sábado, 29 de janeiro de 2011

Saudade

As fotos atam as duas pontas da vida do meu tio Urany Larangeira


Admirei e amei muita gente ao longo dos meus anos idos e vividos. Um amor, entretanto, foi especial: meu tio Urany Larangeira.

Durante anos a fio eu o amei por tudo que ele representava: coragem, inteligência, cultura, alegria de viver, bom humor, carinho extremoso, e, principalmente, sua dedicação ao violão.

Violão à parte, tio Urany esbanjava jovialidade. Sua motivação pela vida contagiava-me. Seus conselhos jamais foram caretas. Ele respeitava todas as nossas diferenças, que, na verdade, eram poucas: ele era o meu exemplo.

Tio Urany me foi, durante toda a sua existência terrena, um “tio-pai-irmão”. Não me ocultava seus defeitos; não era professoral, embora me ensinasse a viver o tempo todo. Com paciência incomum, narrava-me histórias passadas do pai e de todos os irmãos dele: meus tios. Avaliava cada qual com precisão; não lhes mascarava as virtudes e os defeitos, incluindo-se na crítica com tranquilidade. Era um ótimo contador de histórias. Sinto saudade de suas histórias. Sinto saudade dele...

Detentor de impressionante talento para a vida, − não apenas para a música, − meu tio era capaz de executar com maestria labores pesados de pedreiro, carpinteiro, mecânico, eletricista etc. Gostava também de inventar engenhocas. Certa vez transformou um motor barulhento de liquidificador em ventilador silencioso. Não me perguntem como, mas lá estava a engenhoca jorrando ar fresco em quem duvidasse. Claro que, dentre tantas habilidades, consertar violão era uma delas, demais de tocá-lo em acurada erudição. Não apenas tocava, mas escrevia as músicas na pauta como se estivesse exercitando atividade simples.

Na sua vida de grandes aventuras, foi motorista de caminhão a viajar Brasil afora; foi amante da arte circence; foi sargento de polícia laureado com o primeiro lugar no Curso Profissional, que lhe daria direito à promoção a tenente; foi um senhor cavalariano, mas saiu da briosa a ocupar outras profissões no mundo. Ele era um devoto da liberdade...

Enquanto sargento da antiga Força Policial do RJ fez parte, comandado pelo histórico Tenente Coraci (pai do querido amigo, Delegado de Polícia, Dr. Idovan Ferreira) da primeira Volante da corporação com circunscrição estadual. Haja histórias desses tempos, algumas bastante picantes e perigosas! Mas ele, em destemor, enfrentava tudo e honrava o nosso nome de família. Foi decisiva a sua influência para eu ingressar na PMRJ, esquecendo-me de minha vocação original para a medicina.

Com o violão na posição correta da execução primorosa, tio Urany tocou em circos, rádios e demais lugares compatíveis com o exercício da arte apurada do violonista. Acompanhava o cantor Augusto Calheiros em suas apresentações e fazia música para o canto ao vivo de muitos artistas famosos nas rádios e nos circos de sua época. Conviveu com a nata da música popular brasileira, tocando com Dino Sete Cordas, Carlinhos Seis Cordas, Jonas do cavaquinho, todos do Conjunto Época de Ouro. Tocava todas as músicas de Dilermando Reis, inclusive algumas não gravadas e desconhecidas do público.

Tio Urany era o Uirapuru na floresta das cordas musicais. Nas rodas em que se apresentava, havia o seu momento solo das músicas restritas a violonistas clássicos. No silêncio de sua floresta composta de craques no chorinho e equivalentes reproduções, ele dedilhava Una Lágrima de Sagrera entrava a executar Catedral e outras músicas dificílimas, de Mozart a Schubert, levando ao êxtase os presentes, mas sem perder sua principal característica: a humildade. Sim, ele respeitava deveras seus parceiros dos domingos à tarde, gentes famosas que iam a casa dele se deliciar da boa música. Ele era amado e admirado.

Nem preciso dizer que o mais entusiasmado admirador dele era eu. Contudo, não tive a sorte de nascer com o talento dele. Isto coube ao meu primo Levi, filho dele, caçula, que mora no Paraná.

Tio Urany foi também professor de Matemática em Colégios Públicos. Era chamado pelos alunos de “Divino Mestre”. Esse meu tio, ah, esse meu tio era um craque em tudo que fazia! Daí a saudade que sentirei dele até partir para encontrá-lo, decerto num bom lugar, de muita música e eletrizantes histórias de vida. Tenho, às vezes, medo de não merecer tal privilégio por falta de talento musical ou de fé. Mas creio que meu amor pelo tio Urany me levará até ele. E lá reencontrarei meu pai, meus tios, primos, irmão e muitas gentes familiares e amigas pelas quais nutro uma saudade enorme.
Porque é certo que todos devem ter pedido para ficar com ele ouvindo os acordes do seu violão mágico e vendo os seus dedos deslizarem nas primas e nos bordões com a suavidade da brisa ou com a vibração da tempestade, pois ele fazia chover. Sim, sim, ele fazia chover ao tocar; ou fazia parar a chuva, tanto faz, eis que seus admiradores não viam ou sentiam nada além daquele raro momento de música executada por um virtuoso desde menino.

9 comentários:

Paulo Xavier disse...

Cel Larangeira.
Deus não lhe deu o talento para a música, mas o dotou de extrema sensibilidade para a arte das letras. Como é bom ler seus livros, seus contos, suas crônicas e suas histórias!
Herdartes sim, do seu tio Urany o respeito ao próximo, e vejo isso no seu apurado senso de justiça e no trato com os mais humildes, pois são virtudes que caminham juntas.
Provavelmente outros talentos foram represados devido as circunstâncias da vida, pois é sabido que quem sai aos seus não degenera e com certeza o sr não degenerou.
Depois de uma gostosa leitura numa manhã ensolarada de sábado, só posso de dizer: Bom dia e parabéns.

NEIDE disse...

QUEM DERA A MUITOS BRASILEIROS TEREM ALGUÉM DE QUEM SE LEMBRAR COM TAMANHA ADMIRAÇÃO, RESPEITO, CARINHO E AMOR. O QUE FALTA NESTE NOSSO MUNDO É JUSTAMENTE ISSO. O RECONHECIMENTO DO SENTIDO "FAMÍLIA". O SENHOR FOI AGRACIADO COM ESTE PRIVILÉGIO. QUE SUAS LEMBRANÇAS DEIXE EM SUA FAMÍLIA ESSE SENTIMENTO, POIS, EXEMPLO DE VIDA JÁ O TEM: O SENHOR. PARABÉNS!

Anônimo disse...

Para quem gosta de boa música, existe no mercado um CD chamado Recital de Violão-Guitar Recital, de Carmen Di Novic, são 14 composições sendo 3 de autoria do Urany Larangeira. Vale a pena conferir!

Tiago Alexandre disse...

Caro Larangeira,
gostaria de parabenizá-lo por tão excelente texto. Quanta sensibilidade que sentimos ao ler seus textos, mas este em especial, para mim, um dos melhores. Há pessoas que passam em nossas vidas e mesmo indo, permanecem para sempre em nossas vidas. Grande abraço e parabéns mais uma vez!
Tiago

Emir Larangeira disse...

Muito obrigado ao anônimo! Eu não sabia do CD. Sabia da violonista, que deve ter sido aluna do tio. Adorei ver Cintia no rol do CD. Trata-se de neta do tio, minha prima de 2º grau. Ele compôs a música quando ela nasceu. E também, claro, a canção Una Lagrima, minha predileta. Vou aproveitar para fazer a propaganda do CD aqui no blog, aliás com muito orgulho.
Abs

Priscila Larangeira disse...

Após lermos seu Post sobre Urany Larangeira nós seus familiares e sua companheira Helena agradecemos e parabenizamos você pela inspiração de palavras tão verdadeiras que esboçaram fielmente a personalidade desse amigo, companheiro, pai e avô. Que Deus abençoe você sempre. Um beijo sua tia Helena.

Emir Larangeira disse...

Oh, tia Helena! A senhora sabe mais que todo mundo o quanto eu amava meu tio Urany, meu herói em todos os sentidos. Dentre muitos júbilos por ser sobrinho dele, guardo com carinho os comentários de que eu me parecia com ele fisicamente. Ou seja, eu era "bonitão" como ele. Hehehe. A senhora é dez! Muito do que tio Urany foi de ótimo deve à senhora. Beijos mui carinhosos deste seu sobrinho

Anônimo disse...

Parabéns!!! sou filha do seu grande amigo idovan ferreira. Bj. Ilana.

Anônimo disse...

Emir disse: Idovan Ferreira, mais que amigo, um irmão mais velho, um ídolo!