quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O NARCOTRÁFICO COMO UM POLISSISTEMA MUNDIAL


“Toda teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda prática deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática. Fernando Pessoa, poeta português, no livro A Economia em Pessoa, de GustavoH. B. Franco (Zahar)



Plantio de coca na Bolívia

A Teoria de Sistemas, - capaz de explicar todos os sistemas e subsistemas conceituais e físicos, do mais simples ao mais complexo, em especial sob a ótica ou a lógica da interdependência, da interação e do inter-relacionamento de ideias ou coisas entre si e com o ambiente, - permite-nos a representação visual abaixo retratada:

AMBIENTE


AMBIENTE



Sem os insumos da entrada extraídos do ambiente para serem processados ou transformados não há sistema; sem a saída (resultados) permanentemente renovada ocorre a entropia e o sistema morre. Nesses aspectos o narcotráfico já se provou indestrutível, eis que se demonstra capaz de se renovar eternamente, malgrado sua impressionante complexidade.

Com efeito, trata-se de crime do século, vencedor de todas as batalhas e superior a todos os sistemas instituídos para derrotá-lo na formalidade ou na informalidade dos sistemas estatais destinados até mesmo à espionagem. Quanto aos sistemas estatais visíveis, são eternos perdedores, pois a criminalidade vem vencendo esses sistemas situacionais mundo afora (visíveis ou secretos). Esta é a realidade, gostem ou não as autoridades que administram os sistemas destinados ao controle da criminalidade geral e/ou específica.

Com efeito, o narcotráfico, como polissistema mundial, de amplitude incomensurável, é capaz de assumir mimetismos muito além do polvo ameaçado por perigo, além de possuir tantos tentáculos quanto o somatório de todos os polvos que habitam os oceanos. Apesar disso, o narcotráfico não escapa à lógica do sistema; no caso dele, trata-se de um sistema social multinacional, de proporções gigantescas, pronto para abraçar o mundo sem a necessidade de usar todos os seus invencíveis recursos, ou tentáculos, se ainda comparado ao polvo.

No contexto deste raciocínio, pode-se afirmar que são muitas as variáveis que funcionam como sistemas e subsistemas em seus desdobramentos maiores ou menores, todos, porém, protegidos contra quaisquer processos entrópicos, posto haver homeostases superiores às tentativas de entropia que ele encontra de caminho.

Alguns podem achar que exagero, mas a realidade do narcotráfico vencedor é tão evidente que não permite dúvidas quanto ao seu desmedido poder no ambiente mundial. E é neste ambiente que se situa o Brasil como um sistema protagonista e vítima: ou é rota de passagem das drogas para outros continentes ou importante consumidor. Que fazer então?... Ignorar esta realidade ou apontá-la, pelo menos, para não nos situarmos como idiotas ante o problema?

Comecemos a tocar a ferida com dedo leve... Refiro-me aos nossos vizinhos fronteiriços, “mui amigos”, que, amparados pela soberania, deixam que seus povos cultivem à vontade as plantas malditas (coca, maconha etc.), não sendo demais supor que haja nesses inexpugnáveis territórios alienígenas protegidos por tratados de não agressão até plantios de papoula, das quais se produzem o ópio, e o fabrico de drogas sintéticas segundo a mesma lógica da permissividade oficial.

No fim de contas, tudo é possível quando impera a frouxidão da fiscalização estatal (nacional e internacional), mais preocupada com o enriquecimento de urânio, com os mísseis balísticos e com outras geringonças destinadas à guerra, além, é claro, do petróleo. De modo que os países que controlam o mundo não querem saber se países subdesenvolvidos plantam, traficam e consomem drogas. Para os ricos, investir em prevenção e repressão às drogas não é problema; eles ainda se permitem que as drogas sirvam para acalmar alguns grupos mais radicais, que defendem o “direito” de consumir drogas. Tudo muito equilibrado, porque, afinal, droga é dinheiro, e ninguém quer ficar fora desse pujante comércio, que ainda atrai para si o não menos promissor comércio de armas sofisticadas.

De modo que, por esses motivos, e muitos outros, a frouxidão nesses países industrializados é bem-vinda ao narcotráfico, em especial na saída do sistema, eis que lhes permite receber a droga pronta e acabada, só dependendo de transformá-la em “mais-valia” financeira a garantir insumos para a entrada do sistema, sempre garantindo que “o todo seja maior que a soma das partes” (globalismo) nesse conjugado negócio de comercialização de armas e drogas, porque um já não mais sobrevive sem o outro, e tudo se torna ouro. Como dizia Cecília Meireles: “[...] /Onde a fonte de ouro corre /Apodrece a flor da lei [...]”

É verdade! Nesse malabarismo espetacular, em que boa parte dele poderia ser monitorada por sofisticados sistemas  tecnológicos, nada acontece que não se saiba. Porque, se é fácil ocultar as pequenas torneiras que jorram drogas e armas no mundo, não é simples ocultar seus mananciais. Mas, para tanto, haveria de haver acordos internacionais voltados para a erradicação desses dois males que assolam a humanidade: tráfico de drogas e contrabando de armas. E não seria difícil aos países interessados instituir entropias invencíveis para danificar o polissistema narcotráfico e o polissistema contrabando e descaminho de armas. Acontece, porém, que tal providência é como água correndo morro acima. Nem a punição mais ameaçadora é capaz de evitar que o narcotráfico prospere e atenda a interesses geopolíticos e econômicos, entre outros imorais e inconfessáveis, num contexto em que tudo funciona independente de suas lideranças: a engrenagem não necessita de donos, todos são donos no âmbito de suas tarefas, e as falhas se reconstituem naturalmente ou na base da lei do cão, pois é certo que a reposição de mão de obra é imediata e muito concorrida.

A realidade é que o comércio clandestino de drogas, com suas mil e uma modalidades e mutações, tornou-se onipresente e onisciente; porque tudo pode e tudo sabe, valendo o mesmo argumento para o comércio clandestino de armas. E ambos, em globalismo, põem de quatro os Estados e seus mandatários, sejam democratas, ditadores, líderes religiosos, monarcas e demais tiranos grandes e pequenos. (“Vede os pequenos tiranos / Que mandam mais do que o rei / Onde a fonte de ouro corre / Apodrece a flor da lei.” (Cecília Meireles)

Comércio de Drogas e Comércio de Armas: irmãos siameses que evitam confronto com os poderes estatais; buscam sempre negociações espúrias com políticos e dinheiro não lhes falta, a “mais-valia” garante o sucesso da interação desses sistemas situacionais marginais com seus equivalentes estatais. Só como exemplo de malabarismo entre milhares, imaginem a China, que determina a pena de morte para traficantes; mas lá há fábricas de insumos inofensivos, que são exportados para países onde as leis são frouxas ou inexistem. A fabricação e a exportação desses insumos em separado não é crime. Ocorre que, quando manipulados, tornam-se drogas sofisticadas, que são comercializadas mundo afora sem problemas. Claro que os chineses sabem que drogas são lucrativas e não ficariam fora do negócio. E muitas outras artimanhas são feitas para gerar drogas e divisas.

Mas tornemos ao nosso lugar comum, à cocaína e à maconha, drogas preferenciais do povão tupiniquim, não se considerando aqui o volumoso uso de crack, subproduto da coca de efeito devastador. Sabemos quem planta e colhe em larga escala essas matérias-primas: nossos vizinhos fronteiriços, na maioria dos casos contando com o beneplácito de governantes, alguns assumidos “cocaleiros”. Cá entre nós, é como o Brasil conceber um sistema sem entrada nem insumos, sem admitir como se dá o processamento, para atuar apenas na saída, esta, multifacetada, multivariada, enfim, incontrolável. Seria mais ou menos como ignorar a caixa d’água que se abastece automaticamente e ficar fechando torneiras que logo são abertas por outras pessoas num círculo vicioso e infindo. Como vencer tal impasse? Como reverter esse círculo vicioso para torná-lo virtuoso?

Curioso é que somos contaminados por um sistema de tráfico que tem origem quase rudimentar. Sim, na maior das vezes são camponeses que plantam, colhem e processam a coca no meio de florestas inóspitas, até alcançar o estágio da “pasta”: produto amarelado e prensado em barras de um quilograma, tudo consequente da dilaceração das folhas de coca com uma simples máquina de cortar grama ou outro método rudimentar, até manual. Para tanto, são postas dentro de um tanque de alvenaria bastante tosco, ou algo que o substitua com o mesmo objetivo, com as laterais de mais ou menos meio metro de altura. E, depois de trituradas, as folhas tornam-se um “caldo” esverdeado; então os cocaleiros lhe acrescentam cimento virgem e gasolina, demais de outras misturas rudes, até que o produto artesanal se torne leitoso. O líquido é então filtrado em rotos sacos de pano para reter os resíduos. Esse líquido é posto em engradados forrados com o plástico e ali repousa até ficar denso. Pronto! A pasta da coca está feita e pode ser despachada, claro que dissimulada em outros invólucros. Enfim, tudo muito simples e rústico, mas que, dependendo do país que receba o quilo da pasta, o preço pode variar de U$ 5.000,00 a U$ 40.000,00. E assim toneladas de cocaína, em estado precário, rodam o mundo de todos os modos, como se fossem torneiras permanentemente abertas, pois o tráfico não descansa, produz sem parar nesses mananciais sacralizados em nome de soberanias que, decerto, não deveriam existir para atender a fins tão tenebrosos.



Conheço bem essas embalagens de cocaína, como também vi muita maconha prensada em mel, melado e outros ingredientes a dissimularem o seu forte cheiro, sendo certo que também a cannabis sativa pode ser plantada e colhida como relva em qualquer espaço, bastando um vaso e terra. Mas deixemos a maconha de lado e nos concentremos na cocaína, esclarecendo que não pretendo me ater a drogas mais sofisticadas, naturais ou artificiais, já que, em razão de malabarismos, são inúmeras nos dias de hoje. Na verdade, apenas acrescento que todas servem de insumo à entrada do sistema desenhado no início, caracterizando uma autêntica organização transnacional criminosa que nada deve às mais sofisticadas empresas do planeta, que, enquanto organizações, forjam-se e funcionam escoradas nas seguintes variáveis básicas indicadas pela Teoria Geral da Administração (TGA): “estrutura, pessoas, tarefas, tecnologia, ambiente e competitividade”.


Enfim, ressalvados os mistérios que sabemos existir em todas as organizações, até nas mais transparentes, não se há de negar que todas são “sistemas sociais abertos”, em interface permanente com suas partes e com os mais variados ambientes (gerais, intermediários e específicos), tendo em comum a busca frenética pelo lucro, com vantagem para o narcotráfico, que não paga impostos. E as propinas, por mais vultosas que sejam, não custam mais do que desembolsam as organizações formais do modo como sabemos. Traduzindo tudo isto em poder, não seria demais afirmar que estamos diante de um “Poder Marginal” e de um “Poder Estatal”, com o segundo controlando a sociedade com a presteza de tubarões famintos, e o primeiro atuando onde as leis inexistem ou são insuficientes para conter os tentáculos arrasadores do narcotráfico. E neste ponto se poderia fixar a grande dúvida: “Qual dentre ambos é o mais poderoso?”

Ora bem, todo esse contexto se insere no ambiente geral do planeta, nos ambientes intermediários dos continentes e países e nos seus ambientes específicos, indo da macrocriminalidade à microcriminalidade. Se aqui considerarmos uma ordem pública mundial, ou nacional, ou local, em qualquer hipótese desta ordem ela há de se apresentar como o “ser” da convivência social (“ordem material”) e como o “dever ser” (ordem formal norteadora da convivência social). Elas são sistemas ou subsistemas que convivem como irmãs siamesas em qualquer sociedade. E são tratadas por sistemas formais (leis e regulamentos) e informais (restauração natural da ordem em caso de muitas desordens, ou mediante ação do Estado fundamentada no “Poder de Polícia”). Nas duas situações, a sociedade se vale de um sistema de freios e contrapesos para que os direitos e garantias individuais sejam observados por seu “Estado Protetor”, entre aspas porque nem sempre ele protege o cidadão, este, supostamente pleno de direitos, mas aviltado por seu protetor em nome de um subjetivo “interesse público”.

De tudo que se comentou até este ponto, é evidente que o Brasil se insere bem mais no processamento e na saída. No processamento porque a distribuição do atacado da droga nele se insere, ou como rota ou como distribuição interna. A saída, no caso, seria a comercialização em si, agora com a participação dos demandantes (usuários), que são aos milhões. Porque, mesmo que se admita a existência de plantios no território brasileiro, principalmente de maconha, não se trata de quantidade relevante. Verdade é que o Brasil é grande consumidor, e não se pode negar tal fato, basta ler os noticiários dando conta das facções criminosas atuando no varejo, em especial nas favelas de tudo que é canto pátrio. Mas...

... Creio que neste ponto já se poderia indagar como o sistema de segurança pública pátrio, - se é que pode ser assim denominado, - resumido constitucionalmente ao atual modelo, com uma carga muito forte nos ombros dos Estados-membros, como esse sistema capenga e veementemente criticado poderia vencer o poderoso polissistema mundial do narcotráfico e do contrabando de armas?

A indagação nos remete à ideia imediata da visualização de toda essa história como um “processo”, e não como descrição de um mero “abridor de latas”, nos termos sugeridos pelo Físico Quântico Leo Smolin, Prêmio Nobel de Física:

“Existem objetos como as rochas e os abridores de latas, que simplesmente existem e podem ser completamente explicados por uma lista de suas propriedades. E existem coisas que somente podem ser explicadas contando uma história. Para as coisas do segundo tipo, uma simples descrição nunca é suficiente. Uma história é a única descrição adequada para elas, porque entidades como as pessoas e as culturas não são de fato coisas, mas sim processos que se desenvolvem no tempo.” (Smolin, Leo – Três Caminhos Para a Gravidade Quântica)

Com efeito, somente o estudo aprofundado de vivências anteriores, como um só processo histórico, nos poderia informar sobre os passos presentes e futuros. Em não havendo esse estudo crítico, conceitual e prático, dentro da ótica filosófica da “vivência”, - e não das “ideias superficiais e inovadoras” descritas como “as rochas e os abridores de latas”, - só com um estudo aprofundado é que poderemos concluir pela reinvenção do sistema nacional de segurança pública, reiterando aqui: “Se é que existe algum, crendo eu que não”...

Mas como tudo são “processos que se desenvolvem no tempo”, devemos logo concordar que uma “ideia” jamais será uma “vivência”, como também nos ensina Manuel Garcia Morente em seu clássico “Fundamentos de Filosofia – Lições Preliminares” – Editora Mestre Jou – São Paulo/SP – 1980:

“[...] Sem vivência do passado filosófico, sem um reformulamento de sua problemática e de seus êxitos e malogros, é precário o exercício da crítica tão indispensável a todo filósofo que se preze. Sem uma prévia visão retrospectiva, sem uma visão do passado incidindo sobre o presente, é impossível ao filósofo situar-se dentro de seu próprio tempo [...]”.

Nesta linha de raciocínio, o autor vai além e sugere:

“[...] Vou dar um exemplo para que se compreenda bem o que é ‘vivência’. O exemplo não é meu, é de Bergson: ‘Uma pessoa pode estudar minuciosamente o mapa de Paris; estudá-lo muito bem: observar, um por um, os diferentes nomes das ruas; estudar suas direções; depois, estudar os monumentos que há em cada rua; pode estudar os planos desses monumentos; pode revisitar as séries das fotografias do Museu de Louvre [...] pode chegar a ter dessa maneira uma ideia bastante clara, muito clara, claríssima, pormenorizadíssima, de Paris [...] Ao contrário, vinte minutos de passeio a pé por Paris são uma vivência. Entre vinte minutos de passeio por uma rua de Paris e a mais vasta coleção de fotografias, há um abismo. Isto é, uma simples ideia [...] enquanto colocar-se realmente em presença do objeto, isto é vivê-lo, viver com ele; tê-lo própria e realmente na vida; não o conceito que o substitua [...]”

Diante do raro ensinamento, - e considerando o que ocorre hoje como consequência de um passado em evolução, - não há como resgatar senão uma ideia anterior baseada na vivência de muitos profissionais de segurança pública que ainda estão nesta vida terrena. Reuni-los é fácil e seria útil; mas depende de boa vontade dos atuais e poderosos mandatários políticos, o que de pronto podemos rechaçar, pois eles cuidam de vivências bolivarianas no sentido de afundar o Brasil no caos social, ou seja, num mar de lama podre.

É neste ambiente apodrecido que o narcotráfico, como praga bíblica, se espalha e contamina a sociedade, e, principalmente, os seus jovens. Também é neste ambiente pátrio deliberadamente apodrecido em função de vivências gramscianas* e marxistas-leninistas**, que o narcotráfico avança junto com o “Foro de São Paulo” e outras péssimas consequências patrocinadas por um poder sem contestação, a não ser por meio de uma possível mudança pelo voto, algo ainda incerto. Afinal, o aparelhamento vem de longe, facilitado por um sistema político anterior que preferiu engessar a segurança pública a medo de reações armadas por parte de Estados-membros, ora impedidos de se estruturar conforme as reais necessidades vivenciadas no seu ambiente e não em outros ambientes que lhes são estranhos.

Só como ponto de partida em meio de caminho, vamos observar as estruturas da segurança pública a partir da Carta Magna de 1988, não sem atentarmos, mesmo que superficialmente, para momentos anteriores, dos quais só temos uma ideia graças a alguns escritores (historiadores, jornalistas, policiais, políticos etc.) que nos deixaram como legado suas narrativas baseadas em pesquisas científicas e não em ficções e trapaças, como hoje infelizmente se observa. Portanto, aqui resumirei a vivência experimentada e anotada por personalidades acima de suspeitas, para não defender somente ideias e vivências minhas:

“(...) a transição de uma ‘sociedade segmentar tradicional para outra governada pelo Estado implica uma mudança na definição de criminalidade’, que deixa de ser encarada como um delito contra indivíduos ou grupos específicos, para passar a ser vista como um delito contra uma abstração, como ‘o interesse público’. De qualquer maneira, ampliar a definição de perigos para súditos ou cidadãos, e torná-la cada vez mais abstrata, proporciona uma justificativa para que se desenvolva um aparelho para conter o que é percebido como ameaça desse tipo.” (R. I. Moore, in The Formations of a Persecuting Society – Oxford, Blackwell)

“(...) Quase todo mundo já percebeu – inclusive a imprensa, que prefere silenciar sobre o assunto com receio de perder o acesso às informações – que procuradores têm tido uma atuação leviana em alguns casos. Há vezes em que apresentam denúncia à Justiça apenas com base em uma notícia de jornal, que eles mesmos trataram de deixar vazar por baixo do pano. É comum um jornal divulgar uma denúncia hoje e, no dia seguinte, publicar a notícia de que um procurador ‘vai investigar o assunto’, num círculo de compadrio entre repórteres e procuradores que, muitas vezes, arrasa reputações com base em indícios frágeis. Se a ‘denúncia’ é fraca, esquece-se dela dias depois, mas o ‘denunciado’ já passou pelo constrangimento de ter seu nome vinculado a uma tramoia.” (Revista VEJA, de 10 de janeiro de 2001)

“A troca da investigação pela denúncia fácil é um dos grandes perigos a serem evitados pelo jornalismo brasileiro. (...) O problema dessa atitude da imprensa é confiar em um pressuposto. No caso de um pressuposto se mostrar errôneo, os danos aos envolvidos podem ser irreparáveis.” (Gilberto Dimenstein – Jornalista – painel sobre JORNALISMO INVESTIGATIVO E DENUNCISMO realizado em Brasília, em 21 de outubro de 1993, notícia veiculada na FOLHA DE SÃO PAULO)

Indo agora à análise do texto constitucional, jorro luz sobre um texto pouco ou nada questionado, embora seja a maior prova da desconfiança de quem antes vivenciava a ilusão de que a democracia se restauraria naturalmente com a tal “abertura política”, esta, que trouxe de volta os mesmos conspiradores gramscianos e marxistas-leninistas para o cenário político brasileiro.

Entenderam os militares, - que evitaram o caos social instalado no país antes de 1964, - entenderam os militares que o país amadurecera o bastante e que poderia seguir seu rumo democrático por via somente de uma Assembleia Nacional Constituinte, desde que a Lei Maior protegesse a “segurança interna”, ou seja, deixando “tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

Daí é que, antes mesmo de grafar o Título V da Carta Magna, houve a vontade de inverter a própria Doutrina da Segurança Pública como garantia da Ordem Pública, prescrita a partir da Segurança Individual e da Segurança Comunitária, ambas como centro de uma só preocupação, como está nos Manuais da Escola Superior de Guerra. Mas, contrario sensu, os Constituintes, sem dúvida pressionados, grafaram no Título V da Lei Maior: “Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”.

Ou seja, prevaleceu aquele “interesse público” a que se reporta R. I. Moore, o que se pode observar pela leitura de todo o resto. Mas importa aqui anotar as precauções que se antecederam ao título constitucional em sublinha, especialmente, o Inciso XXI do Art. 22 da CRFB:

“[...] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...] XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares; [...]”

Nem é caso de aprofundar, basta esmiuçar a competência privativa da União, que, claro, na época interessava ao Exército Brasileiro, de modo que os Estados-membros permanecessem curvados ao sistema de desconfiança anterior, para assim grafar o título constitucional contrário à própria doutrina da ESG, que valoriza a segurança pública como um bem maior do cidadão e da comunidade em somatório globalístico, e não “o estado e suas instituições democráticas.” Mas o que se tem até agora na Lei Maior é a prioridade inversa ao que prescreve a doutrina da segurança pública.

Seguindo este raciocínio, e se levando em conta a máxima estrutural de Louis Sullivan (“a forma segue a função”), ou seja, a estrutura (“forma”) segue seus objetivos (“função”), e se ainda considerarmos que a Teoria Geral da Administração prescreve que qualquer organização deve obedecer a seis variáveis básicas (Vide Idalberto Chiavenato e sua TGA): “estrutura, ambiente, tarefas, pessoas, tecnologia e competitividade”, somos forçados a concluir que a União engessou os Estados-membros. Mas cobra insistentemente deles seus próprios deveres, uma afronta ao princípio federativo, em especial à autonomia dos Estados-membros, eis que enfiada numa areia movediça pelo ordenamento constitucional supra, que ao fim e ao cabo abalroa negativamente todo o sistema de segurança pública: nacional, regional e local.

Tal fator não se resume a uma ideia, mas é vivenciado diuturnamente, como está determinado na Carta Magna, e assim o será enquanto não se reformular o sistema de segurança pública com base na realidade vivenciada pelo cidadão e por sua comunidade, hoje ambos assolados por uma crescente e incontrolável criminalidade. Em últimas palavras, a sociedade tem de estudar o assunto nas universidades e em todos os locais em que segmentos delas se reúnem, para reavaliar o modelo estrutural agrilhoado pela Carta Magna.

Na verdade, o texto constitucional se viu maculado pela desconfiança de instituições federais na capacidade de governadores e prefeitos assumirem realmente a segurança pública segundo uma lógica racional e descontaminada de ideologias. Como dizia o saudoso Administrativista e Professor  Diogo de Figueiredo Moreira Neto, há um “preconceito semântico” rondando o vocábulo “segurança”, este que, infelizmente, se confunde com rivalidades ideológicas profundas e inegáveis. Não pode ser assim, isto é absurdo, o vocábulo é técnico e universal, e é como deve ser tratado pelos brasileiros e suas instituições: como um sistema socio-técnico estruturado, para o bem da sociedade brasileira.

*“Gramsci é reconhecido, principalmente, pela sua teoria da hegemonia cultural que descreve como o Estado usa, nas sociedades ocidentais, as instituições culturais para conservar o poder.” (Antonio Gramsci – Wikipédia, a enciclopédia livre - https://pt.wikipedia.org/wiki/Antonio_Gramsci)

**“Marxismo-leninismo, termo resultante da justaposição das palavras marxismo e leninismo, designa a doutrina oficial da tendência majoritária do movimento comunista - isto é, dos partidos e dos estados alinhados à antiga URSS ou à República Popular da China - durante a maior parte do século XX.” (Marxismo-leninismo – Wikipédia, a enciclopédia livre https://pt.wikipedia.org/wiki/Marxismo-leninismo)


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