sábado, 2 de agosto de 2008

Milícias

Desde o início de 2007 eu venho estudando as milícias sem me prender à visão policialesca, muito restrita em comparação ao meu modo de perceber o fenômeno, que, antes de tudo, é social e se reporta ao próprio modelo de segurança pública do Estado e à sua ineficiência no controle do banditismo do tráfico, que há décadas domina as favelas do Rio como verdadeiros feudos. Até mesmo provoquei o tema em romance intitulado Cidadela Contemporânea (edição esgotada), disponível para leitura e impressão gratuita no meu site (www.emirlarangeira.com.br).
Hoje, dia 02 de agosto de 2008, li com atenção o artigo do ilustre membro da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinicios Vilaça, e percebo com alegria a convergência de pensamento que casualmente ocorreu. Já escrevi três artigos sobre milícias, e com esse intróito sugerindo a leitura do artigo do Acadêmico (Os currais do Rio) passo a postá-los inaugurando o meu novo blog (o outro eu estou desativando por ter sido infectado, mas repassarei todos os artigos para este novo blog).

Milícias I

Comunidade de Rio das Pedras: oásis ou miragem?

Outro dia fui levado pela curiosidade à famosa localidade de Rio das Pedras, comunidade carente situada na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Trata-se de uma mistura de favela com periferia semi-urbanizada, abrigando cerca de 90.000 (noventa mil) moradores, ou seja, uma população maior que muitas cidades brasileiras, duas vezes a Favela de Acari.
Fui à noite, numa quinta-feira. Cheguei em torno de 21h. Enquanto andava do estacionamento até o restaurante, famoso por receber políticos e autoridades públicas, como pude verificar em muitas fotos expostas em orgulho pelo proprietário, fui observando tudo. Pude perceber o fervilhar de gentes humildes e bares apinhados de policiais (em sua maioria policiais-militares), alguns dos quais até me cumprimentaram em cortesia. Notei a descontração dos passantes em contraste com os olhares ariscos dos policiais, todos à paisana e aparentemente à vontade. Lugar, com certeza, pra bandido nenhum se arriscar a tomar em valentia. É suicídio!... Bem, cheguei e achei interessante o restaurante: telhado pintado em azul, lugar simples, sem luxo, porém bem cuidado.
Sem dúvida, Rio das Pedras é localidade segura e pululante. Apesar do adiantado da hora, o comércio estava a pleno vapor: bares, mercados, quitandas, lojas etc. Igualmente notei um esquema de transporte alternativo funcionando em primor. Enfim, uma autêntica cidade plantada na capital e vigiada por policiais civis e militares sob a liderança de um policial civil famoso no lugar. Veio-me inevitavelmente a indagação: "Por que ali é assim, enquanto outras favelas se vêem sitiadas por marginais da lei?"
Logo concluí que os policiais civis e militares, por conta própria (não sei em que número), tomaram para si a defesa da localidade e obtiveram êxito. Ocuparam o terreno antes do inimigo (ou teria sido depois?), seguindo o velho ensinamento de Sun-Tzu. Antes ou depois, todavia, a realidade é que eles estão lá dia e noite e qualquer pessoa, desde que identificada como não-bandido, pode circular livremente, em total segurança. Percebi esta sensação no semblante dos transeuntes, como já afirmei.
Mesmo assim, não posso negar que minha curiosidade foi além da observação epidérmica daquela tessitura social ímpar. Desconheço até então a existência de alguma pesquisa antropológica ou sociológica feita ali. Não sei se permitiriam... De qualquer modo, vi-me ante uma situação inusitada sob o ponto de vista legal: o monopólio do uso da força exercido por agentes públicos por conta própria. Mesmo sendo policiais, estão ali como pessoas físicas, não representam o poder público do qual fazem parte.
Lembro-me de situação mais ou menos semelhante na Favela Pára-Pedro, pelos idos de 1989. Situada na área do nono batalhão, a comunidade, hoje sitiada por traficantes do CV, não permitia a proliferação de bandidos no seu meio. Havia lá um grupo de moradores (não-policiais) exercendo a vigilância a ferro e fogo, com muitas mortes por eles patrocinadas, claro que jamais assumidas. Eram considerados "heróis" pela comunidade e a lei era a do silêncio...
Destinei atenção especial à favela porque bandidos a tentaram tomar à força, inclusive assassinando parte do tal "grupo de proteção" e expulsando o seu líder, um nordestino minúsculo e raquítico conhecido pelo apodo de Menininho. Aliás, de "menininho" ele nada tinha: matava feito cão danado, segundo os surdos comentários de favelados que o idolatravam, mas não respondia nem a inquérito policial. E não me houve forma de garantir à comunidade que o batalhão prestaria uma segurança à comunidade melhor que a do nordestino. As gentes faveladas até que confiavam em mim, mas diziam que em pouco tempo eu não mais estaria comandando o batalhão e os bandidos tomariam a favela. Era melhor pra eles, então, manter o tal "grupo" em ação permanente na localidade, em vez da PMERJ. Não aceitei. Mantive o policiamento dentro da favela e o tal "grupo" recolheu-se em "forma cística".
Tinham razão, todavia, os moradores: deixei o comando e não muito tempo depois a favela ficou sem proteção. Os bandidos a invadiram, matando os integrantes do tal "grupo". Menininho desapareceu e até hoje corre à boca miúda que ele "vendeu" a favela para os traficantes, pondo na bandeja seus desavisados parceiros. Enfim, não resistiu ao chamamento do ouro: "Embora a autoridade seja um urso teimoso, muitas vezes, à vista de ouro, deixa-se conduzir pelo nariz." (Shakespeare).
No Rio das Pedras, a segurança é formada por policiais civis e militares, portanto um pouco diferente do modelo que constatei existir na Favela Pára-Pedro. Mas fico aqui me indagando se erradicar o tráfico, como de fato lá ocorre, inclui também a prevenção e a repressão de outras modalidades de crime, principalmente os decorrentes de conflitos familiares, bebedeiras e outros motivos afins. Quem sabe não seria interessante estudar e comparar ocorrências policiais registradas na delegacia policial e no batalhão da área com outros lugares favelados controlados por bandidos? Ah, é bom que se diga, não vi nenhuma viatura policial transitando nas imediações...
A indagação procede, sim, pois é de se esperar que as relações entre os micro-poderes que ali interagem são convergentes, mas podem ser conflitantes, o que implica a necessidade de um poder maior para desempatar as contendas sociais (e comerciais) que decerto devem ocorrer. Também importa considerar que neste mundo capitalista em que vivemos os negócios mais disputados às vezes não se situam no campo da legalidade, embora aceitos pela população. Destacaria dois temas que vêm polarizando a opinião pública (ou publicada): a fiscalização das máquinas caça-níqueis e do transporte alternativo, podendo-se ainda sublinhar o combate à pirataria, a vigilância sanitária etc.
É claro que sustentar um grupo tão seleto de policiais, que não residem na comunidade, mas a controlam com inegável eficiência, deve custar caro. Afinal, eles arriscam suas vidas a troco de quê?... Eis uma situação curiosa e pouco clarificada: quanto deve custar à comunidade local (e à sociedade) sustentar uma milícia mais poderosa que qualquer "bonde" de bandidos ou qualquer esquema oficial de policiamento? Será que o custo/benefício dos cidadãos favelados é real? Será que estamos diante de um oásis comunitário ou somente de sua miragem?...
Eu, particularmente, observador apenas superficial do fenômeno aqui resumido, creio que é melhor ter um sistema funcionando assim do que depender a comunidade carente (e vale o raciocínio para todas) da proteção e do beneplácito de traficantes, estes, que não podem evitar confrontos com a polícia e com bandos rivais. Também se deve admitir que a maquinaria governamental não proveja as necessidades básicas da população periférica, que, por sinal, vive assolada por tiroteios. Entretanto, sinto que há necessidade de se conhecer o conteúdo do fenômeno, sua parte invisível e profunda, para se aprovar a iniciativa ou rejeitá-la com argumentos sólidos. Vejo como precipitação concluir, sem conhecer a fundo, e desde a sua origem, o fenômeno que se impõe como fato concreto desde há anos na comunidade de Rio das Pedras.
Há, com efeito, muitas indagações a serem formuladas e pesquisas de campo a serem desenvolvidas para se concluir contra ou a favor do inusitado modelo, sopesando sua legitimidade em contraposição à legalidade. Depois disso, aí sim, será até possível entender a presença constante de políticos e autoridades públicas reverenciando os "xerifes da comunidade", legitimando precipitadamente o modelo de segurança informal e estranho ao mundo jurídico-policial. Será que as autoridades que freqüentam assiduamente o lugar sabem o que estão fazendo? Pois a presença delas no local implica a legitimação de um fato social fora do comum, embora o grupo de policiais se demonstre eficiente e eficaz naquilo que se propõe, ou seja, manter a comunidade livre de marginais. Mas a questão não se prende apenas nos fins informalmente traçados e atingidos; antes, deve-se conhecer em profundidade os meios utilizados para tanto. Só então se saberá se o que se vê é oásis ou miragem...
Digo, no meu caso, que gostei do que vi, mesmo restrito ao círculo maior que encerra toda aquela comunidade. Neste círculo epidérmico, voltado para o ambiente geral, sem dúvida se percebe uma sensacional segurança. Mas faltam à comunidade investimentos governamentais, e se poderia aqui também pensar em investimentos particulares promovidos por incorporadores, empreiteiras, comerciantes etc. Afinal, a região cresceu para atender às classes média e alta graças aos favelados que vieram de longe para construir os milhares de luxuosos condomínios verticais e horizontais que rodeiam a comunidade de Rio das Pedras em imponência.
Se ali fosse lugar dominado pelo tráfico, é certo que outros crimes graves, como seqüestros, roubos de veículos, assaltos e quejando seriam imediatamente acrescidos ao tráfico e perturbariam deveras a tranqüilidade do asfalto rico. Portanto, e para evitar que a tentação profetizada por Shakespeare um dia vença o ânimo dos protetores da comunidade, e eles abandonem o barco depois de conquistado, não seria demais que os ricos se preocupassem mais com os "abaixo da linha de pobreza" que com suor mal pago edificaram seus milionários patrimônios. Pois de uma coisa tenho certeza: da mesma forma que a maquinaria governamental jamais erradicou o tráfico e suas conseqüências em lugar nenhum (não é fácil vencer um inimigo bem instalado no terreno), também os traficantes jamais conseguirão retirar à força os protetores de Rio das Pedras. Mas, se um dia conseguirem, ali será a uma paradoxal reedição da "Cidade de Deus", que, na verdade, deveria ser chamada de "Cidade do Diabo".


Milícias II

Problema ou solução?


A visão policialesca sobre as milícias que se proliferam nas favelas do Rio de Janeiro, expulsando traficantes e instituindo um novo modelo informal de poder a partir da formação de micro-poderes armados, tende ao fracasso. Ora, estamos ante um fenômeno social que de novo nada tem. Imaginar, portanto, que Estado e Poder se restringem a uma sinonímia intransponível, e que o monopólio do uso da força é exclusivo do Estado, é renegar a possibilidade de haver transformações sociais muitíssimo além. Basta citar as revoluções deflagradas contra os poderes dominantes ao longo da História da Humanidade.
Com efeito, não é assunto novo. Foucault, em sua Microfísica do Poder, muito esclarece quando fala em “técnicas de dominação”, concluindo em apertada síntese que aqui se faz: “Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado, distinção que não parece, até então, ter sido muito relevante ou decisiva para suas análises”. Ainda diz sobre as “técnicas de dominação”: “Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.”
Buscando inspiração na frase contida no Manifesto Comunista (“Tudo o que era estável e sólido desmancha no ar”), o norte-americano Marshall Berman escreveu “A aventura da Modernidade”, intitulando-a: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Em texto apurado, e deveras complexo, a idéia do autor traduz a realidade da beleza de uma cidade ao lado do horror que nela se acumula sem que o Estado o consiga evitar, embora seja sua função-síntese garantir a segurança dos cidadãos produtivos e respeitadores das leis. Mas, paradoxalmente, ao lado de cada cidadão produtivo, ou dentro dele próprio, em forma latente, está o malfeitor que um dia aflorará em incontido desejo de burlar as leis e as regras formais. Afinal, ninguém nasce malfeitor...
Vivemos numa sociedade cuja informalidade é assumida. Existe o câmbio paralelo em contraposição ao câmbio oficial; existe a aberrante pirataria; existem meios e modos de sonegação fiscal; existe um Estado que combate a contravenção e a pratica simultaneamente, como se fosse mero concorrente dos contraventores informais.
Enfim, negar a existência de micro-poderes informais numa sociedade é negar a própria existência do corpo social. As milícias, na verdade, são apenas mais um modelo informal de suprimento da falência absoluta do Estado em todos os seus espaços e tempos. Por isso, creio ser pura falácia a crítica midiática e o coral das autoridades públicas cantando que “combaterão as milícias”. Ora, nem os traficantes instalados como senhores feudais nas favelas o Estado conseguiu vencer, como então vencer as milícias, estas, formadas por membros efetivos da própria maquinaria estatal, ou por ela injustamente expurgados por serem combatentes de bandidos?
Quero estar vivo e com saúde para assistir a mais este fracasso estatal. Pois, se a maquinaria governamental retirar as milícias, retornará o tráfico com seu Poder Paralelo em pujança. Ou seja, será pior a emenda que o soneto.



Milícia III

Reflexão

Na seqüência de matérias de O GLOBO sobre a ditadura nas favelas do Rio de Janeiro, – fenômeno social que pode ser estendido, sem erro, a todo o Grande Rio, – finalmente são focadas as milícias, em 27 de agosto de 2007, denominadas pelos articulistas como “grupos paramilitares”, tais como seriam as quadrilhas de traficantes homiziadas em muitas outras favelas. Deste modo simples e direto, e em vista da lei crua, o “miliciano” torna-se sinônimo de “criminoso”. Cabe uma reclamação, pois a denominação “milícia” é grafada pela mídia para designar grupo de “supostos policiais” (a palavra “suposto” está em voga; portanto, também vou nessa...) a dominar favelas por meio de mecanismos semelhantes aos dos traficantes. Mas isto cheira a generalização de preconceito contra todos os milicianos... Afinal, “milícia” é dicionarizada como “vida ou disciplina militar” ou “força militar de um país” e demais conotações positivas, sublinhando-se até a metáfora “milícia celeste”, relacionada aos “anjos e bem-aventurados”.
Ora, não adianta chiar, o pejorativo pegou à moda William Randolph Hearst e dificilmente dará lugar a outro, o que acaba por afetar a dignidade histórica de todas as milícias brasileiras, que já carregam a pecha de “tropas auxiliares de segunda linha”, embora se trate de designação que conota idéia de ocupação em segundo plano de território conquistado por um “corpo de exército”. Ora bem, feito o esperneio (Irra! Arrenego!), vamos ao que interessa...
O Jornal O GLOBO afirma que há atualmente 98 favelas dominadas por “milícias”, e se firma na ilegalidade da existência delas (sempre em visão reducionista e policialesca) para dar fala unívoca à Corregedoria-Geral Unificada (CGU), na pessoa do digníssimo senhor corregedor-geral, que não só confirma a idéia da ilicitude praticada pelos “milicianos”, como também confessa a impossibilidade de agir contra eles. Mas oferece um dado interessante: em 18 meses, houve 547 denúncias, sendo que 93 ligadas à prática de extorsão. Em seguida infere subjetivamente que a “extorsão geralmente está associada à ameaça, ao abuso de autoridade, à agressão e à tortura”, acrescentando a indefectível tese da “formação de quadrilha” como crime autônomo bastando-se a si próprio.
Não é o caso de polemizar em torno das afirmativas do ilustre corregedor-geral, pois nosso objeto de discussão é outro. Entretanto, merece sublinha o fato de que não há no texto indicação sobre quem seriam os autores das denúncias (seriam anônimos?). Não se trata de conhecer as pessoas, mas apenas saber quem está por trás das reclamações: se gentes prejudicadas por “milicianos” ou se traficantes e seus prepostos abalados nos negócios do tráfico, que igualmente incluem ágio de vária ordem, conforme reiteradas vezes a própria imprensa denunciou: traficante cobra ágio de tudo e até controla boa parte do transporte alternativo.
Na verdade, o ágio só trocou de mãos, restando saber se isto melhorou ou piorou a vida dos favelados, incluindo-se entre eles milhares de policiais e bombeiros, que, no mínimo, tiveram de se mudar, deixando à mercê do tráfico seus amigos e familiares. Mas uma coisa é certa: independentemente do aspecto jurídico-legal, a realidade é que a maquinaria governamental se demonstra incapaz de libertar os favelados do jugo insano de traficantes. Daí surgirem milícias, e outra explicação não há para o fenômeno, a não ser pelo fato de que as milícias não surgiram por conta de abiogênese. Isto decerto vem de longe, num processo de evolução social penoso e decorrente da desatenção governamental e societária em relação às comunidades carentes, e mais ainda em função da ausência de garantia à integridade física e moral do policial e seus familiares.
Interessa, neste ponto, analisar os números, nem tanto ao modo do professor Ignácio Cano, mas de forma igualmente aleatória e atropelando a lógica, já que nos faltam premissas e argumentos verdadeiros para nos conduzir a uma conclusão válida. Assim, indaga-se: que população compõe numericamente as 98 favelas? O que havia nelas antes das “milícias”? Como ficaria a falaciosa “razão ignaciana” neste caso?... Já que não há respostas, o negócio é “pontapear a estatística” dando o nosso “chute”, em “bola rasteira”, admitindo, no mínimo, que cada favela acolha uma população média de 20.000 almas humanas. Deve ser bem mais; contudo, isto não importa, estamos somente “chutando”... Daí então, multiplicando-se 98 por 20.000, contaremos 1.960.000 (um milhão e novecentos e sessenta mil) favelados. Desses, apenas 547 apresentaram suas queixas, como está na reportagem, ou seja, 0,028% da população favelizada. Imaginemos agora qual será a população real das 98 favelas, refaçamos os cálculos, e o percentual será ainda mais irrisório...
Sei, todavia, que não é bem assim que o problema deve ser analisado, pessoas não são números, ambientes são diferentes, policial não é igual a bandido, como sugeriu Ignácio Cano na sua esdrúxula comparação. Lidamos com seres humanos, o que nos remete aos conceitos de “comunidade” e “sociedade”. Sem muito aprofundar na complexidade do assunto, basta lembrar o cientista político Paulo Bonavides. Diz ele, grosso modo, que comunidade é orgânica, emocional e solidária em vista de laços comuns, enfim, mais aproximada do “homem natural”; já sociedade é basicamente caracterizada por laços formais, portanto mais “racional” e aproximada do “homem social”.
Muito bem, o foco da matéria global, desde o início da série, tem sido a avaliação do fenômeno sob a exclusiva ótica da legalidade (societária), deste modo olvidando o valor e a força da legitimidade (comunitária). Eis o ponto que interessa... Pois a favela ajusta-se bem mais ao conceito de comunidade e o asfalto, de sociedade. Estendendo o raciocínio, poder-se-ia afirmar que a comunidade favelada é mais habituada às regras da legitimidade, enquanto que a sociedade asfáltica mais se afina, em tese, com as regras da legalidade. Sim, tudo em tese, pois ninguém será capaz de se arriscar a conceituar comunidade (A) ou sociedade (B) como sistemas fechados, e muito menos o são a legalidade (A) e a legitimidade (B). A bem da verdade, e comparando-se A com B, uma deve estar sempre influenciando a outra e modificando-se entre si por força de fatores psicossociais e socioculturais, ou seja, fatores ambientais internos e externos.
Exemplo marcante e nefasto de confronto entre legalidade e legitimidade encontra-se na Lei Seca norte-americana, que durou 13 anos, 11 meses e 24 dias. Proibiu-se a bebedeira em 17 de janeiro de 1920; a máfia faturou como nunca falsificando bebidas e o povo jamais bebeu tanto como na época da proibição. Em 07 de abril de 1933, a proibição foi suspensa e as bebidas de qualidade tornaram ao mercado, para gáudio dos beberrões, que encheram o pote quando os bares voltaram a funcionar a pleno vapor, em 05 de dezembro do mesmo ano. Não nos podemos esquecer que primeiro nasceu a proibição e, em seguida, reagiu-se a ela com o primeiro pecado. Foi assim no Paraíso. É assim ainda hoje...
Os psicólogos sociais diriam que os fatores psicossociais costumam afrontar os fatores socioculturais. Sob a ótica da Ciência Política, os primeiros caracterizam a legitimidade; os segundos seriam próprios da legalidade. Por conseguinte, não basta aos articulistas provocar discussões superficiais em vista de uma legalidade (com foco único na impunidade) que não alcança o interesse comunitário formado pelos segmentos que lhe são comuns.
Os tais “milicianos”, policiais ou não, são também “comunitários”. Pois muitos deles são favelados e sofrem na pele as pressões e o terror do tráfico. Portanto, entre sobreviver em meio a doenças, fome, opressão e tiros, a tendência dos favelados, independentemente de leis, é a de tentar eliminar a opressão e os tiros. É o que, em princípio, parece ocorrer em locais dominados por milícias, pelo menos até agora. Daí a dificuldade de se saber o que é verdadeiro e o que é falso em se tratando de avaliar a atuação das milícias nas favelas do Grande Rio.
É preciso, na verdade, que a aparição das milícias seja pesquisada cientificamente, e não simplesmente vista como nova modalidade de crime praticado por grupos formados por policiais, bombeiros e ex-policiais. Creio que esta visão reducionista, nitidamente societária, não alcançará o cerne da questão. Pois é certo que combater milícias nos dias de hoje talvez corresponda a mandar um policial se olhar a si ao espelho, e se dar a si voz de prisão, e se algemar a si, e se levar a si à autuação, e se conduzir a si à prisão, e se entregar a si ao processo administrativo para se expulsar a si de sua corporação. Complicado, hein?...

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