Quando as cabeças pensantes do regime militar decidiram pela fusão da
GB com o RJ, tendo como animação, - dentre outras animações menores, - a
inauguração da Ponte Rio-Niterói, não consideraram que a baía de Guanabara, na
verdade, era um abismo a separar joio de trigo. Lembro-me, - no caso das
Polícias Militares de lá (GB) e de cá (RJ), - lembro-me das palavras de um
coronel de lá que ocupava uma alta posição antes da fusão: “No nosso caso é
fácil, é só colocar em forma por graduação e patente e a hierarquia e a
disciplina resolverão o resto!” Mas logo se arrependeu ao perceber que os
coronéis de lá, dentre os quais ele se incluía, estavam já de cabeça branca,
alcançados pela longevidade. Já os de cá ostentavam cabeleiras nem ainda
grisalhas ou mesmo sem um fio de cabelo branco; eram bem mais novos de idade.
Porém, para azar do coronel de lá, os de cá eram mais antigos no posto, o que
os colocavam na cabeceira da hierarquia e da disciplina da “nova” instituição.
Ora, foi mais que balde de água fria, foi temporal inesperado, e, claro, o
comentário dele foi abafado por um comando ainda verde-oliva salvador da pátria
que perduraria até o ano de 1892, vindo depois a desgraça do brizolismo que
dispensa comentários.
A baía de Guanabara encolheu com a ponte, sem dúvida. Os mais ou menos
14 quilômetros da água abissal eram vencidos em minutos, e tudo parecia um mar
de rosas para os cariocas que a cruzavam buscando as delícias da serra e do mar
do lado de cá, e um mar de delícias do lado de lá da Cidade Maravilhosa. Tudo
era euforia... Sim, o povo simples de cá também se beneficiou com a ponte que
uniu dois lados separados por um abismo cultural e ideológico extremo, este que
se poderia resumir numa famigerada frase que se tornara histórica bem antes: “A
única imagem boa de Niterói é a vista do Rio, e a pior imagem do Rio é a vista
de Niterói”. Quem não se lembra?
Mas, se o povo buscou se adaptar, as instituições até hoje enfrentam
dissensões invencíveis, tornando o ambiente de convivência entre os dois Estados
distintas, e suas instituições, um abismo tal como o natural representado pela
baía de Guanabara. Nem me vou tornar ao passado mais distante das hostilidades até
bélicas nem pretendo esmiuçar suas causas, das quais nem me lembro, mas podem
ser estudadas até via Google. Mas é certo que há tradições de um lado e de
outro que estão enfiadas no espírito dos povos antes separados e felizes e hoje
embolados em favelas acrescidas de migrantes, formando superpopulações
desordenadas em virtude, ainda, dos efeitos e defeitos da Casa Grande e da
Senzala. De modo que é nítida a diferença de pensamento entre uma sociedade e
outra, e entre comunidades carentes e sociedade formal, embora muitos de lá e
de cá prefiram externar uma integração que se confunde entre a hipocrisia a
ingenuidade e o sarcasmo. É como um flamenguista a se fingir de vascaíno e
vice-versa, quando em situações assim os exigirem o fingimento.
Neste conturbado ambiente pós-fusão proliferaram, sim, de maneira quase
que de progressão geométrica, as populações carioca e fluminense. E se ampliou
sobremodo a miséria e a informalidade como forma de vencê-la, tudo porque
fundiram terras, encurtaram a baía de Guanabara, mas se esqueceram de estruturar
um novo Estado capaz de lidar com a nova “Torre de Babel” tupiniquim, esta que
hoje é mal administrada porque a sua “Forma” não segue a “Função” desde o
início (“A forma segue a função” – Louis Sullivan). Sim, ignoraram a máxima do
arquiteto proto-moderno. Também ignoraram o alerta do jurista e juiz espanhol,
professor Manuel López-Rey, em seu clássico “O CRIME”, fruto de exaustiva
pesquisa mundo afora, sob os auspícios da ONU. Em dois pontos fundamentais que
reproduzo grosso modo: como o crime é
inerente ao ser humano, como espécie de “sentimento”, tal como o amor e o ódio,
ele sempre existirá enquanto houver conglomerados humanos, isto desde os mais
remotos tempos. Em sendo inevitável, não se deve associar o crime a
generalizações causais como a pobreza, a falta de educação etc. na verdade, o
crime deve ser visto como um problema sociopolítico, e, portanto, deve ser
atalhado num primeiro e dinâmico processo de rotulação pela sociedade e sua
respectiva punição, - via poder político representativo (?), - valendo para
todos. Mas isto também falhou, e talvez não tenha passado de sonho do
pesquisador, pois o peso das diferenças sociais é evidente, as leis são feitas
para atender aos plutocratas, hoje, por sinal, bem representados nos três
poderes da suposta República Federativa do Brasil.
Escrevo assim porque entendo ser impossível atacar os efeitos de muitas
variáveis como se fossem uma só e representada pela violenta criminalidade que
assola calamitosamente o malfadado RJ, fruto de muitas decisões irracionais num
passado recente. Escrevo porque vejo a necessidade de se criar um grupo
pensante, quase que um “observatório”, não das ações das Forças Armadas e das
estruturas que compõem a “arquitetura” avocada pelo General Interventor Braga
Netto, em vista de um objetivo extraído do decreto presidencial e que se resume,
também grosso modo, a “pôr termo às
desordens públicas no RJ”. De fato, algo imediato deve ser feito. Mas esse “imediato”
não deve ser sustentado por estudos profundos e simultâneos, por pessoas não
ideológicas, desse RJ aleatoriamente criado com a fusão, mas já desnorteado com
a ida do Distrito Federal para Brasília. Enfim, se “a forma segue a função”,
para se chegar a ambas é imperioso conhecer profundamente a “forma”, que mais
se representa como “deformação estrutural” e a “função”, que se representa por
uma impressionante desordem pública a demandar tropas para confronto bélico
numa primeira antevisão superficial do ambiente social, mero efeito de causas
distantes e até transnacionais.
Como disse Leo Smolin, Físico Quântico, Prêmio Nobel, em sua obra “Três
Caminhos Para a Gravidade Quântica”: “Existem objetos como as rochas e os
abridores de latas, que simplesmente existem e podem ser completamente
explicados por uma lista de suas propriedades. E existem coisas que somente
podem ser explicadas contando uma história. Para as coisas do segundo tipo, uma
simples descrição nunca é suficiente. Uma história é a única descrição adequada
para elas, porque entidades como as pessoas e as culturas não são de fato
coisas, mas sim processos que se desenvolvem no tempo.”
Há de haver uma história a explicar e justificar as ações. Pois o RJ
não é uma rocha nem um abridor de latas, como propõem os críticos ideológicos
de plantão, mas uma estrutura social feita de gentes, assim como o Estado é uma
organização social, que, no mínimo, é composta por seis variáveis básicas: estrutura, ambiente, tecnologia, tarefas,
pessoas e competitividade. Destaco as pessoas, tanto as do Estado-membro
como as dos Municípios e da União, mais particularmente as que se integram ao
ambiente de tarefa na segurança pública, sendo certo que isto não exclui o “dever”
de todos os servidores públicos de outros órgãos municipais, estaduais e
federais com sede no RJ, no mínimo, e a “responsabilidade” da sociedade civil
organizada, como prescreve o Art. 144 da CRFB. Portanto, que a Intervenção
Federal tenha sucesso! Mas não o terá se se posicionar como “sistema fechado e autossuficiente”...
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