quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O caso Rocinha/Vidigal/São Conrado

A “linha do tempo” II

A legislação federal regulamentadora da PMERJ

Embora defasadas e mal adaptadas à defeituosa Carta Magna de 1988, permanecem vigorando as leis e os decretos-leis federais que dão conta de serem as Polícias Militares (PPMM) subordinadas ao Exército Brasileiro (EB) como forças auxiliares. Significa, em síntese, que o planejamento e as ações das PPMM devem considerar todas as modalidades de defesa focalizadas pela força militar federal, em especial as defesas territorial, interna, pública e civil, esta última destinada ao atendimento de calamidades públicas. Todavia, a missão precípua das PPMM é a defesa pública, ou seja, a prevenção e a repressão na preservação da ordem pública e/ou sua restauração, numa primeira fase de perturbação da ordem pública, com os recursos de rotina e acionamento das forças de retaguarda (BPCh, BOPE etc.), tudo com base em planejamentos globais, regionais e setoriais, respeitada a legislação referente à ordem pública e aos direitos e garantias individuais.
Conceitualmente, segurança pública é garantia da ordem pública, sendo a defesa pública seu poder instrumental concretamente representado pelo patrulhamento preventivo-repressivo das ruas e logradouros em situação de normalidade. Num outro extremo (anormalidade), as PPMM podem atuar em ações operativas (Estado de Defesa e de Sítio), incorporadas ao Exército Brasileiro (EB). Nesta hipótese, o comando das PPMM passa ao EB, e, consequentemente, à União.
Para atender a toda essa gama de funções normais e extraordinárias, as PPMM se obrigam a atualizar seus planos conforme orientação do EB, sempre priorizando a defesa pública. Existe naquela Força Terrestre uma Inspetoria Geral das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (IGPM), de onde emanam as diretrizes de planejamento, treinamento, mobilização etc. E as leis e os decretos-leis que cuidam dessa subordinação das PPMM ao EB, embora anacrônicos em alguns aspectos, são detalhadíssimos. Também o são os planejamentos estratégicos, táticos e operacionais das PPMM, demais de atualizados de diversas formas para oferecer à sociedade o melhor serviço policial, tendo sempre como restrição os seus meios materiais e humanos.
Enveredo em digressão por esses aspectos da “linha do tempo” para refutar algumas críticas da mídia sobre o episódio de São Conrado. Elas me soam injustas e com o propósito de menoscabar as ações policiais, como se esses profissionais da mídia (alguns apenas) estivessem analisando uma partida de futebol sem saber jogar bola, sem atentar para as medidas do campo, sem a noção de quantos jogadores há em cada time e desconhecendo o tempo de jogo...
Como autoridade maior a comandar o espetáculo da ordem pública nos Estados Federados releva-se a figura do secretário de Segurança Pública. É ele o maestro de uma orquestra a seguir a partitura do governante estadual sem, porém, despregar o olho da partitura federal. Acontece que essas partituras nem sempre se afinam em seus variados arranjos, até porque os maestros e músicos não treinam em conjunto como antigamente o faziam.
Hoje, em vista de diversos fatores marcantes, sublinhando-se dentre eles a abertura democrática, os “Objetivos Nacionais Permanentes” (ONP) tornaram-se fade out... A orquestra nacional, a bem da verdade, está muda e desdenha suas partituras, deixando os músicos estaduais à mercê de maestros afinados (ou desafinados) com outras espécies de música, indo da erudita ao funk, sem aviso prévio e regendo muitas vezes “de ouvido”.
O ambiente social, que antes era “certo e sabido” por decreto ou vontade expressa de quem mandava mais, hoje é incerto e turbulento, demandando improvisações que só os bons músicos são capazes de executar. Parodiando Chico Buarque, e “trocando em miúdos”, num só governo vimos o maestro-governante determinar o “enfrentamento” aos traficantes, inclusive cobrando a ajuda do Exército Brasileiro, este que, por sua vez, se esquivou... Veio então a Força Nacional de Segurança Pública, com partitura tão improvisada que nem é inscrita na Carta Magna. Trata-se de nova orquestra composta de músicos de todos os naipes e dependentes de muitos ensaios diante de partituras ainda carentes de decisão. Ninguém sabe onde começa ou termina a ação da FNSP... Não disse ainda a que veio...
Tempos depois, e concluindo ser o “enfrentamento” um caminho perigoso e tendente ao fracasso, o governante estadual determinou a “pacificação”. Optou por aplicar de modo diametralmente oposto o aparato de defesa pública ante as incertezas e turbulências do ambiente, sendo certo que esta radical mudança conjuntural implicou alterações estruturais que às vezes não funcionam como perfeitas partituras. E se a orquestra não desafina é porque os músicos são bons e ótimos, capazes até de tocar “de ouvido”. E, queiram ou não os interessados no caos, nossos músicos da PMERJ e da PCERJ são hábeis em ler partituras e em tocar de improviso. Conseguem tirar som até de tampa de panela na falta de melhor instrumento de percussão, são policiais prontos para “enfrentar” e “pacificar”, situações intercorrentes no ambiente real do Rio de Janeiro. Com efeito, uma situação jamais excluirá a outra e a polícia deve estar preparada para atender a ambas.
Para fazer frente às incertezas e turbulências ambientais, as corporações policiais vêm apostando na inteligência policial e ampliaram em importância a atualização dos planejamentos globais, intermediários e específicos, como processos dinâmicos, para assim garantirem ações cotidianas eficientes, eficazes e efetivas, mesmo que diversas e imprevistas. Na verdade, não há como fugir do “se-então” num tempo em que tudo é relativo, nada é absoluto: o ambiente democrático atual. E para que as ações logrem êxito, o sistema de segurança pública enfatiza a inteligência policial, que é imprescindível e não pode se resumir ao “antigamente”: análise de fatos passados, como se o ambiente social fosse capaz de se manter estático e controlado por leis, decretos e opiniões jornalísticas nem sempre isentas. E com os “analistas”, abraçados ao anacronismo, sempre tentando localizar nas entrelinhas das tais análises os “inimigos internos”; ou seja, tudo se resumia à “inteligência político-ideológica” levada a efeito nos gabinetes refrigerados e seguros das instalações oficiais.
Já a inteligência policial, corretamente priorizada, deve ser feita em campo aberto e em situações de altíssimo risco que vão da observação velada dos bandidos à infiltração de policiais em quadrilhas com o aval prévio do Ministério Público e da Justiça. Manter uma inteligência policial eficiente e eficaz, portanto, não é tarefa simples. Cada caso é um caso, e as decisões são velozes como o raio, de modo a haver a antecipação necessária à ação planejada (proatividade), evitando-se ações inesperadas. Não foi o caso de São Conrado. A inteligência policial estava a postos, proativa, sendo certo que o encontro e o confronto, embora indesejado, era previsto como possibilidade, o que se deduz da quantidade de agentes e da rápida e eficiente reação cujo resultado foi eficaz e antes de tudo merece aplauso. Aproveito para fazer uma correção. Vem ocupando o senso comum a expressão “pró-ativa” em substituição conceitual errônea da correta expressão “proativa”. O que é “pró” é “a favor de”. Portanto, ser “pró-ativo” significa ser a favor da ação. Ora, é mais que óbvio que a polícia deva ser sempre “pró-ativa” (a favor da ação), senão seria omissa ante a criminalidade. Mas, em planejamento, “proatividade” significa antecipação, em oposição a reações inesperadas e geralmente desastrosas.
A inteligência policial é proativa, porém nem sempre os eventos ocorrem no ambiente social com a calmaria desejada. Por isso, são inevitáveis as escaramuças entre bandidos e homens da inteligência policial, estes em aparente desigualdade de forças, mas protegidos pelo modo velado de agir. Foi o que houve em São Conrado, com a ressalva de que os bandidos, às dezenas ou centenas, e armados para uma guerra, perderam-na ante a velocidade de mobilização da PMERJ e da PCERJ. Perderam-na, principalmente, em virtude da coragem e da destreza desses policiais da inteligência do 23º BPM, que lá estavam em número razoavelmente proporcional ao risco de enfrentamento, caso fossem revelados. Enfim, era necessário acompanhar a movimentação dos bandidos e o critério escolhido não poderia ser outro: uso da inteligência policial em trabalho de campo.
Este é o ponto principal: houve a vitória nítida da polícia contra o enorme grupo portando fuzis de última geração. E o confronto foi imprevisível apenas em tese, e quem está na chuva sabe que pode se molhar... Tanto que, segundo noticiam, o grupo da inteligência policial estava reforçado, embora não intentasse nada além de recolher informações preciosas, em tempo real, quanto ao poderio bélico dos traficantes da Rocinha e do Vidigal. Demais disso, foi possível confirmar que as quadrilhas formadas nessas duas estratégicas favelas, e que guerreavam entre si não faz tanto tempo, agora estão inegavelmente unidas, ficando conhecida a sua força bélica com provas incontestes. Nota dez para a polícia e para a inteligência policial, que existe para fazer o que fazia na área do 23º BPM e poderia fazê-lo até por ordem verbal do seu comandante.
É importante esclarecer que a imprensa confunde e desmerece injustamente o serviço de Inteligência do 23º BPM. A uma porque, por delegação prévia do comandante-geral (é assim desde que a PMERJ existe), o comandante de batalhão é a autoridade competente de manutenção da ordem pública na área que se lhe refere, tendo como base legal o Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, regulamentado pelo decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983 (R.200), § 3º do Art. 10: “Nas missões de manutenção da ordem pública, decorrentes da orientação e do planejamento do órgão responsável pela Segurança Pública nas Unidades Federativas, são autoridades competentes, para efeito do planejamento e execução do emprego das Polícias Militares, os respectivos Comandantes-Gerais e, por delegação destes, os Comandantes de Unidades e suas frações, quando for o caso.”
É o caso da PMERJ e de todas as demais PPMM brasileiras. Por conseguinte, o comandante do 23º BPM e de qualquer BPM (exceto de unidades especiais) pode e deve acionar seus meios na manutenção da ordem pública, incluindo ordens verbais, que, no militarismo, são tão válidas quanto as escritas. Também não significa nenhuma novidade o formato do “bonde do mal”. Do modo como publicam, até parece que a PMERJ e a PCERJ desconhecem essas táticas dos bandidos, dentre outras que eles estudam e aplicam desde quando conviveram com os presos políticos na ilha Grande e assistem diariamente nos “enlatados” norte-americanos. Mas demonizar a PMERJ é preciso! Daí a maliciosa insinuação de que ex-PMs do BOPE são os “instrutores” dos bandidos, de modo a confundir a boa regra com a má exceção, se é que existem mesmo os tais ex-PMs do BOPE na quadrilha da Rocinha. E, se existem, não são mais PMs e serão tratados pelos valorosos guerreiros do BOPE e por toda a polícia como duplamente inimigos, disso ninguém pode duvidar.
A dura realidade é que o terrível quadro situacional de hoje tem, sim, tudo a ver com um passado que não pode ser mantido nas trevas do desconhecimento público: de um lado, havia os presos políticos ensinando os presos comuns a politizar seus crimes hediondos; do outro, predominava a desídia de um regime militar que não se preocupava com criminoso comum enquanto agia contra o “inimigo interno”, incluindo-se nesta paranóia as polícias brasileiras. E as leis frouxas subsistem por culpa desses mesmos presos políticos de outrora, muitos deles atuais ocupantes do poder e outros tantos autores da Constituição Federal de 1988. E o somatório dessas forças negativas e benéficas aos criminosos atinge calamitosamente uma sociedade que continua disposta a se emprenhar pelo ouvido e a se deixar manipular como ovelha correndo para a boca do lobo...
Por que toda opinião publicada passa a ser imediatamente “opinião pública”? Será que é porque alguns acadêmicos e "especialistas em segurança pública" escolhidos a dedo (famosos) endossam as manipulações jornalísticas?... Ah, até parece que o caos na segurança pública interessa a todos os envolvidos nesse imbróglio eivado de meias verdades e falsidades alicerçando a pancadaria midiática contra a polícia! Por quê?... Será que de nada valeu o bom resultado da ação policial contra os traficantes?... Ora, façamos justiça!... A expansão do crime tem de ser situada numa “linha do tempo” que não pode virar novelo fabricado no presente. No fim de contas, o grave problema de hoje é inescapável legado de ontem, e não se resolverá da noite para o dia, e muito menos ao sabor da oscilante vontade midiática. Pior que tudo é ouvir na tevê as promessas de um candidato a governador extremista de esquerda, como “desmilitarizar a PMERJ” ou “unificar a PMERJ com a PCERJ”, dentre outras mentiras deslavadas, já que lhe é legalmente impossível a façanha como governante estadual. Ainda bem que o radicalisteiro candidato, cujo discurso de segurança pública chega às raias do ridículo (não merece aqui a citação do seu nome), jamais ganhará a eleição: não passa de traço nas pesquisas...

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