sábado, 2 de julho de 2016

VIOLÊNCIA URBANA VIII – TRABALHADOR, POLICIAL E BANDIDO



“O mundo está perigoso para se viver! Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o vêem e fazem de conta de que não viram.” (Albert Einstein)

            Objeto de pesquisa da ilustre Antropóloga Alba Zaluar na Cidade de Deus, é de fato controversa a interação entre esses três segmentos no turbulento ambiente social do Estado do Rio de Janeiro, notadamente na sua Região Metropolitana e mais especificamente em favelas. São inúmeras as polêmicas e muitas as conclusões precipitadas devido ao “senso comum” de que esses segmentos são antagônicos (Cá entre nós, são mesmo!). Por outro lado, há a mídia sensacionalista e viciada em ideologias respondendo por boa parte desta dissensão.  Em virtude disso, – mesmo incorrendo no risco de ser mal interpretado, – vamos cometer a imprudência de desenvolver uma reflexão, fruto de nossa percepção de ex-comandante de batalhão operacional (9º BPM) numa das áreas de maior movimento urbano: a Zona Norte do Rio de Janeiro. Também esclareço que, embora tenha escorrido bom tempo (minha percepção remonta a 1989 e anos seguintes), de lá para cá pouco ou nada mudou, a não ser pela ampliação do problema, que guarda as mesmas características de outrora.

            Começando pelo segmento doentio – os bandidos –, sobrelevam três circunstâncias fundamentais: o aumento expressivo de marginais da lei na proporção direta do desordenado crescimento populacional; a exagerada concentração do povo simples em favelas; e, por último, a impunidade crescente e decorrente de proselitismos políticos, incluindo a discutível proteção de menores infratores sob o falso pretexto de que são “vítimas sociais”, embora em boa parte talvez o sejam, o que não significa aceitar seus crimes como “normais”.

            É, sem dúvida, na capital, a situação mais alarmante, porque aglutina a maior parcela de trabalhadores mal remunerados, de policiais mal pagos e de bandidos ricos e ferozes interagindo no mesmo espaço geográfico, numa convivência promíscua entre rotos e esfarrapados. E não há de se delimitar as fronteiras dessa convivência no cotidiano da turbulenta interação que se verifica entre esses segmentos. Todos são vizinhos, os filhos geralmente frequentam as mesmas escolas, o lazer é comum, o supermercado atende a todos etc.

Sim, eles têm vida comum, pois são integrantes do mesmo contingente humano socialmente excluído, exceção para os policiais hierarquicamente superiores, também injustiçados, mas que conseguem ficar à parte desse cotidiano de pobreza, indigência e miséria. Daí uma inevitável constatação: todos têm traços culturais compartilhados, orgânicos, e mais poderosos do que qualquer diferenciação teórico-formal. É, portanto, admissível que todos se influenciem entre si, que pressionem ou sejam pressionados, na tentativa de predomínio social.

            Se considerássemos somente a quantidade de pessoas, a vantagem seria dos trabalhadores, sempre em maior número. Desta forma, os policiais – integrantes deste segmento da sociedade (trabalhadores diferenciados) – deveriam submeter-se aos primeiros (trabalhadores comuns), pois os policiais são ou deveriam ser seus protetores legais. Nesta axiologia, os bandidos corresponderiam à parcela menos poderosa. Mas a realidade não é bem assim...

            Os policiais contam com a lei e a força do estado coercitivo que representam, mas, individualmente, na simples condição de vizinhos obrigatórios dos bandidos, anulam-se pelo temor ou por inevitável amizade quando são oriundos do mesmo berço comunitário. Na verdade, os policiais só assumem a verdadeira condição de agentes da lei quando interagem com grupos desconhecidos de outras favelas. Nesse contexto específico os policiais agem, – dentro da lei, ou fora dela, – no sentido de predominar no ambiente, de “vencer” simultaneamente trabalhadores e bandidos.
É a grande hora do extravasamento de suas frustrações e dos recalques acumulados no seu meio de origem. Ou então – e pior – submetem-se passivamente à corrupção anônima e rendosa, colocando-se ao lado do bandido e contra o trabalhador.
No fundo, porém, o que os policiais mal pagos mais almejam é livrar-se do jugo desmoralizante do seu próprio “bandido-amigo”, enquanto na condição de cidadãos favelados. E não adianta especular sobre princípios de honestidade, moralidade etc. Isto é pura teoria, distante da realidade social já explicada. Aliás, desonestidade, anonimato e impunidade não são privilégios só da elite. A isto o pobre também tem fácil acesso...

Os bandidos, por sua vez, impõem-se pela arrogância e pelo terror das armas, sem preocupação com anonimato ou com valores morais e legais. Afinal, são os mais poderosos em armas e dinheiro e contam com o beneficio maior: a impunidade.

Os favores eventuais que prestam aos trabalhadores e aos policiais “amigos de infância” só ocorrem quando obedecidos; caso contrário, utilizam-se do sistema de poder mais convincente: a eliminação física.

Não existe bandido bom, como defendem alguns cínicos da política ou do mundo acadêmico. Existe é bandido respeitado – designado pela insigne antropóloga Alba Zaluar como “bandido formado” – cujo grau de periculosidade já se comprovou em fases anteriores. Neste caso, ele é útil à comunidade porque a protege contra os bandidos iniciantes, geralmente pivetes empolgados com a prática impune do mal. O processo de imposição do poder é o mesmo: “o bandido formado” é a concretização do predomínio sobre todos, é o “mal menor”...

No final, quem recebe o impacto mais doloroso disso tudo é o trabalhador íntegro e pacífico. Desarmado, e só podendo contar com a força da lei, ele começa perdedor para a impunidade, sendo-lhe certo que a lei em nada o beneficia. Tem contra si toda sorte de violência (promovida indistintamente pela polícia e pelo bandido), e, paradoxalmente, sofre com o anonimato favorável aos maus policiais e aos bandidos.

Achincalhado física e moralmente, o trabalhador assiste conformado e compreensivo às relações interpessoais de medo ou de amizade entre policiais e bandidos. E sabe que não pode ser diferente...

Nesta situação de nítida inferioridade social é que o trabalhador tenta organizar grupos comunitários internos para instituir um ilusório “poder de maioria”. Mas o bandido está sempre atento, controlando e subjugando essas lideranças. E as tentativas da polícia (da parcela desconhecida e não comprometida) e de outras autoridades públicas no sentido de prestigiar esta prática comunitária, rompem-se à primeira turbulência pela eliminação física dos líderes comunitários mais insistentes.

As ações governamentais – geralmente falseadas pelo proselitismo político típico de nossa hipertrofia interventiva estatal – não têm sido bem sucedidas. Não conseguem fazer predominar os trabalhadores em detrimento de maus policiais e bandidos. O fracasso das UPPs prova isto, infelizmente...

Na verdade, essas ações estatais bem-intencionadas apenas têm servido para inibir a parte sadia da polícia e estimular ainda mais a omissão através da ameaça generalizada de punições decorrentes de denúncias mal apuradas e imediatistas. Isto sem falar do excesso de assassinato de policiais-militares lotados em UPPs.

Aqui, novamente, o bandido vem se sagrando vencedor absoluto, porque, além de determinar ao trabalhador que denuncie, inveridicamente, os bons policiais que tentam vencer as barreiras do medo e da impunidade, o bandido conta com dinheiro fácil para acionar bons advogados e instrumentalizar juridicamente suas falsas denúncias.

Ao bom policial resta-lhe a impossibilidade de defesa no mesmo nível de qualidade da do bandido, sendo real a probabilidade de ser retaliado injustamente pelo imediatismo do seu próprio sistema, já impotente diante da organização e da sofisticação do crime. Ainda corre sério risco de ser eliminado por um mau policial, também assalariado do crime, que está ao seu lado fingindo ser como ele; ou culmina eliminado pelo próprio bandido, que conta com recursos suficientes para concretizar sua vontade através de algum de seus pares. Por isso, muitas vezes o bom policial prefere a omissão à ação, apesar de ser, também, crime previsto em lei.

Comprova-se, por conseguinte, que o trabalhador é o segmento mais frágil, o de menor poder, em nada significando sua maioria representativa na comunidade  a que pertence. Em seguida se destaca a fragilidade do policial-militar em todos os sentidos. Esta é a realidade do cotidiano fluminense, caracterizado pela vitória do poder marginal, que há muito tomou para si o monopólio da força, atributo legalmente destinado pela sociedade ao estado, mas que, na prática, está sob o domínio do bandido.

A única saída deste caos social está amparada no próprio trabalhador, desde que conte com o apoio irrestrito da sociedade e do estado. Pois  somente esta reação conjunta poderá reverter esta absurda e caótica situação, esta paradoxal inversão de valores sociais. Difícil, né?...

Pois com o estado falido, com o predomínio da impunidade e da cultura escravocrata que caracterizam a nossa sociedade, com o exagerado conformismo a que estão submetidos os trabalhadores, com uma polícia saída do mesmo ambiente social pauperizado, formando o trabalhador e o policial-militar um contingente de rotos e esfarrapados, e, finalmente, com uma sociedade formal indiferente e clientelista,  tal desiderato é humanamente impossível!



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