sexta-feira, 30 de março de 2018

O RJ EM MÁXIMA ENTROPIA*


“Embora a autoridade seja um urso teimoso, muitas vezes, à vista de ouro, deixa-se conduzir pelo nariz.” (Shakespeare)

O Estado do Rio de Janeiro é ORGANIZAÇÃO SOCIAL COMPLEXA, é polissistema subdividido em multivariados sistemas e subsistemas. Delimitando-o ao conceito de sistema, podemos afirmar ser o RJ um sistema aberto, com interações muito dinâmicas entre os seus próprios subsistemas, igualmente abertos, e com o ambiente social que lhe é umbilicalmente inerente.

“Segundo a nova Teoria Geral da Administração, uma Organização Social é composta no mínimo por seis variáveis básicas: estrutura, pessoas, tarefas, ambiente, tecnologia e competitividade.” (vide TGA – Idalberto Chiavenato – Elsevier Editora Ltda. – Sétima Edição – 8ª tiragem – 2008 – pág. 12).

Nossa delimitação, por enquanto, é o RJ, onde tudo começou com a vinda de Dom João VI para o Brasil, fugido às pressas de Portugal quando da iminência de invasão do seu país por Napoleão Bonaparte. E aqui não mais importa aprofundar a História do Brasil, mas apenas situar os acontecimentos da época que mais nos interessam. Antes, porém, sugiro a leitura do clássico “OS BRUZUNDANGAS”, de Lima Barreto, do qual extraio apenas um apontamento sobre os nossos “heróis”:




“[... Um país como a Bruzundanga precisa ter os seus heróis e as suas heroínas para justificar aos olhos do seu povo a existência fácil e opulenta das facções que a têm dirigido.”







Era assim outrora e é assim agora, pois sabemos que o mundo das finanças situado em São Paulo nasce lá nos velhos e tenebrosos tempos do trabalho escravo nas plantações e colheitas da cana de açúcar, do cacau, do café e de outras especiarias, não sem os conquistadores devastarem as florestas em busca do Pau Brasil e demais riquezas vegetais e minerais (vide “Tocaia Grande”, de Jorge Amado, e “Viva o Povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro).

 Neste cenário de espoliações do solo pátrio veio Dom João VI a criar, em sua data aniversária, a briosa e bicentenária PMERJ, ou apenas parte dela, pois os tropeços posteriores misturaram organizações de mesmo fim, porém criadas em maioria no ano de 1835, que é caso da extinta PMRJ, criada na Província Fluminense em 14 de abril de 1835. Mas sobre a criação primeira PM, da lavra de Dom João VI, vale sublinhar sua importância por meio do Romance “REPÚBLICA DOS BUGRES”, de Ruy Tapioca, Prêmio Jabuti - ROCCO:


“Na contrapartida do chafariz e da fonte, e como desgraça pouca é besteira, aforismo cunhado pelos nativos da terra, Dom João foi servido baixar, na rabeira daquela aluvião de tributos, um decreto criando uma guarda real de PM para a cidade, em face do crescido número de desordens públicas, gatunagens, incêndios, contrabandos e crimes de espécies diversas, que andam a ocorrer, cotidianamente, nesta mui leal e heroica São Sebastião do Rio de Janeiro.”

Sim, tudo a propósito da inauguração de um chafariz no Campo de Sant’Ana, conforme noticiou o historiador e romancista:

“No final da tarde do dia 13 de maio de 1809, data de aniversário de Sua Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor Dom João...”

Vê-se, por conseguinte, que também a ORGANIZAÇÃO SOCIAL, - que venceria os tempos até chegar à PMERJ de hoje, - não recebeu como “planejamento” mais do que as poucas necessidades da época, sublinhando-se o nosso primeiro “herói”, Major Vidigal, pintado com as cores do romancista Manuel Antônio de Almeida no seu clássico “MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS” – Editorial Sol90, Espanha, Barcelona – 2004: 


“[...] o Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração: era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquisição policial [...]”


Há ainda mais esclarecimentos, por via da literatura pátria, sobre as atuais PPMM e seus efetivos muitas vezes arrepanhados nas ruas “a pau e corda”, ou seja, escravos libertos ou fugidios, ou brancos sem eira nem beira e indivíduos semelhantes, todos levados à força do muque para envergar a farda da GUARDA REAL DA CORTE ou das GUARDAS DE PROVÍNCIAS. Sim, sim, no maior dos maiores arrochos disciplinares, que incluíam “pranchadas” (surra com a lateral da espada dos oficiais); ou seja, espécie adaptada do mesmo chicote escravocrata, em “evolução” do “castigo-espetáculo” (vide “VIGIAR E PUNIR” de Michel Foucault).

Exemplifico sobre o perfil do “SOLDADO DE POLÍCIA” grafando ainda trecho da “TENDA DOS MILAGRES”, de Jorge Amado, e “ALMAS MORTAS”, de Nicolai Vassilievitch Gógol:


 “[...] Portas e janelas se abriam, veio o sacristão da igreja com uma vela acesa. Ester se abraçou com ele em prantos. A multidão em torno ao corpo, e um soldado da Polícia Militar com armas e autoridade. Ester sentou-se ao lado do santeiro, tomou da cabeça de Archanjo. Com a ponta do quimono limpou-lhe o sangue entre os lábios...
– Vamos, então – ordenou o Major.
Foram levantar o corpo, mas o soldado empombou: ninguém se atrevesse a tocar no cadáver antes de chegar a polícia, o delegado e o doutor. Um jovem soldado, ainda adolescente, quase um menino; tinham-lhe vestido uma farda, armas e ordens drásticas, encarnaram nele a força e o poder, o ruim do mundo.
– Ninguém se atreva.
O Major examinou o soldado e a situação: recruta do interior, místico da disciplina, difícil de contornar. O Major tentou:
– Você é daqui, rapaz? Ou é do Sertão? Sabe quem é esse? Se não sabe, vou lhe dizer...
– Não quero saber. Só sai daqui com a polícia.
Então o Major se retou. Não ia consentir que o corpo de Archanjo continuasse exposto no meio da rua – corpo de criminoso, sem direito a velório.
– Vai sair e é agora mesmo.
Por muitas razões, todas de primeira grandeza, apelidaram o Major Damião de Souza de Rábula do Povo: fizeram-no em paga de seus muitos merecimentos. Já antes lhe tinham outorgado o título de Major – major sem patente, sem batalhão, sem dragonas, sem farda, sem mando nem comando, um Major porreta. O Rábula do Povo subiu no degrau e perorou com trêmulos na voz indignada:
– Será que o povo da Bahia vai consentir que o corpo de Pedro Archanjo, de Ojubá, fique no meio da rua, na lama dos esgotos, nessa podridão que o Prefeito não vê e não manda limpar, que fique aqui à espera que apareça um doutor da polícia?...
O povo da Bahia – bem umas trinta pessoas, sem contar as que despontavam em cima e embaixo da ladeira – urrou, as mãos se ergueram e as mulheres em pranto partiram para o soldado da Briosa. Foi hora de perigo, feia e difícil; o soldado, como previra o Major, era dureza. Enquadrado, torvo, inflexível porque tão jovem e porque autoridade não se deixa desfeitear, saca das armas: Quem vier, morre! Levantou-se Ester para morrer.
Mais alto, porém, trinou o apito quase civil do guarda-noturno Everaldo Fode-Mansinho, de volta ao lar após a noite do dever cumprido e de algumas lapadas de pinga: que significava aquele fuzuê na madrugada? Viu o soldado de sabre na mão e Ester de peitos de fora – briga de putas, pensou, mas Ester era muito sua merecedora:
– Praça – bradou para o recruta –, sentido!
– Autoridade versus autoridade, de um lado o guarda-noturno, o último dos fardados, com seu apito avisa-ladrão e a picardia, a flexibilidade, a matreirice; do outro lado, o soldado da Briosa, milico de verdade, com seu sabre, seu revólver, seu regulamento, sua violência, sua força bruta.
Everaldo deu com o defunto no chão:
– Archanjo, que é que ele faz aqui? É só cachaça, não é?
– Ai que não é...
O Major explicou a descoberta do corpo e o cabeça-dura do soldado não querendo permitir a remoção para a casa de Ester. Everaldo, dito Fode-Mansinho, farda a farda, quebrou o galho.
– Praça, é melhor você cair fora enquanto é tempo, você perdeu a cabeça e desrespeitou o Major.
– Major? Não estou vendo Major nenhum.
– Aquele ali, o Major Damião de Souza, nunca ouviu falar?
Quem não ouvira o nome do Major? Até mesmo o jovem soldado o escutara, ainda em Juazeiro e no quartel, diariamente.
Aquele é o Major? Por que não disse logo?
Perdeu a intransigência, sua única pobre força, ei-lo cordato, o primeiro a cumprir as ordens do Major – depuseram o corpo na carroça e lá se foram todos para o castelo de Ester. (Jorge Amado – Tenda dos Milagres – Record, 2001)

 ...


“O chefe de polícia era uma espécie de pai e benfeitor na cidade. Entre os concidadãos sentia-se inteiramente em família, e nas vendas e mercados servia-se como na despensa de sua própria casa. Pode-se dizer que ele era o homem certo no lugar certo, e atingira a perfeição no exercício das suas funções; era até difícil dizer se ele fora feito para aquele cargo, ou se o cargo fora feito para ele.” (Almas Mortas - N. V. Gógol)

Eis mais um trecho do romance de Gógol:

“[...] um soldado de polícia qualquer, postado lá longe junto da porta, bem na saída, que jamais sorrira em toda a sua vida, e que ainda um momento antes ameaçara o povo com o punho fechado, até ele, obedecendo à imutável lei do reflexo, deixa transparecer no seu semblante uma espécie de sorriso, embora este sorriso se pareça mais com o que acontece com quem se prepara para espirrar depois de uma forte pitada de rapé. [...]”

Sei que minha digressão pode sugerir que escrevo um “tratado de loucura”, já que fujo dos livros técnicos para crer em quem inventa história. Mas me defendo exatamente com Gógol, do qual extraio mais uma pérola sob o formato de indagação:

“Quem, a não ser o autor, tem o dever de proclamar a sagrada verdade?”

Mas a verdade nua crua dói, e poucos querem saber dela; em contrário, costumeiramente vaiam quem a descortina, pois preferem a preguiça e o apupo aos que se desviam das coisas doces e apontam as amargas representadas por mesquinharias e vulgaridades de toda ordem. Mas este é o nosso mundo real, o mundo do RJ, hoje em estado calamitoso em razão de más gestões públicas e do pujante crescimento da criminalidade do tráfico de drogas e armas, com todas as suas manifestações de violência diretas e indiretas, tais como mar revolto, incontrolável, quase um tsnami.



Por tudo isto, - e por muito mais, - se pode afirmar que o policial fardado ou uniformizado, - tanto faz, - não é benquisto pelo povo. Afinal, ele representa a coerção estatal associada à força do muque, não aquela que se manifesta em decisões judiciais que mais parecem “extrema unção” endereçada ao corpo já submetido à força anterior do homem fardado ou uniformizado, repito, porque as vestes representam o poder maior do Estado ante o cidadão que ousou desobedecer às suas normas de controle social, estas que, supostamente, derivam da vontade societária. Grande mentira!... Pois as pessoas nascem, envelhecem e morrem, gerações se sucedem, e ambientes se transformam, porém a lei é a mesma per saecula saeculorum. Sim, porque a Legitimidade, aclamada pela Ciência Política como “vontade manifesta do povo” jamais se superpõe à Legalidade (vontade de burocratas e políticos venais imposta ao povo), legitimando-a.

Sim, a Legitimidade sempre caminha a reboque da Legalidade, esta que se petrifica por preguiça societária e por interesses plutocratas, até que no seu grau máximo, representado por uma Corte de onze pessoas (Supremo Tribunal Federal), o Estado menor e rico põe de quatro milhões de almas praticamente mortas antes até de nascer. E assim a vida segue sem grandes mudanças, pois tudo se muda para ficar como está, ou seja, a vontade de poucos ricos contrária às necessidades de muitos pobres que os sustentam com volumosos tributos, tais como nos tempos obscuros e absolutistas das monarquias. Mas pelo menos o povo sentia os efeitos da objetiva ordem do rei, e não como hoje, que, a pretexto do “interesse público”, subjetivo, o “estado-protetor” torna refém o povo que o instituiu realmente para protegê-lo e não para oprimi-lo. Daí é que o povo, ao ver não mais que o “fade in” ou o “fade out” do seu “estado invisível”, foca o seu ódio contra a sua parte visível, contra a qual descarrega a sua ira: o seu representante fardado ou uniformizado: o policial e o militar, que não são da sociedade para a sociedade nem simbolizam seu “estado-protetor”. São membros do “estado-bastardo”, na verdade opressor em nome de poucos, como o era antes (sempre uma abstração), nos primórdios do Santo Ofício, da Inquisição e das Cruzadas “em nome de Deus”.

Esperar, portanto, que esse “estado-bastardo” se insurja contra interesses econômicos grandiosos é pura ilusão (tipificação criminal à parte, o tráfico de drogas e armas é hoje uma das mais pujantes economias de mercado, e nem tanto invisível). Como então esperar investimentos maciços na segurança pública e na polícia? Como esperar que haja investimentos na preservação da vida do policial e do povoléu mais sofrido? Por que o RJ seria uma exceção à regra geral da indiferença? Ora, basta se atentar para o fato de como o RJ, vem sendo apresentado à sociedade nacional por pessoas influentes: o vilão da história. E concluir desalentadamente que nada mudará tão cedo por aqui...

*entropia: “a Fís. Medida da quantidade de desordem dum sistema.” (Aurelião)




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