Comentário preliminar
Como prometi, posto aqui mais um texto do Antropólogo e Filósofo Político Luiz Eduardo Soares. Entretanto, devo dizer que não concordo com a sugestão dele ressaltada no título, demonstrando-se prioritária em relação às demais propostas de mudança. Afinal, seu destaque poderá induzir o leitor a concluir que os demais órgãos de segurança pública, num sentido amplo e restrito de garantia da ordem pública, funcionam a contento, o que não é verdade.
Por outro lado, agora concordando com ele, também defendo uma mudança radical do sistema policial pátrio desconstitucionalizando a segurança pública, mas em visão abrangente e concomitante. Penso na concepção de num sistema nacional de segurança pública desdobrado em subsistemas estaduais e municipais sem a necessidade de regramento constitucional, geralmente estanque e de complicada reformulação em virtude do rito das Propostas de Emendas Constitucionais (PECs). O importante, primeiro, é formular a nova estrutura e seus fins como um autêntico sistema.
Não creio que “refundar as polícias” estaduais seja algo tão simples e romântico. Há muitas PECs tramitando no Congresso Nacional que cheiram a conspiração contra as Polícias Militares pelo realce que dão às Polícias Civis. A fricção é a mais e mais inegável, a competitividade não é saudável, eis que conflituosa. As PECs induzem, enfim, ao errôneo pensamento de que as atuais Polícias Civis estaduais, em contraponto às Polícias Militares, são eficientes e eficazes. Reitero veementemente que não é verdade.
As referidas PECs, demais de extinguirem as Polícias Militares sem delongas, e como se fosse assunto fácil, no caso das Polícias Civis propõem a troca de meia dúzia por seis e acrescentam as atividades das Polícias Militares às delas. Ou seja, desconstroem a receita do bolo e a reconstroem apenas invertendo a ordem dos mesmos ingredientes estragados. Portanto, qualquer tentativa de solução parcial tenderá ao fracasso, e mais uma vez o formato não seguirá a função, como sugere a máxima arquitetural de Louis Sullivan (1988): “O formato segue a função”1.
O aforismo, embora não seja unânime, é usual no âmbito do Planejamento Organizacional: sugere que a estrutura de uma organização deva ser redesenhada tendo os olhos cravados em diagnosticados objetivos e nos ótimos resultados a alcançar. E se no mundo particular a resistência a mudanças é um fato, no múnus público as instituições costumam se apegar ainda mais às tradições. E esse apego não é privilégio de organizações militares; afeta igualmente as instituições públicas civis às vezes até com maior força. Por conseguinte, não será fácil redesenhar as polícias estaduais para adequá-las aos reclamos democráticos.
Claro que o antropólogo não tem compromisso com as inauditas PECs. Elas podem ser lidas no blog do Cel PM Josias Quintal: www.celjosiasquintal.wordpress.com. Basta lê-las para não se lhes garantir isenção. Grafo então o desafio: vamos mudar, mas como se dará o primeiro passo?... Não seria melhor global e único? Seja como for, de uma coisa tenho a mais absoluta certeza: a resistência às mudanças, vindas de todas as partes, será tão tamanhona que mais parecerá briga de dinossauros terópodes enraivecidos...
Por que então não se pensar no ciclo completo de polícia para começar? Por que não pôr cada polícia atuando em áreas diferentes?... Com certeza, o Ministério Público detém poderes suficientes para fiscalizar e garantir bons resultados na competitividade entre as polícias. Atuando em regiões diferentes, o conflito máximo que se poderia esperar das atuais corporações policiais seria durante uma partida de futebol. Nesse caso, porém, o Árbitro (Juiz de Futebol) teria de ser Juiz de Direito!...
Ora bem, já que o jogo é difícil, por que não iniciá-lo pelo sistema carcerário para que este absorva condignamente a futura demanda? Afinal, ela aumentará deveras na medida em que a atuação das polícias, em ciclo completo, terá de ser eficiente e eficaz. Eis a questão: hoje o sistema carcerário é uma afronta aos direitos humanos e parece que ninguém vê, embora esteja à vista de todos. Paro por aqui para não fazer da emenda o soneto...
1. Sullivan, Louis, in CARTER, Cris, Stewart R. Clegg e Kornberger (tradução Raul Rubenich) – UM LIVRO BOM, PEQUENO E ACESSÍVEL SOBRE ESTRATÉGIA – Bookman – Porto Alegre – 2010.
Refundar as Polícias
Como prometi, posto aqui mais um texto do Antropólogo e Filósofo Político Luiz Eduardo Soares. Entretanto, devo dizer que não concordo com a sugestão dele ressaltada no título, demonstrando-se prioritária em relação às demais propostas de mudança. Afinal, seu destaque poderá induzir o leitor a concluir que os demais órgãos de segurança pública, num sentido amplo e restrito de garantia da ordem pública, funcionam a contento, o que não é verdade.
Por outro lado, agora concordando com ele, também defendo uma mudança radical do sistema policial pátrio desconstitucionalizando a segurança pública, mas em visão abrangente e concomitante. Penso na concepção de num sistema nacional de segurança pública desdobrado em subsistemas estaduais e municipais sem a necessidade de regramento constitucional, geralmente estanque e de complicada reformulação em virtude do rito das Propostas de Emendas Constitucionais (PECs). O importante, primeiro, é formular a nova estrutura e seus fins como um autêntico sistema.
Não creio que “refundar as polícias” estaduais seja algo tão simples e romântico. Há muitas PECs tramitando no Congresso Nacional que cheiram a conspiração contra as Polícias Militares pelo realce que dão às Polícias Civis. A fricção é a mais e mais inegável, a competitividade não é saudável, eis que conflituosa. As PECs induzem, enfim, ao errôneo pensamento de que as atuais Polícias Civis estaduais, em contraponto às Polícias Militares, são eficientes e eficazes. Reitero veementemente que não é verdade.
As referidas PECs, demais de extinguirem as Polícias Militares sem delongas, e como se fosse assunto fácil, no caso das Polícias Civis propõem a troca de meia dúzia por seis e acrescentam as atividades das Polícias Militares às delas. Ou seja, desconstroem a receita do bolo e a reconstroem apenas invertendo a ordem dos mesmos ingredientes estragados. Portanto, qualquer tentativa de solução parcial tenderá ao fracasso, e mais uma vez o formato não seguirá a função, como sugere a máxima arquitetural de Louis Sullivan (1988): “O formato segue a função”1.
O aforismo, embora não seja unânime, é usual no âmbito do Planejamento Organizacional: sugere que a estrutura de uma organização deva ser redesenhada tendo os olhos cravados em diagnosticados objetivos e nos ótimos resultados a alcançar. E se no mundo particular a resistência a mudanças é um fato, no múnus público as instituições costumam se apegar ainda mais às tradições. E esse apego não é privilégio de organizações militares; afeta igualmente as instituições públicas civis às vezes até com maior força. Por conseguinte, não será fácil redesenhar as polícias estaduais para adequá-las aos reclamos democráticos.
Claro que o antropólogo não tem compromisso com as inauditas PECs. Elas podem ser lidas no blog do Cel PM Josias Quintal: www.celjosiasquintal.wordpress.com. Basta lê-las para não se lhes garantir isenção. Grafo então o desafio: vamos mudar, mas como se dará o primeiro passo?... Não seria melhor global e único? Seja como for, de uma coisa tenho a mais absoluta certeza: a resistência às mudanças, vindas de todas as partes, será tão tamanhona que mais parecerá briga de dinossauros terópodes enraivecidos...
Por que então não se pensar no ciclo completo de polícia para começar? Por que não pôr cada polícia atuando em áreas diferentes?... Com certeza, o Ministério Público detém poderes suficientes para fiscalizar e garantir bons resultados na competitividade entre as polícias. Atuando em regiões diferentes, o conflito máximo que se poderia esperar das atuais corporações policiais seria durante uma partida de futebol. Nesse caso, porém, o Árbitro (Juiz de Futebol) teria de ser Juiz de Direito!...
Ora bem, já que o jogo é difícil, por que não iniciá-lo pelo sistema carcerário para que este absorva condignamente a futura demanda? Afinal, ela aumentará deveras na medida em que a atuação das polícias, em ciclo completo, terá de ser eficiente e eficaz. Eis a questão: hoje o sistema carcerário é uma afronta aos direitos humanos e parece que ninguém vê, embora esteja à vista de todos. Paro por aqui para não fazer da emenda o soneto...
1. Sullivan, Louis, in CARTER, Cris, Stewart R. Clegg e Kornberger (tradução Raul Rubenich) – UM LIVRO BOM, PEQUENO E ACESSÍVEL SOBRE ESTRATÉGIA – Bookman – Porto Alegre – 2010.
Refundar as Polícias
As polícias Militar e Civil não cooperam entre si: elas são geridas separadamente e seus cursos de formação pregam valores divergentes. Em comum têm apenas a cultura corporativa, às vezes desfavorável aos direitos humanos. O que pode ser feito para mudar esse cenário? Pouco, a não ser que alteremos a Constituição.
No Rio de Janeiro ninguém está satisfeito com as polícias, tanto Civil quanto Militar. Nem a sociedade, nem os próprios oficiais. Porém, as forças fluminenses não são as únicas em estado adiantado de degradação: suas deficiências apenas se tornaram mais visíveis.
Em quase todo o país as avaliações sobre essas corporações são negativas. Os baixos salários são o problema central e têm como consequência direta a necessidade de “bicos” para completar o orçamento familiar.
Nesse cenário, nada mais natural que a maioria dos policiais procure uma vaga na segurança privada. A lei proíbe, mas o bolso manda. E como não há fiscalização de fato para conter a jornada dupla, fica mais fácil burlar a regra – a responsabilidade sobre a segurança privada é da Polícia Federal, mas faltam agentes e sobram missões.
As secretarias estaduais, por sua vez, fingem que nada acontece. Se interviessem, implodiriam as contas públicas, que não resistiriam à emergência de uma demanda salarial reprimida. Afinal, é a segurança privada, informal e ilegal, que financia, indiretamente, a segurança pública, tornando possível um orçamento irreal. Eis aí o gato-orçamentário.
Mas quando não se fiscaliza a segurança privada para não atrapalhar o mal “benigno” ou a informalidade “bem-intencionada”, tampouco se vigia a ilicitude maligna. As milícias estão aí para não nos deixar mentir. E os turnos de trabalho irracionais? Quem teria coragem de racionalizá-los, se isso implica a quebra da espinha dorsal do bico?
Nos últimos anos, sobretudo no Rio, a corrupção policial agravou-se. A arcaica política do “confronto”, vendida como “nova” pelo cinismo oficial, conferia ao policial a autoridade para matar de forma arbitrária. E, ao mesmo tempo, lhe dava tacitamente o poder para negociar a vida e a liberdade, instituindo uma moeda forte e atraente – e em permanente inflação. Assim, o combate “fora-da-lei” ao crime buscou liquidá-lo utilizando-se de práticas como a execução de delinquentes. O resultado foi desastroso e paradoxal: uma polícia envolvida em dinâmicas criminosas e, portanto, impotente diante do próprio crime.
Admitindo a ilegalidade das execuções – sempre de pobres e, frequentemente, negros –, se aceita a ilegitimidade desses atos. O círculo vicioso da violência ilegal não se transforma no círculo virtuoso da legalidade. Só há legalidade com respeito a ela. Não existem atalhos.
Entre 2003 e 2007 as polícias fluminenses mataram 5.669 pessoas. Um escândalo mundial. Apenas no ano passado foram 1.330 as vítimas letais de ações policiais e, em 2008, quebrou-se o recorde mais uma vez – segundo dados preliminares.
No Rio de Janeiro ninguém está satisfeito com as polícias, tanto Civil quanto Militar. Nem a sociedade, nem os próprios oficiais. Porém, as forças fluminenses não são as únicas em estado adiantado de degradação: suas deficiências apenas se tornaram mais visíveis.
Em quase todo o país as avaliações sobre essas corporações são negativas. Os baixos salários são o problema central e têm como consequência direta a necessidade de “bicos” para completar o orçamento familiar.
Nesse cenário, nada mais natural que a maioria dos policiais procure uma vaga na segurança privada. A lei proíbe, mas o bolso manda. E como não há fiscalização de fato para conter a jornada dupla, fica mais fácil burlar a regra – a responsabilidade sobre a segurança privada é da Polícia Federal, mas faltam agentes e sobram missões.
As secretarias estaduais, por sua vez, fingem que nada acontece. Se interviessem, implodiriam as contas públicas, que não resistiriam à emergência de uma demanda salarial reprimida. Afinal, é a segurança privada, informal e ilegal, que financia, indiretamente, a segurança pública, tornando possível um orçamento irreal. Eis aí o gato-orçamentário.
Mas quando não se fiscaliza a segurança privada para não atrapalhar o mal “benigno” ou a informalidade “bem-intencionada”, tampouco se vigia a ilicitude maligna. As milícias estão aí para não nos deixar mentir. E os turnos de trabalho irracionais? Quem teria coragem de racionalizá-los, se isso implica a quebra da espinha dorsal do bico?
Nos últimos anos, sobretudo no Rio, a corrupção policial agravou-se. A arcaica política do “confronto”, vendida como “nova” pelo cinismo oficial, conferia ao policial a autoridade para matar de forma arbitrária. E, ao mesmo tempo, lhe dava tacitamente o poder para negociar a vida e a liberdade, instituindo uma moeda forte e atraente – e em permanente inflação. Assim, o combate “fora-da-lei” ao crime buscou liquidá-lo utilizando-se de práticas como a execução de delinquentes. O resultado foi desastroso e paradoxal: uma polícia envolvida em dinâmicas criminosas e, portanto, impotente diante do próprio crime.
Admitindo a ilegalidade das execuções – sempre de pobres e, frequentemente, negros –, se aceita a ilegitimidade desses atos. O círculo vicioso da violência ilegal não se transforma no círculo virtuoso da legalidade. Só há legalidade com respeito a ela. Não existem atalhos.
Entre 2003 e 2007 as polícias fluminenses mataram 5.669 pessoas. Um escândalo mundial. Apenas no ano passado foram 1.330 as vítimas letais de ações policiais e, em 2008, quebrou-se o recorde mais uma vez – segundo dados preliminares.
Execuções sumárias
Quase todas essas mortes foram registradas como “autos de resistência”, ou seja, como situações em que a vítima da ação policial teria sido morta por haver colocado em risco a vida dos policiais ou de terceiros. Por isso, “autos de resistência” referem-se a casos em que policiais teriam agido em estrito cumprimento de suas obrigações constitucionais – em legítima defesa ou para proteger a vida de terceiros. Mas pesquisas apontam que, apenas em 2003, das 1.195 pessoas que morreram em situações descritas como “autos de resistência”, 65% apresentavam sinais insofismáveis de execução. A Justiça acata, acriticamente, a postura resignada – e, nesse sentido, lamentavelmente, cúmplice – do Ministério Público, das autoridades policiais, da segurança pública e do poder executivo. A cadeia de omissões estende-se, indiretamente, à sociedade civil, que aceita, apática, essa realidade inominável.
A orientação equivocada de uma política do “confronto” aumenta o risco a que são submetidos os próprios policiais. No mesmo período, morreram no Rio de Janeiro 194 policiais em serviço, 27 civis e 167 militares. Na maioria dos estados, a despeito de uma escala menor, a natureza do problema é a mesma.
A Polícia Militar e a Polícia Civil não cooperam entre si, não têm bases de dados comuns, não são geridas de forma integrada. Os cursos de formação são distintos e têm valores divergentes. A autoimagem de cada corporação se forma na experiência cotidiana da rivalidade, e suas respectivas identidades são, intrinsecamente, antagônicas.
A PM é uma instituição organizada com fins bélicos. Por isso, seu objetivo é tornar-se apta ao pronto emprego dessa força, baseada na cega obediência e na velocidade na execução do comando. Daí a hierarquia vertical e a ausência de autonomia na ponta operacional. Com exceção das situações em que são necessários grupos de combate, a PM não foi desenhada, enquanto estrutura organizacional, para a segurança pública, cujos desafios complexos exigem exatamente o contrário: flexibilidade decisória e descentralização, com supervisão e integração modular, ágil e adaptativa, além de uma gestão por processo. Só assim seria possível a aplicação de métodos modernos, como o policiamento orientado para a resolução de problemas ou o polissêmico policiamento comunitário.
A Polícia Civil, por sua vez, é um arquipélago de baronatos feudais (distritais). Segundo dados oficiais de dezembro de 2006, apenas 1,5% dos homicídios dolosos no estado do Rio de Janeiro foi investigado com êxito pela instituição. No restante do Brasil, a taxa varia, mas em geral não atinge níveis aceitáveis.
A perícia e todo seu universo técnico, que deveria ser o futuro da polícia investigativa, hiberna esquecida e abandonada, salvo raras exceções. No Rio, há mais de 114 mil solicitações de laudos periciais não atendidas.
Em defesa da vida
As polícias brasileiras são reativas, inerciais, avessas à avaliação e ao controle externo, além de não disporem de mecanismos institucionais que tornem possível sua gestão racional. Some-se a tudo isso a cultura das corporações, tantas vezes desfavorável aos direitos humanos.
O que pode ser mudado pelos governadores, pelos secretários de segurança pública e pelos chefes de polícia? Pouco. Eles conseguem, no máximo, reduzir os danos provocados pelo formato institucional desenhado na Constituição, por meio de mecanismos que compensem a tendência fragmentária, investindo na qualificação profissional e no controle externo e intervindo nas culturas corporativas para tentar neutralizar os valores contrários aos que seriam compatíveis com o ambiente de legalidade e racionalidade administrativa. A afirmação de uma política que priorize a defesa da vida é absolutamente fundamental, ainda que insuficiente. Se o esforço dos gestores surtir algum efeito, isso ocorrerá apesar das estruturas organizacionais que herdamos da ditadura, e não por causa delas ou com sua ajuda.
Dessa forma, postulo a alteração da Constituição Federal para que os estados sejam autorizados a promover mudanças profundas na estrutura organizacional das polícias (a “desconstitucionalização das polícias”), credenciando-se para manter o status quo institucional delas ou para unificá-las.”). Ou, ainda, para criar novas polícias, que poderiam ser, por exemplo, municipais em cidades acima de 1 milhão de habitantes. No quadro dessa mudança seria necessária uma legislação infraconstitucional, com as exigências mínimas que todas as novas polícias deveriam atender nas áreas de formação, informação, gestão, controle externo, articulação intersetorial e perícia – chamo esse conjunto normativo de Sistema Único de Segurança Pública. Em síntese, o estado que estivesse satisfeito com a situação atual teria liberdade para mantê-la. Mas aqueles que quisessem modificá-la poderiam fazê-lo, respeitando, sempre, os direitos trabalhistas dos policiais e as normas infraconstitucionais.
No caso do estado do Rio de Janeiro, o melhor caminho seria a criação, na capital, de uma polícia municipal civil de ciclo completo. Polícia de ciclo completo é aquela que exerce todas as atribuições inerentes às funções judiciárias ou investigativas e ostensivo-preventivas, previstas na atividade policial – ou seja, é aquela que investiga e patrulha, uniformizada. O mesmo ocorreria nas demais regiões metropolitanas. Para tanto, seria preciso unificar as atuais polícias Militar e Civil, que teriam um prazo de seis anos para se adequar a esse novo perfil. A perícia se tornaria independente e caberia à União renegociar o pacto federativo para que baixos salários não condenassem ao fracasso essa promissora iniciativa.
As polícias são instituições da maior importância para a vigência do Estado democrático de direito. Em benefício dos bons policiais e da população – sobretudo dos mais pobres, vítimas predominantes da violência institucionalizada –, seria necessário que as lideranças políticas celebrassem um pacto suprapartidário pela mudança profunda na segurança pública, começando pelas polícias. Só assim se reduziria a desigualdade no acesso à Justiça e se completaria o ciclo da transição democrática, processo no qual a questão policial foi esquecida. A mudança da estrutura organizacional, acompanhada da instauração do SUSP, não será suficiente – nem por isso deixa de ser indispensável. Transformações nas políticas de segurança e na cultura profissional serão decisivas, assim como a participação da sociedade e o controle externo. Alterações na Justiça e no sistema penitenciário, e políticas preventivas também serão fundamentais. Assim como a redução das desigualdades. Contudo, não permitamos que a insuficiência de cada passo continue nos paralisando. Mesmo enquanto permanecer desigual, a sociedade brasileira poderá ser menos cruel e violenta – o que facilitará a mobilização para o aprofundamento da democracia.
Luiz Eduardo Soares é secretário municipal de Assistência Social e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (RJ) e professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Tem pós-doutorado em Filosofia Política e foi secretário nacional de Segurança Pública (2003). É autor, entre outros livros, de Elite da tropa, com André Batista e Rodrigo Pimentel (Objetiva, 2006).
Quase todas essas mortes foram registradas como “autos de resistência”, ou seja, como situações em que a vítima da ação policial teria sido morta por haver colocado em risco a vida dos policiais ou de terceiros. Por isso, “autos de resistência” referem-se a casos em que policiais teriam agido em estrito cumprimento de suas obrigações constitucionais – em legítima defesa ou para proteger a vida de terceiros. Mas pesquisas apontam que, apenas em 2003, das 1.195 pessoas que morreram em situações descritas como “autos de resistência”, 65% apresentavam sinais insofismáveis de execução. A Justiça acata, acriticamente, a postura resignada – e, nesse sentido, lamentavelmente, cúmplice – do Ministério Público, das autoridades policiais, da segurança pública e do poder executivo. A cadeia de omissões estende-se, indiretamente, à sociedade civil, que aceita, apática, essa realidade inominável.
A orientação equivocada de uma política do “confronto” aumenta o risco a que são submetidos os próprios policiais. No mesmo período, morreram no Rio de Janeiro 194 policiais em serviço, 27 civis e 167 militares. Na maioria dos estados, a despeito de uma escala menor, a natureza do problema é a mesma.
A Polícia Militar e a Polícia Civil não cooperam entre si, não têm bases de dados comuns, não são geridas de forma integrada. Os cursos de formação são distintos e têm valores divergentes. A autoimagem de cada corporação se forma na experiência cotidiana da rivalidade, e suas respectivas identidades são, intrinsecamente, antagônicas.
A PM é uma instituição organizada com fins bélicos. Por isso, seu objetivo é tornar-se apta ao pronto emprego dessa força, baseada na cega obediência e na velocidade na execução do comando. Daí a hierarquia vertical e a ausência de autonomia na ponta operacional. Com exceção das situações em que são necessários grupos de combate, a PM não foi desenhada, enquanto estrutura organizacional, para a segurança pública, cujos desafios complexos exigem exatamente o contrário: flexibilidade decisória e descentralização, com supervisão e integração modular, ágil e adaptativa, além de uma gestão por processo. Só assim seria possível a aplicação de métodos modernos, como o policiamento orientado para a resolução de problemas ou o polissêmico policiamento comunitário.
A Polícia Civil, por sua vez, é um arquipélago de baronatos feudais (distritais). Segundo dados oficiais de dezembro de 2006, apenas 1,5% dos homicídios dolosos no estado do Rio de Janeiro foi investigado com êxito pela instituição. No restante do Brasil, a taxa varia, mas em geral não atinge níveis aceitáveis.
A perícia e todo seu universo técnico, que deveria ser o futuro da polícia investigativa, hiberna esquecida e abandonada, salvo raras exceções. No Rio, há mais de 114 mil solicitações de laudos periciais não atendidas.
Em defesa da vida
As polícias brasileiras são reativas, inerciais, avessas à avaliação e ao controle externo, além de não disporem de mecanismos institucionais que tornem possível sua gestão racional. Some-se a tudo isso a cultura das corporações, tantas vezes desfavorável aos direitos humanos.
O que pode ser mudado pelos governadores, pelos secretários de segurança pública e pelos chefes de polícia? Pouco. Eles conseguem, no máximo, reduzir os danos provocados pelo formato institucional desenhado na Constituição, por meio de mecanismos que compensem a tendência fragmentária, investindo na qualificação profissional e no controle externo e intervindo nas culturas corporativas para tentar neutralizar os valores contrários aos que seriam compatíveis com o ambiente de legalidade e racionalidade administrativa. A afirmação de uma política que priorize a defesa da vida é absolutamente fundamental, ainda que insuficiente. Se o esforço dos gestores surtir algum efeito, isso ocorrerá apesar das estruturas organizacionais que herdamos da ditadura, e não por causa delas ou com sua ajuda.
Dessa forma, postulo a alteração da Constituição Federal para que os estados sejam autorizados a promover mudanças profundas na estrutura organizacional das polícias (a “desconstitucionalização das polícias”), credenciando-se para manter o status quo institucional delas ou para unificá-las.”). Ou, ainda, para criar novas polícias, que poderiam ser, por exemplo, municipais em cidades acima de 1 milhão de habitantes. No quadro dessa mudança seria necessária uma legislação infraconstitucional, com as exigências mínimas que todas as novas polícias deveriam atender nas áreas de formação, informação, gestão, controle externo, articulação intersetorial e perícia – chamo esse conjunto normativo de Sistema Único de Segurança Pública. Em síntese, o estado que estivesse satisfeito com a situação atual teria liberdade para mantê-la. Mas aqueles que quisessem modificá-la poderiam fazê-lo, respeitando, sempre, os direitos trabalhistas dos policiais e as normas infraconstitucionais.
No caso do estado do Rio de Janeiro, o melhor caminho seria a criação, na capital, de uma polícia municipal civil de ciclo completo. Polícia de ciclo completo é aquela que exerce todas as atribuições inerentes às funções judiciárias ou investigativas e ostensivo-preventivas, previstas na atividade policial – ou seja, é aquela que investiga e patrulha, uniformizada. O mesmo ocorreria nas demais regiões metropolitanas. Para tanto, seria preciso unificar as atuais polícias Militar e Civil, que teriam um prazo de seis anos para se adequar a esse novo perfil. A perícia se tornaria independente e caberia à União renegociar o pacto federativo para que baixos salários não condenassem ao fracasso essa promissora iniciativa.
As polícias são instituições da maior importância para a vigência do Estado democrático de direito. Em benefício dos bons policiais e da população – sobretudo dos mais pobres, vítimas predominantes da violência institucionalizada –, seria necessário que as lideranças políticas celebrassem um pacto suprapartidário pela mudança profunda na segurança pública, começando pelas polícias. Só assim se reduziria a desigualdade no acesso à Justiça e se completaria o ciclo da transição democrática, processo no qual a questão policial foi esquecida. A mudança da estrutura organizacional, acompanhada da instauração do SUSP, não será suficiente – nem por isso deixa de ser indispensável. Transformações nas políticas de segurança e na cultura profissional serão decisivas, assim como a participação da sociedade e o controle externo. Alterações na Justiça e no sistema penitenciário, e políticas preventivas também serão fundamentais. Assim como a redução das desigualdades. Contudo, não permitamos que a insuficiência de cada passo continue nos paralisando. Mesmo enquanto permanecer desigual, a sociedade brasileira poderá ser menos cruel e violenta – o que facilitará a mobilização para o aprofundamento da democracia.
Luiz Eduardo Soares é secretário municipal de Assistência Social e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (RJ) e professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Tem pós-doutorado em Filosofia Política e foi secretário nacional de Segurança Pública (2003). É autor, entre outros livros, de Elite da tropa, com André Batista e Rodrigo Pimentel (Objetiva, 2006).
4 comentários:
caro professor larangeira (permita-me chamá-lo assim...),
A cor da fonte que o senhor usou na primeira parte do seu post, o qual expressa sua opinião, não ficou muito bom em relação ao layout da página (muito escuro).
abç,
Tiago
Caro Tiago
Você tem toda razão. O problema é que fui atacado por vírus pior que gripe asiática. Já convoquei um técnico para sanar o problema. Creio que amanhã, segunda-feira, ou no máximo terça-feira, o problema estará sanado.
Obrigado pela participação, o que me permitiu explicar aos leitores o problema.
Feliz Natal!
Emir, tu viu quem é o mais cotado para ser o candidato ao governo do Estado pelo PMDB, nas próximas eleições: José Mariano Beltrame.
Informe do Dia: Lideranças do PMDB começam a defender Beltrame para o governo em 2014
Dá uma olhada na matéria completa:
http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2010/12/informe_do_dia_liderancas_do_pmdb_comecam_a_defender_beltrame_para_o_governo_em_2014_132058.html
Tudo aquilo que você e o Cel Pául falavam do viés político das UPPs e da maquiagem para eventos aos poucos está sendo revelado aos demais cidadãos do Rio e do Brasil.
Não creio. Ele não faz o gênero do político. Está mais para técnico. Hoje a imagem dele está em alta, melhor que a do governante. Se ele fosse indicado pelo Cabral para ocupar Ministério, talvez a futura presidente Dilma Roussef não o desautorizasse publicamente, como o fez no caso do Sérgio Côrtes. A política é muito dinâmica. São nuvens que se movimentam ao sabro do vento. Daí, como dizia Tancredo Neves, não se deve fechar a porta em política. Ela deve ficar encostada. Eta velhinho sábio! Hehehe
Feliz Natal, meu amigo!
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