terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O ENGODO DA CALAMIDADE

Imagens de Hiroshima, Nagasaki, Berlim e San Francisco
(Fonte: Google - Internet)



Na transição entre a fase aguda e a fase de recuperação da calamidade, momento caracterizado pela certeza do número de mortos somada à incerteza do número de desaparecidos que permanecerão sepultados no lamaçal serrano, as filas dos desesperados aumentam em vista da oferta governamental do “aluguel social”. Vê-se hoje, em primeiras páginas de grandes jornais, o rebanho de sem-teto mais uma vez humilhado. Em vez de os assistentes sociais irem até os desgraçados nos abrigos improvisados, melhor lugar para se ter a certeza do desabrigo, são eles, conformados flagelados, que têm de se virar para enfrentar a vergonhosa fila. Confirma-se assim, singelamente, a dura realidade do descaso governamental e societário com a dignidade humana, valor físico e moral apenas fictício nesta sociedade consumista e concentradora de poder e riqueza no topo da pirâmide. A fila de flagelados expõe as chagas de um sistema político fracassado nos seus fins sociais e bem-sucedido no desvio de finalidade e nas roubalheiras. A tragédia da serra fluminense é apenas mais um exemplo de que a solidariedade do primeiro momento (só ocorre no primeiro momento) rende dividendos emocionais e midiáticos, espécie de expiação de pecados acumulados pela sociedade hipócrita. Os exemplos isolados de ajuda humanitária são projetados em tantas páginas que até sugerem a solução definitiva do problema; também alguns episódios de heroísmo são ampliados brilhantemente, e a tragédia perde o seu foco, e em pouco tempo se esvai no esquecimento. Contados os mortos e os desabrigados em números nunca completos, pois muitas gentes permanecerão sepultadas nos lamaçais, o sol traz de volta a aparente normalidade da bomba de pavio apagado, até o dia em que algo ou alguém o acenda e produza nova desgraça... Enquanto isso a vida continua, à exceção dos atingidos, estacados na miséria falsamente atendida por meio de artifícios como o tal “aluguel social” e outros paliativos ornados em promessa de “minha casa, minha vida” e demais acenos de obras faraônicas que se tornarão fade e desaparecerão até a próxima tragédia. Quem conhece a doutrina de atendimento de Defesa Civil sabe que a calamidade crônica não sensibiliza ninguém. A aguda, sim. Nesta, geralmente consequência da outra, ou seja, do acúmulo de desídias governamentais e societárias, a reação humanitária mais parece mea culpa. Não soa como atenção real com os despossuídos que vivem pendurados nas encostas ou encravados nas calhas de rios e riachos esperando a enxurrada e os deslizamentos lamacentos, ambos letais. Porque a fase crônica da calamidade se assemelha ao cotidiano de todos: de perigo incubado, de desgoverno, de irresponsabilidade na gestão pública, de roubalheiras impunes e muito pannis et circencis a embalar o povoléu desprotegido. Erich Fromm certa vez afirmou que “a calamidade é ruim para o povo, mas boa para a sociedade”. Jean-Jacques Russeau também deixou para a posteridade um importante alerta no sentido de que “o homem é naturalmente bom e afável, mas a sociedade o deturpa”. Enfim, ambos concluíram com sabedoria que a sociedade organizada não passa de invenção humana fadada ao fracasso e só reage quando atingida em extremo insuportável. Pior é que não há como alterar a cultura da “organização social” fundada na necessidade da existência de um Estado forte a garantir a “ordem” como seu pré-requisito de funcionamento: estado interventivo e paternalista + povo conformado e clientelista = tragédia anunciada. O modelo estatal falido subsiste desde os remotos tempos, e todas as variações de vida societária vêm falhando e produzindo desastres bem mais artificiais que naturais. Já a natureza apenas age ou reage segundo o seu determinismo. Quem insiste em desnaturar tudo é o ser humano. E quando vê a consequência dos seus erros, apela para a emoção de primeira hora a suprir sua própria preguiça e a tentar sanar sua sem-vergonhice atávica. Por isso é que Erich Fromm afirmou ser a calamidade boa para a sociedade, decerto relembrando Hiroshima e Nagasaki, ou San Francisco (Califórnia), ou Berlim. Sim, o impressionante soerguimento dessas localidades ocorreu em vista de tragédias agudas e totais. No nosso caso (calamidades crônicas estourando aqui, ali e acolá em fases agudas), as desgraças de poucas vítimas são o aviso de que outras, grandiosas e totais, estão próximas...

Um comentário:

Paulo Xavier disse...

A história nos relata que as grandes potências mundiais de hoje são aqueles países que souberam se reerguer das crises, das calamidades e das guerras.
Ao término da Segunda Guerra Mundial, países como Japão, Alemanha e Itália estavam arrasadas, porém souberam se reconstruir com o povo e o governo unidos num mesmo ideal comum.
A nossa bela região serrana, devastada pelas chuvas, vai se reerguer, não tenho dúvidas, pois nossa gente é guerreira e não foge da luta, mas é preciso que o governo não se omita e faça a sua parte, afinal, pra que eles foram eleitos por esse mesmo povo$

*Leiam $ como interrogação.