Este comportamento não foi alterado nas constituições seguintes, nem mesmo na Constituição “CIDADÔ de 1988.

Prezado Comandante continuarei a acompanhar suas idéias neste espaço.

Obs.: Meu Velho e incomparável Pai, Luiz te manda um forte abraço.

Jorge Alves
http://aprendizalves.blogspot.com