Um dos mais cruciantes dilemas da humanidade é o limite da liberdade individual em contraposição ao interesse coletivo, ambos tutelados pelo Estado. E o que deveria ocorrer em harmonia não ultrapassa a dicotomia. Porque o Estado, – tal como o Leviatã de Hobbes e a pretexto de garantir as liberdades individuais, – a mais e mais agrilhoa o indivíduo a sistemas de vigilância e punição que tornam a denúncia de Michel Foucault “conto da carochinha”.
Não há paradigma capaz de limitar a ação do Estado incidindo violentamente sobre a liberdade individual pretextando garantir a ordem pública. E a democracia, como “governo do povo” (Aurelião), torna-se abstração numa sociedade hipócrita e dominada por elites minoritárias, as mesmas que se situaram no poder desde o Brasil Colônia e alcançam os dias atuais como lídimos representantes da “democracia autoritária” (“Ciênc. Pol. Sistema de governo surgido após a 1.ª Guerra Mundial, em geral anticomunista, firmado na supremacia do poder executivo em relação aos demais poderes” – Aurelião), que é o nosso regime.
Mais grave, todavia, é que esses feudos eternizados no poder pelo “voto de cabresto” (em clientelismo caríssimo) representam a “democracia popular”, mimetismo “comum aos regimes políticos monopartidários dominantes nos países da área socialista.” [Cf., nesta acepç., república popular.] – Aurelião). Mas no nosso caso (pasmem!), indo da extrema direita à extrema esquerda, os personagens políticos são exatamente os mesmos tacanhos de antanho, sem renovação a não ser de minoritárias personas sem poder de mudar absolutamente nada.
Peço desculpas pela insistência na síntese dicionarizada, mas é para demonstrar a banalidade de um vocábulo muito defendido na essência, porém pouco ou nada praticado na existência até nos países que se autodenominam “democráticos”. Por fim, há a democracia que não conhecemos além da sua designação subjetiva: “democracia participativa”: “Sistema que atribui legitimidade decisória à participação direta da população em atos de governo.” (Aurelião).
Esta última me remete ao recente dizer do presidente Lula sobre a imprensa que o menoscaba em insistência: “Vou direto ao povo e converso com ele.” Sem ser “lulista”, não sei se reproduzo com exatidão as palavras do presidente. Mas ele é, talvez, a única pessoa no país capaz dessa onipresença a tentar vencer a da imprensa jorrando malícias em nome de uma liberdade, que, com seu cansativo sensacionalismo, produz lucros astronômicos por meio da venda ao Estado de espaços publicitários impressos, radiofônicos e televisivos. É como enfia a mão no bolso do mesmo povo que o presidente visita exaustivamente para tentar, pela prática da democracia direta, reverter as más notícias contra ele despejadas à larga. Busca o presidente sua “ágora nacional”. Para tanto, é competente: aprendeu a lidar com a massa trabalhadora olho no olho, e massa trabalhadora é o povo.
Mas a imprensa leva vantagem, porque exalta ou desgasta sem pejo nem data a imagem de quem quer que queira, ou vice-versa, espécie de “leilão” do tipo quem dá mais para falar bem ou falar mal de quem?... Tanto faz... E sempre, claro, se legitimando por meio dos aplausos de personalidades que lhes devem seus empregos mui bem remunerados, e de alguns artistas tornados famosos em exagerado mérito de suas medíocres representações. São eles que emitem seus discursos “politicamente corretos” em cadeia nacional e em horário nobre, aliás, sempre afinados com o interesse capitalista dos seus patrões.
E enquanto o espírito do povo é desse vil modo manipulado, tal como o pastor tange o rebanho sem moral para reagir (a “moral de rebanho” nietzschiana), o Estado ataca com seus “choques de ordem” para impressionar, e instala seus “pardais eletrônicos” a surrupiar as parcas moedas populares. É negócio tão atraente que agora inventaram iguais armadilhas móveis, ou seja, em determinado lugar das vias públicas fincam algumas placas delimitadoras de velocidade e estacionam em proibidos acostamentos uns carrinhos “caça-níqueis” em tocaia para multar distraídos. Mas o estado pode estacionar até no pico do poste, que está tudo certo, para ele o “choque de ordem” não vale...
Ah, que absurdo!... Pois, se se considerar a existência de uma engenharia de tráfego que constrói estradas supostamente apropriadas a velocidades compatíveis com o seu desenho, e acostamentos para atender a emergências, estamos diante de um casuísmo que sugere ter sido a estrada malfeita. Ou então a ganância do Estado alcançou seu ápice ante o extremado conformismo do indivíduo sem liberdade alguma.
Advém daí uma tensão individual que descamba para o consumo desenfreado e para o comprometimento em dívidas impagáveis, embora resgatadas nas primeiras parcelas, ficando o resto por conta de pressões judiciais contra aqueles que não atentaram para os excessivos juros embutidos nas prestações tornadas atraentes por seu aparentemente irrisório valor. Mas, somadas a outras de semelhante conteúdo mínimo, tornam-se máximas e destroem definitivamente a capacidade do indivíduo de suprir suas necessidades básicas e de sua família.
Ah, que absurdo! É como se aumenta a desesperança e lá vai o endividado apostar em tudo que é jogo que o Estado põe à sua disposição. Não ganha, torna-se ainda mais infeliz, e a desgraça afeta concomitantemente a coitada da família. Somam-se à gula estatal os acenos publicitários de bancos e financeiras com autorizados a descontar em folha os empréstimos dos desinfelizes, e assim eles vão miseravelmente a caminho da morte em tristeza. Descansam, enfim, depois de lançados em cova rasa pelo vai-volta econômico. Afinal, o Estado não é de ferro para gastar muito com enterramento de miserável... Pra quê, se o corpo vai e fica?...
... E a cada dia surgem mais e mais novidades estatais a bater as carteiras populares em beliscos aparentemente insignificantes, mas que, somados, arrancam pedaços do corpo e da alma dos desesperados. Eis como essa dinheirama não compra comida, roupa e remédio nem paga aluguel. Eis aí as manobras estatais e particulares explorando a boa-fé de um povo esperançoso, que, atordoado, e sem mais “ter”, quer pelo menos “ser” um dentre aqueles pouquíssimos ganhadores individuais televisivos de prêmios altíssimos. Os felizardos são projetados na telinha da tevê em generalização tão brilhante que os transformam em “milhões de ganhadores”, pura miragem a engrupir os milhões de perdedores de suas míseras moedas, que circulam de cofre a cofre sem passar por quitanda ou feira.
Cá pra nós, o jogo do bicho (não me refiro às maquininhas caça-níqueis inventadas pelos “banqueiros” para fazerem frente à velocidade estatal, televisiva e bancária das apostas a preço fixo em que não se jogam tostões), embora ilegal, é mais democrático que jogos estatais, tão ilegais quanto ele: o jogo do bicho aceita tostões. Mas atualmente é o friorento pintinho da história que se enfiou na bosta quentinha. Se piar de alegria, vem o gavião e destroça-o; se ficar quieto, a bosta endurece e ele já era. E assim também está o assalariado: eternamente na merda. O resto é retórica, hipocrisia, sem-vergonhice política e mimetismo ao modo do provérbio alemão: “A árvore não vê a floresta.” E este aforismo lembra outro, de William Blake: “O tolo não vê a árvore que o sábio vê.”
Um comentário:
VEJO QUE A ÚNICA DIFERENÇA ENTRE O JOGO DITO "CONTRAVENTOR" E OS JOGOS TELEVISIONADOS É SOMENTE UMA: QUEM LUCRA? SE É O GOVERNO, É LEGAL MAS SE É OUTRO NÃO É LEGAL E É TIDO COMO CORRUPÇÃO. NO FIM, NESTE CASO, OS MEIOS ALTERAM O PRODUTO E OS FINS NÃO JUSTIFICAM OS MEIOS. E MAIS UMA VEZ, TUDO ACABA EM PIZZA. TANTOS CAÇA-NÍQUEIS SÃO APREENDIDOS E OS MESMOS RETORNAM AS RUAS COMO POR UM PASSE DE MÁGICA PARA NÃO DIZER "PASSE-REAL". É UMA FONTE LUCRATIVA PARA O GOVERNO DECRETAR ILEGAL, POIS, NESSE VAI E VEM, MUITAS MOEDAS VÃO PARAR NOS BOLSOS DOS MAIORAIS. INFELIZMENTE, O DESEJO DE UM FELIZ ANO NOVO É APENAS UMA UTOPIA. SÓ O QUE MUDA É A NUMERAÇÃO, O CALENDÁRIO PORQUE O RESTO....
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