domingo, 5 de junho de 2011

DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DOS BOMBEIROS





Por Jorge da Silva, Cel PM e Professor Universitário






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(Nota prévia. Republico abaixo, a propósito dos protestos e da prisão dos bombeiros do Rio de Janeiro, postagem que publiquei em 18 de maio de 2009 (Direitos humanos e a Cidadania dos PMs). Nos dois casos (PMs e BMs), a pergunta a fazer é a seguinte: o que esperar de profissionais aos quais, no Brasil inteiro, são vedados os direitos reconhecidos aos demais trabalhadores, e dos quais se exige que recebam salários de fome sem reclamar? Não pode dar certo. Onde se lê PMs, leia-se BMs.)
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DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DOS PMs

Este pequeno texto objetiva trazer à baila o problema da negação de direitos aos policiais-militares. A análise é confinada aos conceitos de direitos humanos e de cidadania, os quais, embora intimamente relacionados, não possuem o mesmo significado, como se sabe. Inobstante este fato, cumpre aclarar a distinção entre ambos, a fim de mostrar a forma diferenciada como afetam o dia-a-dia desses profissionais.

Os direitos humanos são inerentes a todos os seres enquanto tais, independentemente do lugar do mundo em que tenham nascido e de noções como condição social, fenótipo, origem etc. Assim, por exemplo, são iguais, como humanos, a mulher e o homem, o milionário e o mendigo, o juiz e o ladrão, o general e o soldado. Nenhum deles pode ser submetido a tortura, física ou mental, nem exposto ao escárnio público. São direitos universais indisponíveis, pois pairam acima das idéias de soberania nacional, pátria etc., mesmo em regimes ditatoriais.

Já a cidadania refere-se à condição em que os grupos humanos são inseridos numa sociedade nacional específica, à luz do ordenamento jurídico, resumido no brocardo “Igualdade perante a lei”. Tem a ver com direitos e deveres e com a cultura local. Exemplificando. Não faz tanto tempo que a Constituição da República vedava às praças de pré, às mulheres e aos analfabetos o direito de votar e ser votado. Ao brasileiro de 16 anos é garantido hoje o direito ao voto, porém só os maiores de 18 são considerados adultos pela lei penal. Ainda: em certos países, a cidadania do homem inclui o direito de possuir duas ou mais esposas, o que, em outros, como o Brasil, é crime.

Vê-se, portanto, que, num caso, estamos falando do ideal da igualdade absoluta, tendo como referência a própria condição humana; no outro, de igualdade “regulada” pelo Estado, referida ao aparato legislativo, do qual, não raro, promanam disposições que afrontam os direitos humanos.

No caso dos PMs, a distinção praticamente se neutraliza, de vez que é notória a indiferença da sociedade tanto para com a crescente quantidade de mortos, incapacitados e expostos a riscos desnecessários (direitos humanos) quanto para com os seus aviltantes salários, condições de trabalho e parcos direitos sociais (cidadania).

No que tange aos seus direitos humanos, tendo em vista que o Estado, em qualquer sociedade, é o seu principal violador; e que os policiais (em especial os PMs) são os agentes públicos mais visíveis, resulta difícil chamar a atenção da população para o fato de que, na luta contra o crime, esses profissionais são muito mais vítimas do que vitimizadores. Vítimas não só dos bandidos, mas, sobretudo, dos orquestradores públicos e privados da violência estatal. Estes, depois de atiçarem os PMs de modo a que se lancem na “guerra” como camicases urbanos, voltam-lhes as costas quando, aos olhos da mídia, algo sai errado. Aí, para salvar a própria pele, esgueiram-se ardilosamente pelos desvãos da irresponsabilidade, sem se inibirem de engrossar o coro dos que execram publicamente os policiais azarados. Pior: não se pejam de pegar carona nos enterros de PMs para, fingindo solidariedade à família e ao falecido – feito “herói-morto” –, aproveitar a ocasião para reforçar o seu proselitismo.

Em se tratando especificamente da sua cidadania, bastará um ligeiro exame da Constituição e da legislação específica para situar a condição em que os PMs são inseridos na estrutura da sociedade brasileira. Ver-se-á que, sem sombra de dúvida, se trata dos trabalhadores com a maior carga de obrigações e a menor parcela de direitos. Dos brasileiros com a maior carga horária de trabalho, comparados aos de qualquer outra atividade ou instituição. Senão vejamos.

Ao trabalhador brasileiro em geral são impostos deveres e reconhecidos direitos, tais como, dentre outros: jornada máxima de 44 horas semanais, hora extra, repouso semanal remunerado, férias anuais, direito de greve etc.; ao servidor público em geral são também garantidos os mesmos direitos, mas seus deveres vão além, como, por exemplo, a proibição de intermediar interesses, de participar de firmas que contratem com o governo, de manifestar-se publicamente sobre assuntos do serviço sem autorização etc.; ao servidor público policial civil são impostas restrições maiores, expressas em estatuto e em regulamento disciplinar próprios, tornando-o passível até mesmo de prisão administrativa. No caso do servidor público PM, ademais de se somarem todos esses deveres e vedações, paira sobre a sua cabeça, na condição “especial” de militar, atribuída a ele pela Constituição, a espada de Dâmocles do regulamento disciplinar e do Código Penal Militar, que o obrigam a estar à disposição da Corporação, sem direito de reclamar, durante as 24 horas do dia, os 365 dias do ano, proibido inclusive de executar, mesmo nas horas de folga, alguma atividade para complementar a renda familiar. Hora extra? Repouso semanal? Direito de greve, de sindicato? Nem pensar… Em suma, o PM é submetido a uma espécie de capitis deminutio maxima (perda total da cidadania): não desfruta os direitos do trabalhador comum, nem os do servidor público em geral, nem os do policial civil.

Curiosamente, nada disso sensibiliza os detratores da PM, que só se interessam pelos erros e desvios de conduta. Em vez de o risco de morte e as limitações de cidadania assegurarem aos PMs compensação pecuniária ou alguma prerrogativa – como era de se esperar –, acarretam-lhe, ao contrário, menosprezo e as conhecidas desqualificações. De nada adianta falar nas centenas de milhares de ações corretas e meritórias. Ora, que tipo de segurança pode oferecer à população alguém que sai para trabalhar inseguro, e revoltado com a forma preconceituosa como é tratado, sem saber se vai voltar para casa ao fim do dia? Alguém cuja retribuição salarial é insuficiente sequer para habitar com a família em condições condignas, e sem ver atendidas as necessidades básicas dos filhos? Alguém sob permanente tensão que, em relação à população como um todo, é muito mais vulnerável a doenças ocupacionais como o estresse, a hipertensão, distúrbios neurológicos, depressão etc., que podem levá-lo ao alcoolismo e, no limite, ao suicídio, como frequentemente ocorre?

O que causa espanto é como os PMs, inobstante tanta desvalorização, não esmorecem, parecendo não se darem conta de que foram erigidos pelo próprio “sistema” a bodes expiatórios da sociedade! E que assumam como unicamente sua uma “guerra” que não foi inventada por eles! Guerra inútil, insana (ou de propósitos inconfessáveis…). Como podem seguir iludidos, sem refletir sobre o fato de serem usados como peças descartáveis de uma engrenagem que mal conhecem?

Em benefício de todos, é indeclinável a necessidade de que os policiais-militares tenham o seu status social elevado, o que dependerá tanto da determinação dos mesmos em repensar a Instituição (e de fugir ao papel subalterno a que se têm submetido de forma passiva) quanto da compreensão da sociedade de que isto é do seu próprio interesse. Numa democracia de fato, os policiais são a primeira linha de defesa dos direitos humanos (sic). De todos, incluídos os seus.

5 de junho de 2011 às 1:26
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2 comenários to “DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DOS BOMBEIROS”
1. José Carlos B. Braga disse:
5 de junho de 2011 às 11:46
Caro Jorge,
Agradeço a distinção como destinatário.

O texto aborda, com muita clareza e propriedade, como é peculiar ao autor fazê-lo, o “papel social” que Governos e Sociedade resolveram destinar às PMs: “Bombril “! Têm “mil e uma utilidades”, custam muito barato, podem ser empregados como melhor se entender fazê-lo, a qualquer tempo e por qualquer tempo, com a grande vantagem de serem seus integrantes totalmente “descartáveis” sem maiores riscos “ao ambiente” sempre que se mostrem absolutamente gastos, inócuos ou inconvenientes! E isto também se aplica ao Corpo de Bombeiros que, no caso do Rio de Janeiro, é uma corporação à parte.

Consolidei essa concepção quando no CSPM, em 1986, e tive oportunidade de mencioná-la em Trabalhos Técnicos e de manifestá-la durante questionamento a palestrante, no caso o então Secretário Estadual de Fazenda,Cesar Maia.

Entendo que se um servidor é submetido a regime especial de trabalho, que lhe impõe condições especiais e restrições reivindicatórias, a ele deve ser dado tratamento especial correspondente e absolutamente proporcional
aos deveres e às atribuições que lhe são impostos.

Há muito o que se fazer nesse sentido!

No caso atual, a reivindicação é justíssima! Absolutamente inquestionável!
Já a forma como foi conduzida a manifestação, sobremodo no seu final, mostrou-se-me equivocada, imatura, condenável. Incompatível com o comportamento que se espera da categoria, tanto quanto o aviltante salário e as péssimas condições de trabalho que lhes concede o Governo.

Saudações,
José Carlos.

2. jorge disse:
5 de junho de 2011 às 12:39
Caro José Carlos,
Também achei condenável a invasão do quartel central.

3. Emir Larangeira disse:
O seu comentário está aguardando moderação.

5 de junho de 2011 às 14:18
caro Cel Jorge

Seu texto é lapidar e deveria ser lido, compreendido e praticado pelos jovens que hoje comandam os destinos da PMERJ e do CBMERJ em vista dos delírios de políticos que, como tão bem expõe o estimado cel José Carlos Barbosa Braga, tratam os valorosos integrantes dessas instituições como esponjas de aço descartáveis. Com a sua permissão, vou postar seu artigo no meu blog, inserindo também os lúcidos comentários.

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