“Embora a autoridade seja um urso teimoso, muitas vezes, à vista
de ouro, deixa-se conduzir pelo nariz.” (Shakespeare)
O Estado do
Rio de Janeiro é ORGANIZAÇÃO SOCIAL COMPLEXA, é polissistema subdividido em
multivariados sistemas e subsistemas. Delimitando-o ao conceito de sistema,
podemos afirmar ser o RJ um sistema aberto, com interações muito dinâmicas
entre os seus próprios subsistemas, igualmente abertos, e com o ambiente social
que lhe é umbilicalmente inerente.
“Segundo a nova Teoria Geral da
Administração, uma Organização Social é composta no mínimo por seis variáveis
básicas: estrutura, pessoas, tarefas, ambiente, tecnologia e competitividade.”
(vide TGA – Idalberto Chiavenato – Elsevier Editora Ltda. – Sétima Edição – 8ª
tiragem – 2008 – pág. 12).
Nossa
delimitação, por enquanto, é o RJ, onde tudo começou com a vinda de Dom João VI
para o Brasil, fugido às pressas de Portugal quando da iminência de invasão do
seu país por Napoleão Bonaparte. E aqui não mais importa aprofundar a História
do Brasil, mas apenas situar os acontecimentos da época que mais nos
interessam. Antes, porém, sugiro a leitura do clássico “OS BRUZUNDANGAS”, de
Lima Barreto, do qual extraio apenas um apontamento sobre os nossos “heróis”:
“[... Um país como a Bruzundanga precisa
ter os seus heróis e as suas heroínas para justificar aos olhos do seu povo a
existência fácil e opulenta das facções que a têm dirigido.”
Era assim outrora e é assim agora, pois sabemos que o mundo das finanças situado em São Paulo nasce lá nos velhos e tenebrosos tempos do trabalho escravo nas plantações e colheitas da cana de açúcar, do cacau, do café e de outras especiarias, não sem os conquistadores devastarem as florestas em busca do Pau Brasil e demais riquezas vegetais e minerais (vide “Tocaia Grande”, de Jorge Amado, e “Viva o Povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro).
“Na contrapartida do chafariz e da fonte, e como desgraça pouca é
besteira, aforismo cunhado pelos nativos da terra, Dom João foi servido baixar,
na rabeira daquela aluvião de tributos, um decreto criando uma guarda real de
PM para a cidade, em face do crescido número de desordens públicas, gatunagens,
incêndios, contrabandos e crimes de espécies diversas, que andam a ocorrer,
cotidianamente, nesta mui leal e heroica São Sebastião do Rio de Janeiro.”
Sim, tudo a propósito da inauguração de um chafariz no Campo de
Sant’Ana, conforme noticiou o historiador e romancista:
“No final da tarde do dia 13 de maio de 1809, data de aniversário
de Sua Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor Dom João...”
Vê-se, por
conseguinte, que também a ORGANIZAÇÃO SOCIAL, - que venceria os tempos até
chegar à PMERJ de hoje, - não recebeu como “planejamento” mais do que as poucas
necessidades da época, sublinhando-se o nosso primeiro “herói”, Major Vidigal,
pintado com as cores do romancista Manuel Antônio de Almeida no seu clássico “MEMÓRIAS
DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS” – Editorial Sol90, Espanha, Barcelona – 2004:
“[...] o Major Vidigal era o rei absoluto,
o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração: era
o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça
aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem
provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era
infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e
ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquisição policial [...]”
Há ainda mais esclarecimentos, por via da
literatura pátria, sobre as atuais PPMM e seus efetivos muitas vezes
arrepanhados nas ruas “a pau e corda”, ou seja, escravos libertos ou fugidios, ou
brancos sem eira nem beira e indivíduos semelhantes, todos levados à força do
muque para envergar a farda da GUARDA REAL DA CORTE ou das GUARDAS DE
PROVÍNCIAS. Sim, sim, no maior dos maiores arrochos disciplinares, que incluíam
“pranchadas” (surra com a lateral da espada dos oficiais); ou seja, espécie
adaptada do mesmo chicote escravocrata, em “evolução” do “castigo-espetáculo”
(vide “VIGIAR E PUNIR” de Michel Foucault).
Exemplifico sobre o perfil do “SOLDADO DE
POLÍCIA” grafando ainda trecho da “TENDA DOS MILAGRES”, de Jorge Amado, e “ALMAS
MORTAS”, de Nicolai Vassilievitch Gógol:
– Vamos, então – ordenou o Major.
Foram levantar o corpo, mas o soldado empombou: ninguém se
atrevesse a tocar no cadáver antes de chegar a polícia, o delegado e o doutor.
Um jovem soldado, ainda adolescente, quase um menino; tinham-lhe vestido uma
farda, armas e ordens drásticas, encarnaram nele a força e o poder, o ruim do
mundo.
– Ninguém se atreva.
O Major examinou o soldado e a situação: recruta do interior,
místico da disciplina, difícil de contornar. O Major tentou:
– Você é daqui, rapaz? Ou é do Sertão? Sabe quem é esse? Se não
sabe, vou lhe dizer...
– Não quero saber. Só sai daqui com a polícia.
Então o Major se retou. Não ia consentir que o corpo de Archanjo
continuasse exposto no meio da rua – corpo de criminoso, sem direito a velório.
– Vai sair e é agora mesmo.
Por muitas razões, todas de primeira grandeza, apelidaram o Major
Damião de Souza de Rábula do Povo: fizeram-no em paga de seus muitos
merecimentos. Já antes lhe tinham outorgado o título de Major – major sem
patente, sem batalhão, sem dragonas, sem farda, sem mando nem comando, um Major
porreta. O Rábula do Povo subiu no degrau e perorou com trêmulos na voz
indignada:
– Será que o povo da Bahia vai consentir que o corpo de Pedro
Archanjo, de Ojubá, fique no meio da rua, na lama dos esgotos, nessa podridão
que o Prefeito não vê e não manda limpar, que fique aqui à espera que apareça
um doutor da polícia?...
O povo da Bahia – bem umas trinta pessoas, sem contar as que
despontavam em cima e embaixo da ladeira – urrou, as mãos se ergueram e as
mulheres em pranto partiram para o soldado da Briosa. Foi hora de perigo, feia
e difícil; o soldado, como previra o Major, era dureza. Enquadrado, torvo,
inflexível porque tão jovem e porque autoridade não se deixa desfeitear, saca
das armas: Quem vier, morre! Levantou-se Ester para morrer.
Mais alto, porém, trinou o apito quase civil do guarda-noturno
Everaldo Fode-Mansinho, de volta ao lar após a noite do dever cumprido e de
algumas lapadas de pinga: que significava aquele fuzuê na madrugada? Viu o
soldado de sabre na mão e Ester de peitos de fora – briga de putas, pensou, mas
Ester era muito sua merecedora:
– Praça – bradou para o recruta –, sentido!
– Autoridade versus autoridade, de um lado o guarda-noturno, o
último dos fardados, com seu apito avisa-ladrão e a picardia, a flexibilidade,
a matreirice; do outro lado, o soldado da Briosa, milico de verdade, com seu
sabre, seu revólver, seu regulamento, sua violência, sua força bruta.
Everaldo deu com o defunto no chão:
– Archanjo, que é que ele faz aqui? É só cachaça, não é?
– Ai que não é...
O
Major explicou a descoberta do corpo e o cabeça-dura do soldado
não querendo permitir a remoção para a casa de Ester. Everaldo, dito
Fode-Mansinho, farda a farda, quebrou o galho.
– Praça, é melhor você cair fora enquanto é tempo, você perdeu a
cabeça e desrespeitou o Major.
– Major? Não estou vendo Major nenhum.
– Aquele ali, o Major Damião de Souza, nunca ouviu falar?
Quem não ouvira o nome do Major? Até mesmo o jovem soldado o
escutara, ainda em Juazeiro e no quartel, diariamente.
–
Aquele é o Major? Por que não disse logo?
Perdeu a intransigência, sua única pobre força, ei-lo cordato, o
primeiro a cumprir as ordens do Major – depuseram o corpo na carroça e lá se
foram todos para o castelo de Ester. (Jorge Amado – Tenda dos Milagres –
Record, 2001)
“O chefe de polícia era uma espécie de pai
e benfeitor na cidade. Entre os concidadãos sentia-se inteiramente em família,
e nas vendas e mercados servia-se como na despensa de sua própria casa. Pode-se
dizer que ele era o homem certo no lugar certo, e atingira a perfeição no
exercício das suas funções; era até difícil dizer se ele fora feito para aquele
cargo, ou se o cargo fora feito para ele.” (Almas Mortas - N. V. Gógol)
Eis mais um trecho do romance de Gógol:
“[...] um soldado de polícia qualquer, postado
lá longe junto da porta, bem na saída, que jamais sorrira em toda a sua vida, e
que ainda um momento antes ameaçara o povo com o punho fechado, até ele,
obedecendo à imutável lei do reflexo, deixa transparecer no seu semblante uma
espécie de sorriso, embora este sorriso se pareça mais com o que acontece com
quem se prepara para espirrar depois de uma forte pitada de rapé. [...]”
Sei que minha
digressão pode sugerir que escrevo um “tratado de loucura”, já que fujo dos
livros técnicos para crer em quem inventa história. Mas me defendo exatamente
com Gógol, do qual extraio mais uma pérola sob o formato de indagação:
“Quem, a não ser o autor, tem o dever de
proclamar a sagrada verdade?”
Mas a
verdade nua crua dói, e poucos querem saber dela; em contrário, costumeiramente
vaiam quem a descortina, pois preferem a preguiça e o apupo aos que se desviam
das coisas doces e apontam as amargas representadas por mesquinharias e
vulgaridades de toda ordem. Mas este é o nosso mundo real, o mundo do RJ, hoje
em estado calamitoso em razão de más gestões públicas e do pujante crescimento
da criminalidade do tráfico de drogas e armas, com todas as suas manifestações
de violência diretas e indiretas, tais como mar revolto, incontrolável, quase
um tsnami.
Por tudo
isto, - e por muito mais, - se pode afirmar que o policial fardado ou uniformizado, - tanto faz, - não é benquisto pelo povo. Afinal, ele representa a coerção estatal
associada à força do muque, não aquela que se manifesta em decisões judiciais
que mais parecem “extrema unção” endereçada ao corpo já submetido à força
anterior do homem fardado ou uniformizado, repito, porque as vestes representam
o poder maior do Estado ante o cidadão que ousou desobedecer às suas normas de
controle social, estas que, supostamente, derivam da vontade societária. Grande
mentira!... Pois as pessoas nascem, envelhecem e morrem, gerações se sucedem, e ambientes se transformam, porém a lei é a mesma per saecula saeculorum. Sim, porque a Legitimidade, aclamada pela Ciência Política como “vontade
manifesta do povo” jamais se superpõe à Legalidade (vontade de burocratas e
políticos venais imposta ao povo), legitimando-a.
Sim, a Legitimidade sempre
caminha a reboque da Legalidade, esta que se petrifica por preguiça societária
e por interesses plutocratas, até que no seu grau máximo, representado por uma
Corte de onze pessoas (Supremo Tribunal Federal), o Estado menor e rico põe de
quatro milhões de almas praticamente mortas antes até de nascer. E assim a vida
segue sem grandes mudanças, pois tudo se muda para ficar como está, ou seja, a
vontade de poucos ricos contrária às necessidades de muitos pobres que os
sustentam com volumosos tributos, tais como nos tempos obscuros e absolutistas
das monarquias. Mas pelo menos o povo sentia os efeitos da objetiva ordem do
rei, e não como hoje, que, a pretexto do “interesse público”, subjetivo, o
“estado-protetor” torna refém o povo que o instituiu realmente para protegê-lo
e não para oprimi-lo. Daí é que o povo, ao ver não mais que o “fade in” ou o
“fade out” do seu “estado invisível”, foca o seu ódio contra a sua parte
visível, contra a qual descarrega a sua ira: o seu representante fardado ou
uniformizado: o policial e o militar, que não são da sociedade para a sociedade
nem simbolizam seu “estado-protetor”. São membros do “estado-bastardo”, na verdade
opressor em nome de poucos, como o era antes (sempre uma abstração), nos
primórdios do Santo Ofício, da Inquisição e das Cruzadas “em nome de Deus”.
Esperar, portanto, que esse
“estado-bastardo” se insurja contra interesses econômicos grandiosos é pura
ilusão (tipificação criminal à parte, o tráfico de drogas e armas é hoje uma
das mais pujantes economias de mercado, e nem tanto invisível). Como então
esperar investimentos maciços na segurança pública e na polícia? Como esperar
que haja investimentos na preservação da vida do policial e do povoléu mais
sofrido? Por que o RJ seria uma exceção à regra geral da indiferença? Ora, basta
se atentar para o fato de como o RJ, vem sendo apresentado à sociedade nacional
por pessoas influentes: o vilão da história. E concluir desalentadamente que
nada mudará tão cedo por aqui...
*entropia: “a Fís. Medida da quantidade de desordem
dum sistema.” (Aurelião)
Nenhum comentário:
Postar um comentário