quarta-feira, 29 de julho de 2009

(Sem) Fusão e (Com) Fusão)

Uma Reflexão Absurda





O Efeito Borboleta (Edward Lorenz)




“Se minha Teoria da relatividade estiver correta, a Alemanha dirá que sou alemão e a França me declarará um cidadão do mundo. Mas, se não estiver, a França dirá que sou alemão e os alemães dirão que sou judeu.” (Albert Einstein)




Dois momentos em minha vida, – dentre muitos outros que não se encaixam na ideia deste texto, – não os pude evitar. O primeiro foi nascer sem pedir que tal milagre (?) acontecesse; o segundo, a fusão entre o RJ e a GB, tragédia para mim tão inesperada quanto o meu nascimento. Sobre o primeiro momento, não digo que haja sido bom ou ruim. Como todos que nasceram, reclamar pra quê? É um fato. Conviverei com ele até me ocorrer o terceiro momento inevitável, a tragédia esperada: a morte. Ah!... Ninguém em sã consciência deseja experimentar esse outro lado da moeda da vida, afora os loucos apelantes do suicídio, gesto tão absurdo que supera qualquer tragédia. Mas focalizemos o segundo momento: a fusão...
Não foi somente minha, a tragédia da fusão, mas de milhares de fluminenses e cariocas que para ela não se prepararam. A fusão do RJ com a GB, em 15 de março de 1975, deve ter sido decisão de última hora, no máximo um ano antes e em razão da Ponte Rio-Niterói (por que não “Ponte Niterói-Rio”?). Lembra-me a época em que o anúncio chegou, mais ou menos oito meses antes de ocorrer. Era o ano de 1974. No início deste ano, eu – primeiro-tenente, segundo de turma na Escola de Formação de Oficiais (EsFO), servindo na Companhia Escola e também na EsFO, – eu vestia o camuflado e vivia enfiado em salas de aula ou no mato dando instrução de Emprego Tático para cadetes, soldados, cabos e sargentos sem ganhar tostão. Anos a fio... Que bobo!...


Um colega de turma, por acaso repetente e de novo quase que cerra-fila na classificação, era ajudante-de-ordens do comandante-geral. Deu-me uma cangalha sem dó nem piedade. De segundo colocado de turma e altamente conceituado na profissão passei a ser rabeira ao ficar atrás dele. Acordei para a dura realidade de que idealismo não me garantia coisa alguma e usei meu parentesco com militares de alta patente do EB e da MG. Pule de dez!... Se o fizesse antes, não teria levado a “carona”. Não titubeei, guardei o camuflado e a farda de instrução e me vesti de gala e alamar como um autêntico alferes machadiano. Porque, logo em seguida, minha sorte do parentesco com as altas patentes militares funcionou e eu assumi a privilegiada posição de ajudante-de-ordens de um novo comandante-geral da PMRJ após inesperada saída do anterior. O tenente postergado em nome do poder substituiu o capitão repetente em cena constrangedora. Fui promovido a capitão na leva seguinte, em primeiro lugar da lista. Enfim, e em razão do prestígio do cargo, tornei-me facilmente capitão. Mas permaneci “mais moderno”... “Tempos idos e vividos” (expressão machadiana) e jamais esquecidos...




“Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.” (Machado de Assis)


Tomara posse o Tenente-Coronel Art Evaristo Antônio Brandão Siqueira. Vivo ainda, – e com melhor saúde que a minha, – é um fidelense carola, devoto de São Fidelis, claro, e amante da corporação miliciana por culpa do irmão, o saudoso General Art João José Brandão Siqueira, que comandara a PMRJ antes dele. Embora verdes-olivas, ambos traziam no coração um poucochinho de nosso cáqui e da história de glórias da instituição criada em 14 de abril de 1835. Sabiam de antemão o significado de Treme-Terra gravado pelo 12º de Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. Ouviram falar do Sargento Pardal e da ensangüentada Bandeira Centenária que o herói empunhara até a morte em solo inimigo. Mas não sabiam adrede da fusão... Curioso... Às vezes alguns anônimos me ofendem denominando-me “treme-terra” como se fora palavrão. A eles, cujas ofensas logo apago, meu sincero muito obrigado!
Ao ser ela confirmada, mais parecia prenúncio de tempestade. Que susto! Veio-nos a notícia como algo irreal, absurdo. Sim, absurdo, o inverso dos princípios da Ágora de Péricles: afastaram ainda mais o povo do governante. Se houvesse desmembramento do RJ em dois ou três Estados Federados, o trauma seria menor, sem dúvida, Mas juntar, aumentar, distanciar... Coisa de totalitarismo, ninguém gostou: povo nenhum do lado de cá nem do lado de lá da baía de Guanabara. Porque significou uma brutal ruptura sociocultural e psicossocial em dois lados detentores de forte e enraizada identidade.
Os cidadãos se viram lesados em sua individualidade, sem o direito nem mesmo de expor opiniões. De tudo que houve de ruim na ditadura (não digo que essa democracia que hoje assistimos seja melhor), para nós, fluminenses e cariocas, a fusão significou o pior dos males: a “confusão”. Até hoje, meus filhos não sabem dizer se são “fluminenses”, “cariocas”, “guanabarinos”, “híbridos”, sei lá. Na verdade, eles sabem que são niteroienses e brasileiros. Quanto ao aspecto regional, pior ainda para os “cariocas”, que não são “guanabarinos”, e, com certeza, jamais serão fluminenses, isto é decisão do espírito. Creio que preferem ser cariocas, claro, e até eu, se lá tivesse nascido por sorte ou azar.
Em meio à perda de identidade do povo, houve a perda de identidade dos militares estaduais. Éramos, – e somos, – como times de futebol: funções iguais, mas vestidos em camisas que jamais se transformarão na cor representativa de um só time. Nunca envergaremos uma só bandeira que não seja a de nossa origem, nem aceitaremos novos emblemas e hinos. Diferentemente da música, preferiríamos mil vezes “chorar separados” que “brigar juntos”. Mas estamos, desde 1975, “brigando juntos”. No caso dos treme-terras (PMRJ), enfrentamos dois times a um só tempo (PMDF e PMEG), porque, embora eles tenham recebido o impacto da separação com a ida do Distrito Federal para Brasília, não perderam a identidade una que guardam desde 13 de maio de 1909. Nesse caso, a medida não abalroou a Ágora de Péricles. Houve o fracionamento de uma só cultura, não houve a fusão.
Muitos poderão desdenhar estas linhas simples da malfadada história do RJ. Haverá a esquivança das pessoas, não considerarão o assunto com a seriedade devida. Esse comportamento de indiferença é, infelizmente, comum na nossa sociedade local, que segue a lógica superficial do “ninguém é de ninguém”; é assim, sem dúvida, embora o povo receba em cheio os efeitos funestos desta singela historinha que mais parece choradeira de criança ao perder sua pipa alçada por linha sem o pó de vidro nela colado. Distraído, o menino não percebe a aproximação da outra pipa que se preparou com o cerol. E lá se vai, em meio às nuvens e à risadaria dos coleguinhas, o seu brinquedo. E o perdedor se recolhe em tristeza. Menos um a se deliciar da vida por alguns momentos ou para sempre, se ele não mais desejar brincar de pipa. A omissão dói menos.
Contudo, esse mesmo menino se poderá enraivecer e tornar às ruas com outra pipa, agora disposto a se vingar. Não estava omisso, apenas se recolhera para o aprendizado da maldade a se equivaler com a do seu adversário soltador de pipas. Sim, ele está preparado e não se limitará a cortar a pipa inimiga, mas todas que puder tosar nos ares hostis em que se metera ingenuamente. Ele, porém, não é mais ingênuo, nem os demais que se surpreenderam ante a perda do brinquedo indefeso, tal como ele. São sempre muitos a soltar pipas: os dois lados da contenda num mesmo bairro. E, de repente, um bairro é abruptamente juntado a outro, e aí teremos quatro grupos antagonizados pela cultura de antanho. Jamais os soltadores de pipas formarão um só time, embora no ar só se vejam pipas.
Não é outro o Estado do Rio de Janeiro nem é outra a PMERJ pós-fusão. Parece a África... Sim, somos tribos, – guardadas as devidas proporções, – e disputamos o chão e o poder. Buscamos o triunfo sobre as demais tribos internas e externas. Para tanto, esbanjam tribos opostas e dispostas ao confronto... Grosso modo, seria como a Ruanda dos Hutus e Tutsis. Nós também praticamos o tribalismo destruidor de amizades e construtor de inimizades desde os bancos das Escolas de Formação, com as turmas se fechando em hostilidade que perdura até o fim da carreira e da vida. Somos o efeito disso, e parece que jamais haverá outro modo de sobrevivência institucional porque resultamos de uma cultura geral de repugnância pela junção abrupta de pessoas que não a desejavam e ainda hoje a abominam: os da província roceira e os da metrópole cosmopolita.
É complicado admitir situação tão grave. Pior, entretanto, é fingir não vê-la em todos os seus fragmentos. E me refiro aos três poderes do Estado, que eram seis e agora são três, com uns enfiados à força dentro dos outros, aberração histórica que somente uma tragédia do tamanho da secessão estadunidense será capaz de consertar. Talvez nem assim, até porque o clima político do país não recomenda que tribos hostis se enfrentem. Ficam então disputando seus micropoderes entre si, primeiro internamente, em genocídio moral, e depois arrancando o apoio externo para alcançar o topo e situar sua tribo na dianteira, claro que aproveitando alguns contrários e submissos para fingir coesão. Com o restante é a degola: aos vencedores as batatas!... Ora, que coesão que nada! Vivenciamos na PMERJ um saco de gatos sem solução, e o povo, do lado de fora dos quartéis, hostiliza-se igualmente, mesmo que em ingênuas piadas do tipo “a melhor vista de Niterói é o Rio” e seus desdobramentos ressentidos.
Reafirmo que a situação de convivência pós-fusão é grave nas instituições estatais e no seio da sociedade destinatária dos seus serviços. Não significa que amizades individuais e parentescos não amenizem o problema. Não fossem os laços de amizade e de parentesco, exsurgiria a hostilidade materializada em confrontos visíveis.
Vivemos, sem embargo, o “deixa-disso” fingido. Não nos amamos. Somos ainda mais arrogantes em função da hierarquia e da disciplina a serviço de interesses menores. Somos pedantes, embora o nosso poder se resuma à lição machadiana da “voluptuosidade do nada”. E agora virá a indagação geral: “Por que lancetar esse tumor social até então adormecido como um vulcão extinto?” Eu respondo: “Não sei!” Mas sei que é preciso gravar o problema para produzir e reproduzir reflexão sem endereço certo. Só reflexão e mais nada... Reflexão...
Lembra-me os idos de 1984 e o “Plano Diretor da PMERJ” lançado pelo então comandante-geral (março de 1983/março de 1987), Cel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira, em nova redação. Nele, destacava-se o “Objetivo Síntese” desdobrado num “Grande Objetivo do Comando, deduzido da missão constitucional e das atribuições legais, do modelo organizacional e da filosofia de emprego, assim sintetizado: promover, adaptando a estrutura policial-militar às exigências da segurança pública, o ajustamento comportamental da organização dentro de uma nova concepção de ordem pública, na qual a colaboração e a integração comunitária sejam os novos e importantes referenciais, o que implica em um novo policial e uma nova polícia.”



Plano Completo, idealista, com políticas desenvolvidas meticulosamente, para vigorar de 1984 a 1987, embora editado após aquele ano inicial, o que implicaria o uso de máquina do tempo, porque da edição anterior, se houve, não se cuidou em momento algum... Para quem se interessar, o texto original foi aditado ao Boletim da PM nº 229, de 03/12/85 e tornado um livreto no início de 1896. De lá para cá, 23 anos se passaram e nada, absolutamente nada mudou, a não ser para pior. Porque a “integração comunitária” apregoada pelo Cel Cerqueira passou a ser tachada de “interferência comunitária”. O que era sério tornara-se mangação das tribos que o sucederam. Mas a guerra dele não estava totalmente perdida, como muitos erroneamente imaginaram: ele reassumiu o comando-geral, e, em vez de ressuscitar o seu “Plano Diretor”, matou-o para dar lugar à ira contra seus adversários, às vezes até enquadrando aliados como inimigos. Pena, porque ainda hoje esse “Plano Diretor”, que virou piada, se levado ao pé da letra poderia ser atualizado, reeditado e executado.
O retorno raivoso do Cel Cerqueira (1991/1994) assinalou quatros anos de terror disciplinar, omissão e chacinas. O Cel Cerqueira, não mais era aquele empolgado transformador que escolhera o rumo certo, mas que as resistências internas e as inimizades tribais desviaram-no da rota. Houve então o império da anomia e o desastre, em repeteco que deve ser apagado da história recente do Estado do Rio de Janeiro. Ou, ao revés, deve ser sempre lembrada, como ora faço, para consignar o aleatorismo de um povo tão mesclado, pauperizado e desnorteado que não consegue escolher um governante diferente do gaúcho que “costeou o nosso alambrado” e para ele abrimos as porteiras que lhe foram cerradas no seu torrão natal: o Rio Grande do Sul. Mergulhou no Rio de Janeiro, um rio errado. Nadou e boiou à vontade. Fosse o caudaloso Rio Grande do Sul, morreria afogado. Morreu de velhice, Deus o tenha!... Afinal, ouvi dele uma vez que a autonomia de alguns Distritos tornados Município era excelente porque atendia ao princípio da Ágora defendido por Péricles.
Elogios à parte, tudo contribuiu para o caos de hoje: ditadura, abertura, anomia pós-abertura, maus governantes, baderna generalizada, crescimento desenfreado do tráfico, ONGs finórias transformando desgraça em dinheiro, domínio invencível das favelas por bandidos e milícias. Contrapondo-se a esse caos sem autoria, a PMERJ encetou algumas bem-sucedidas ocupações de favelas... muito mais para “inglês ver”. Não que a medida operacional seja ruim. É ótima! Mas seu preço há de ser caro ao asfalto e às demais favelas, estas que não serão alcançadas pelo benefício porque não há como inventar efetivo para ocupar mais de setecentas delas dominadas por facínoras organizados em moldes paramilitares e armados até os dentes com fuzis de última geração. São também tribos amigas e rivais entre si, e inimigas das tribos policiais, que, por sua vez, são fracionadas em tribos não menos rivais entre si. É briga de foice no escuro, e a vitimização de policiais atinge as raias do absurdo. Ser PM atualmente é voluntariar-se ao suicídio a que nos referimos no início.
Claro que a fusão responde consideravelmente pelos problemas atuais, o que acaba parecendo uma contradição, porque ela, em unindo, dividiu, e, divididos, enfraquecemos. Hum... Talvez fosse mais prudente não ser tão reducionista. Afinal, a História da Humanidade é feita de disputas sangrentas pelo chão e pelo poder, tanto ontem como hoje. É o que se lê em livros amarelados e o que se vê ao vivo e a cores mundo afora.
Porque o ser racional é o alimentador das contradições. Enquanto os animais disputam o chão, as águas e os ares apenas para garantir a sobrevivência de suas “tribos”, o homem é detentor único da violência pensada e repensada para dominar outras “tribos”. Antes, usavam armas rudimentares; agora são armas absurdamente letais. Mas a violência é a mesma, desde o homem das cavernas aos magnatas das mansões.
O que mudou? Nada! Ontem, a plebe era massa de manobra e os poderosos faziam dela gato e sapato; hoje, a massa continua ignara e socialmente conformada; e segue em procissão a morrer na proporção em que a população mundial, continental, nacional, regional e local aumenta. Tudo igual, tudo proporcional, precisamos nascer para morrer; e se hoje as doenças matam menos, as armas hão de matar mais para equilibrar o nosso habitat, o ecossistema denominado planeta Terra. Ah, não há jeito, seguindo a ordem natural das coisas, morrerão primeiro os policiais e os bandidos! Nada demais, eles morrerão proporcionalmente, embora esta contagem não interesse a ninguém. Morre, pois, cada um (mocinho ou bandido), “cumprindo o seu papel social”, como alardeiam os academistas a serviço da Teoria do Caos...







“O bater das asas de uma borboleta, num extremo do Globo Terrestre, pode provocar uma tormenta no outro extremo no espaço de tempo de duas semanas.” (Teoria do Caos – Edward Lorenz)

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