quinta-feira, 5 de março de 2009

Sobre a liberdade




Contradição


“A prisão não é a grade, e a liberdade não é a rua. Existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência.” (Gandhi)


Sou PM, estou próximo dos 64 anos, já aposentado, e não posso garantir que minha saúde me leve muito longe. Enfim, vejo-me em hora de reflexão, de olhar para trás, de fazer as contas do meu tempo, de confrontar o ativo com o passivo do que vivi e concluir o que de lucro ou prejuízo me restou da minha existência. Tenho a lamentar a contradição que me martela a mente desde a minha última conversa com José de Arimatéia. Portanto, devo confessar que não guardo em mim nenhum sossego interior, o que até bem pouco eu o imaginava ter pela graça de haver sido cumpridor intransigente dos meus deveres, o que não me impede de carregar a contradição que o José de Arimatéia me enfiou na cabeça em golpe mortal...
No final de 1963, o Brasil passava por freqüentes conturbações. E eu, na flor da mocidade, enfrentando dificuldades para ingressar no mercado de trabalho, decidi cerrar fileira na PM, onde me enfiei como soldado. Era, sem dúvida, um emprego, apesar do preconceito da sociedade, que via o PM como gente de baixa estirpe. Tudo bem, eu fiz o curso, somatório de ensinamento policial e árduo treinamento militar, que, no final, resultava numa espécie de ambigüidade. Fui lançado em escalas internas, até que, dois anos mais, a PM recebeu o mister de policiar as ruas. Designaram-me patrulheiro, responsável pelo policiamento no centro do Rio. Era 1965. O país vivenciava o início do regime militar...
Nesta época, deparei com o José de Arimatéia; ou melhor, enfrentei-o em violenta escaramuça entre diversos policiais e um bando armado que acabara de assaltar um banco na Avenida Rio Branco. Eu era um dos que interceptaram os facínoras, e José de Arimatéia, um dos assaltantes. O acaso cuidou de me destinar a tarefa de perseguir e trocar tiros exatamente com ele. Por sorte, o inconseqüente tiroteio entre nós ambos não feriu ninguém, até que José de Arimatéia se viu acuado, com sua arma descarregada. Eu o abordei, a arma apontada em sua direção. Aproximei-me até que nossas ofegantes respirações se confundissem. Fitei-lhe os olhos pensando ver dois bugalhos atemorizados. Que nada! Vi-me diante de um olhar insolente e despido de temor.
Minha vontade, ao verificar o desdém do bandido, foi a de eliminá-lo sumariamente. Naquele momento senti ódio e percebi que nele aflorava igual furor. Mas era eu o senhor da ação, com a minha arma pronta para nele desferir o tiro mortal. Entretanto, não o fiz, e o ódio se foi em mim amainando, e é verdade que houve certa ternura em seu olhar quando lhe determinei que se virasse para ser algemado. Ele obedeceu sem esboçar hostilidade e logo chegaram outros policiais e o levaram para longe de mim. Ele então me fitou mais uma vez, aparentemente agradecido por eu ter-lhe poupado a vida.
Fora um dia movimentadíssimo, porém no seguinte é que seria para mim de inesperado espanto: li a notícia que atribuía aos bandidos o status de “guerrilheiros urbanos”, segundo eles próprios se autodenominavam. Não entendi patavina nem me interessei pelos tais “fins políticos” de uma ação que, para mim, não passara de criminosa, e que quase me fizera vítima fatal...
“Bolas, que diferença tem um balaço, seja ideológico ou não?”, pensei em irritação. Mas logo tal assunto me desocupou a mente, assim como se foi apagando da memória dos meus companheiros, todos atropelados por novos acontecimentos e pelos rigores de nossa militarizada profissão policial, ou de nossa profissão policial militarizada, pois, no fim de contas, dá no mesmo anacronismo. Era, com efeito, um trabalho movimentado do lado de fora e impertinente dentro de quartéis que vinham em ociosidade anos a fio, mas que, de repente, tiveram suas despreparadas tropas lançadas às ruas para fazer o que não sabiam, enquanto, atônitos, os superiores primavam por cobranças insensíveis, típicas de um militarismo discutível, como hoje, – e somente hoje, – eu o percebo com clareza...
O tempo, invencível, fez tudo cair no passado, até que fui convocado a depor sobre o caso e vi pela segunda vez meu desafeto, ainda com um ar romanesco no semblante, como se ali estivesse cumprindo uma nobre missão, tanto quanto eu efetivamente entendia estar. Era uma questão de enfoque: para mim, a missão, para ele o “sistema” que resolvera enfrentar. Ele, embora réu, assim se comportava diante do juiz: como se também ali, mesmo agrilhoado, estivesse lutando contra o tal “sistema”. E houve um momento em que os que o julgavam esboçaram certa concordância com seus dizeres, algo, porém, abafado pelo peso das formalidades oficiais. Ele era efetivamente réu, mas seu olhar altivo fez-me sentir réu no lugar dele. Bem, depois eu soube de sua condenação e nunca mais tive notícia dele.
Durante os anos seguintes, contribuí para o trancafiamento de inúmeros bandidos, enquanto, desalentado, via muitos milicianos serem mortos ou feridos, além de lamentar por ver outros injustamente expurgados da milícia pela porta dos fundos. Também alguns eram trancafiados em enxovias disciplinares, inclusive eu, que amarguei algumas punições bobas. Mas fui agüentando, não podia sobreviver sem o emprego, até porque estava casado e pai de três filhos. Assim, a cada dia eu ficava mais agrilhoado a uma profissão perigosa, ganhando mal, sem possibilidade de me lançar num outro labor. Eu só sabia ser policial. Por isso, mantive-me preso àquele mundo restrito e estupidificado, enquanto o tempo escorria diante de mim como um trem em velocidade cruzando uma estação imóvel e indiferente. Eu me deixava ficar na estação, envelhecendo... Na realidade, minha vida se resumia ao trabalho e ao lar. Enfim, uma vida passiva, porém honesta. E passageira...
Sim, era impressionante como o tempo voava rapidamente Eu nem podia acompanhá-lo com os olhos, tão veloz passava o trem do meu tempo. Quando dei por mim, havia completado 25 anos de serviço dentro de uma radiopatrulha, chovesse ou fizesse sol. Senti, de repente, um pânico interior; deu-me uma irresistível vontade de recuar; era hora de parar, assim refleti e conversei com a patroa, que imediatamente concordou comigo. Enfiei essa idéia na cabeça e parti em busca da solução. Enquanto isso, meu temor expandia-se sobremaneira. Não havia mais como contornar minha irresistível vontade de chegar vivo à aposentadoria. Mas não ponderei sobre a maldade dos meus superiores...
Com efeito, não ponderei que poderia ser tratado como gado velho a ser permutado por novo. Mas foi o que me ocorreu, eis que me vi a tomar conta de presidiários, enquanto um novato ocupava meu antigo posto. Dei de cara com muitos bandidos que eu mesmo prendera, alguns ainda ameaçadores, mas que logo se acalmavam quando eu lhes ia alertando que apertaria a fiscalização sobre suas parentelas, e que toda ação pressupõe uma reação... E foi ali, naquele presídio, que reencontrei o José de Arimatéia...
Já vencido pela idade, e principalmente pela rudeza do cárcere, os cabelos grisalhos aflorando com impetuosidade, lá estava o meu romântico desafeto em sua enxovia. Quando o fitei, trancafiado num cubículo ainda diminuído por estantes e livros enfileirados, espantei-me. Novamente ele me impressionava, não tanto por seus cabelos brancos, eu também os carregava em quantidade, assunto que ocupou as primícias do reencontro: nós ambos estávamos velhos.
Estranhei, em princípio, que José de Arimatéia ainda estivesse preso, mas ele me esclareceu que fora obrigado a se defender de dois internos que o tentaram violentar, e ele, reagindo, matou-os. Enfim, estava preso desde quando eu lhe colocara as algemas no seu último dia de liberdade. E foi essa “liberdade” o foco de muitas conversas que encetamos durante horas e horas, dias e dias, noites e noites, meses e meses, anos e anos...
Com tempo de sobra, José de Arimatéia e eu nos viramos pelo avesso. Ele me relatou miudamente a sua vida de encarcerado, enquanto eu lhe narrava as minhas peripécias profissionais e pessoais. José de Arimatéia era universitário quase formado quando o prendi. Não fossem os crimes que se viu obrigado pelas circunstâncias a cometer, estaria livre.
Não pretendo reproduzir os incontáveis diálogos que tivemos, mas, sim, gravar a síntese da veemente contradição que ele me enfiou no espírito, tendo como tema central a liberdade. Lembra-me que certa vez ele reagiu, sorrindo, quando lamentei por vê-lo recluso durante tanto tempo. A primeira coisa que ele fez foi me indagar se durante as horas em que me mantinha no meu labor, eu me considerava livre. É lógico que lhe respondi que sim, apesar de admitir que não se tratasse de liberdade física. Afinal, eu estava com meu corpo tão trancafiado quanto o dele. Apenas havia, no caso dele, um cadeado a mais... Assim, José de Arimatéia convenceu-me de que a verdadeira liberdade era a do espírito, ou seja, a mesma que manteve acesa a chama interior de Nelson Mandela durante décadas.
Confesso que José de Arimatéia me foi descortinando algumas realidades que eu não entendia claramente. Certa vez ele me convenceu de que até a obrigatoriedade de sair do trabalho ao lar, de cuidar dos afazeres domésticos, incluindo-se, neste caso, a presença física ao lado da mulher em vez de estar num bar bebericando, também era uma espécie de falta de liberdade. E por mais que eu o contestasse, meu espírito mergulhava na dúvida. Mesmo assim, eu reagia aos argumentos do meu desafeto. Contudo, ele entrou a provar que, mesmo preso, era mais livre que eu...
Não parei tanto no tempo, devo aqui dizer. Entrei para a PM quase analfabeto. Com muito esforço, consegui concluir o segundo grau em curso supletivo. Aliás, disse isso a José de Arimatéia sem ocultar certo orgulho. E ele, entusiasmado, aplaudiu-me, indagando-me, porém, se eu gostava de praticar habitualmente a leitura. Fui obrigado a lhe confessar que não, pois meu tempo era quase que totalmente dedicado ao trabalho e ao sono. E nos intervalos, uma novelinha sempre me caía bem... Divertindo-se com minhas respostas, ele acabou afirmando que, mesmo preso, era mais liberto que eu. Ah, aí eu estrilei! Mas não pude deixar de ouvi-lo.
Depois de se referir a Machado de Assis e ao seu conto Idéias de Canário, e sem perder seu picante humor, José de Arimatéia explicou-me que muitas vezes viajara mundo afora, indo ao passado, vindo ao presente, projetando-se ao futuro. Saíra, sim, à liberdade, e voando com as asas da ficção fora muitas vezes às estrelas. Daí estar sua cela apinhada de livros. Demais, acrescentara ao seu cotidiano a leitura de jornais e revistas e o estudo de línguas estrangeiras. Se já era um quase universitário quando ali chegou, alcançara talvez o doutorado. Deste modo, era absolutamente feliz. Sim, isto não me cabia contestar, especialmente porque eu nunca me sentira tão envergonhado da “liberdade” que me fora possível até então desfrutar.
Mais ainda se complicou minha cabeça quando José de Arimatéia me provou que o fato de ele estar preso decorria de faltas que ele conscientemente praticara. Houvera justiça, no seu caso particular. E no meu?... Quantas vezes fui injustamente punido? E admoestado pela patroa por não conseguir prover a família dos meios necessários a uma sobrevivência digna? E atingido em minha própria liberdade pelo tacanho militarismo que voluntariamente abracei?... Exemplos?... Dobra de serviço em razão de inesperada ausência de companheiros. Detido em quartel por motivos fúteis, desfazendo programas familiares e recebendo no peito as reclamações de mulher e filhos. Enfim, que “liberdade” fora a minha?
Dei razão ao meu amigo José de Arimatéia. Penso, hoje, se não teria sido melhor a minha vida naquele distante passado se ele fosse eu, e eu, ele. Bolas!... Ele assaltou, mas por fidelidade aos seus ideais. Por isso está fisicamente preso, mas permanece com o espírito livre, enquanto que eu, supostamente livre, vejo-me preso à dura realidade de que nada construí por minha própria iniciativa. Acomodei-me em resignação por toda a minha infeliz existência. Sim, sou eu, e não ele, o verdadeiro presidiário!...


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