quinta-feira, 25 de março de 2010

Sobre a modernidade da UPPs



“A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, luta e contradição, de ambiguidade e angústia.” (Berman, Marshall – “Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade”)



Antes, o discurso governamental sobre a segurança pública resumia-se ao “enfrentamento” e à famigerada máxima stalinista: “Não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos”. A palavra “enfrentamento” era a preferida do governante Sérgio Cabral Filho, e a máxima da “omelete” (cá o substantivo é feminino), tão propalada pelo engenheiro norte-americano Roberto Moses, tocador de grandes obras e amante da megalópole, tornou-se cativa no linguajar do secretário da pasta, Dr. José Mariano Beltrame. Mas as críticas midiáticas lhes foram úteis e produziram a engenhosa mudança do discurso. Eia! Eia!... Surgiram num passe de mágica as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), manobra sensacional de marketing na segurança pública, bela “omelete” com poucos ovos quebrados e muito espetáculo multimedia...
Reconheço que as UPPs vêm dando certo, mesmo com o acúmulo de fricções, umas boas, outras ruins. Mas, como disse Ruy Tapioca no seu clássico República dos Bugres, “é da fricção que nasce a vida, e é com a fricção que ela se aperfeiçoa”. Sim, vêm dando certo! Primeiro porque partiu da melhor cultura da PMERJ como organização predominantemente militar e secundariamente policial, embora esta segunda função caracterize bem mais a corporação no seu cotidiano. Porém, esse trabalho individualizado é bem mais sujeito a falhas, e estas são logo ampliadas pela mídia ideológica. Resultado: imagem ruim. É como estava a segurança pública até a implantação das primeiras Unidades de Polícia Pacificadora a empolgar a mídia. Magistral virada de jogo em meio a um campeonato cujo final, todavia, é impreciso nesse torvelinho social marcado por uma criminalidade volumosa e ferocíssima...
Em vista das UPPs, tudo se inicia com a ocupação planejada de algumas estratégicas favelas, em ações caracterizadas pelo uso seletivo da força e comando modelado nas regras da caserna: aparato militarmente comandado garantindo o sucesso da ação. Depois da conquista do território e de sua ocupação sob a forma de UPP, às vezes sem disparar um só tiro, a PMERJ inicia seu trabalho preventivo-repressivo, com predomínio do primeiro (prevenção), sem poder evitar a ocorrência do segundo (repressão). Até agora, os acertos vêm tornando pequenos os erros da repressão: apenas beliscões sem dor na imagem corporativa. Melhor ainda: a PMERJ não está inventando nenhum modelo operacional para depois se enfiar nas operações do tipo polícia. A tropa da PMERJ é excelentemente treinada para fins militares (defesa interna e defesa territorial).
Com efeito, atuando em cadeia de comando, com os escalões agindo harmoniosamente e avançando no terreno-alvo, a conquista é certa. Não há de haver quadrilha urbana capaz de enfrentar esse modelo de militarismo policial. Trata-se de ação qualificada. Porém, vencida esta fase, há de se iniciar o serviço policial como rotina (preventiva e repressiva), o que aos poucos tornará individualizado o comportamento policial, ou seja, cada caso é um caso, cada favelado é um favelado e cada PM é um PM. Aí... Bem... Aí não se sabe ainda o desfecho, o tempo de existência das UPPs e sua pouca disseminação por apenas algumas favelas não nos permitem uma avaliação conclusiva. Por enquanto, tudo vai bem, mesmo se sabendo que estamos diante de “asas maiores que o ninho” (Heráclito – Epístolas, I, 20, 21): a PMERJ não possui meios materiais e humanos para conquistar, ocupar e manter UPPs em todas as favelas igualmente dominadas pelo tráfico no amplo e multifacetado território do Estado do Rio de Janeiro.
Eis, porém, um paradoxo. Tudo vai bem, a mídia está encantada com as UPPs, e a tendência é a do acerto. Está de parabéns o mentor das UPPs como solução ao desastroso discurso do enfrentamento e das frases de efeito. Nada de omelete quebrando ovos a atormentar a comunicação social do governo. E enquanto a PMERJ lava com água e açúcar as comunidades, a PCERJ cumpre a tarefa de singularizar importantes lideranças criminosas, prendendo-as ou eliminando-as, duas situações normais de uma polícia investigativa que sabe operacionalizar ações em modelo militar. Porque não há outro modo de atuar em favelas dominadas pelo tráfico. Atacar frontalmente os “famosos do crime” representa a melhor das omeletas, eis que é feita de ovos podres.
Há quem diga que um bandido-líder não difere dos demais. Engano! Difere, sim! No mundo do crime não se ganha prestígio sem esforço, coragem e inteligência. Deixando de lado o fato de que falamos de bandidos, o líder de uma quadrilha costuma se legitimar pelo que efetivamente é, e não por artifícios de conquista e manutenção do poder típicos do modelo formal de sociedade. Lá é comunidade, e a regra é a do o poder do mais forte e mais inteligente aliado a outros valores (negativos, claro) indispensáveis a um grande líder, que se poderiam resumir numa só palavra: crueldade. Aliás, a crueldade está presente também entre os ditadores. Sem ela, um ditador, de direita ou de esquerda, não se cria.
Enfim, a PMERJ com seus métodos comunitários, a PCERJ com suas ações diretas contra líderes criminosos, e estes mesmo assim se proliferando e ampliando seus domínios territoriais, futuramente talvez nos digam quais foram os mais aptos nesta luta pela sobrevivência. O cenário (de morros e baixadas favelados e de edifícios e condomínios de luxo) está montado no teatro urbano que chamamos Metrópole. Neste imenso cenário os atores humanos e desumanos se revezam nas disputas por micropoderes vários, legais ou ilegais, destruindo para construir e construindo para destruir: velho embate entre os círculos da virtude e do vício desde que o mundo é mundo. Enquanto isso, mais uma notícia de UPP nos chega como um peixe fresco embrulhado no jornal do dia. Está logo abaixo para ilustrar o nosso pensamento. Sem a devida cautela, amanhã ambos (peixe e jornal) estarão malcheirosos por inevitável contágio; e, carcomidos pelo descuido, tenderão ao desaparecimento. Aliás, é como mui bem insinuou Marshall Begman em intertextualidade de Marx: “Tudo que é sólido desmancha no ar.”

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu caro o autor não se chama Bergman mas sim Berman...

Emir disse...

Ao anônimo

Tem razão. Já corrigi meu indesculpável lapso. Pior é que errei com o livro na minha cara, porque é leitura de cabeceira, dada a complexidade da abordagem do professor.

Obrigado pela correção feita em boa hora!