sábado, 16 de julho de 2016

VIOLÊNCIA URBANA – A ORDEM E A DESORDEM

A CAÇA ÀS BRUXAS



Desde que o mundo é mundo a desordem se integra à vida do ser humano em sociedade. Se antes os seres humanos eram incivilizados, nem tanto complexos, a formação de um estado controlador do comportamento individual e coletivo serviu para instituir uma sociedade formal e civilizada, pelo menos como hipótese. Mas logo SE viu ser impossível formular regras absolutas de comportamento, tendo então o estado funcionado dentro da ideia de que não existe nada absoluto, tudo no mundo social é relativo, até mesmo nos regimes mais fechados que possamos conceber.

Curiosamente, nos regimes absolutistas ao extremo o estado teve de apelar para a crueldade dos seus métodos de controle social, e deste modo se impôs como inelutável detentor do poder, ficando a sociedade que o criou como refém de si mesma. Nem assim, todavia, foi possível eliminar da convivência coletiva a desordem, como tendência natural da natureza humana tornada “social”. E toda esta pressão, que se poderia sintetizar no período das trevas, época em que a igreja e a monarquia agrilhoaram o povo ao mando totalitário pela eliminação sumária dos recalcitrantes, nem assim foi possível vingar uma convivência coletiva pacífica num sistema somente de ordem formal, excluindo-se a ordem material e sua respectiva desordem. E quanto mais as sociedades se industrializaram e os seres humanos se tornaram complexos, mais situações de desordem, como os crimes de fraude, por exemplo, não puderam ser alcançados pelo poder estatal, a par de sua complexidade, eis que voltada bem mais para a economia capitalista e seus lucros. Ou seja, os lucros do capital não se transformaram em lucros sociais a não ser nos discursos, o que não se pode dizer dos lucros estatais a enriquecerem os ímpios.

Enfim, em se tratando de ordem (seja econômica, seja jurídica, seja política, seja social), não se pode olvidar a desordem como seu contraponto, bem como não se pode eliminar contraponto de nada, o mundo é feito de contrastes e não de consensos, e de contrastes vive o homem. É o que os estudiosos denominam como o “ser” da convivência social, em contraposição ao defasado “dever ser” como forma de controle social, este, que varia de povos para povos, dependendo do regime político que informa a vida do cidadão em sociedade. Mais ainda se tornou evidente a impossibilidade de o estado controlar todas as formas individuais e coletivas de comportamento, pois o ser humano é naturalmente complexo e não consegue se manter adstrito a limites para eles formulados pelo estado.

Neste estágio da convivência social em que não se pode evitar a desordem como reação à ordem, seja ela natural (o ser) ou formal (o dever ser), as leis surgiram como amparo às decisões do estado controlador, sempre com o foco na ideia de que sua função-síntese é a de “prestar segurança”, ou, em outras palavras, a de manter a ordem para garantir o progresso da vida coletiva. Enfim, estabeleceu-se que para haver progresso na vida individual e comunitária é imperativo haver a ordem. Mas, e a desordem? Desapareceu?...

Não! Claro que não!... Até porque não foi possível ao estado controlador tipificar tudo que poderia ser considerado como conduta imprópria ao bem comum, e deste modo enlatando todo o comportamento humano, nem mesmo nos regimes mais fechados e avessos à liberdade, nos quais o estado passou a ser o máximo controlador pelo uso intenso e desmedido da força, indo ao estremo da eliminação física dos rebeldes por meio do “castigo-espetáculo”, este que, se antes ia ao extremo do cadafalso e do carrasco, agora é dissimulado nos tribunais de júri tão paramentados como outrora, substituindo-se as sobrepelizes pelas togas engrandecedoras do estado controlador da vida em sociedade.

Vale, neste ponto, reproduzir o marcante exemplo de “castigo-espetáculo” de um parricida de nome Damiens, retratado por Michel Foucault em sua magistral obra “Vigiar e Punir”. Leiam e se aterrorizem:

“CAPÍTULO I O CORPO DOS CONDENADOS [Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.1 Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam].2 Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: “Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me”. Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de sua idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente. [O comissário de polícia Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras. Depois desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços. O senhor Le Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma como costumamos ver representados os condenados: “Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor”. Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inexprimíveis. O senhor Le Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe se não queria dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe falaram demoradamente; beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: “Perdão, Senhor”. Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante das atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum. Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse coitado em pedaços. O senhor Le Breton, de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje. Tendo voltado os confessores, falaram-lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar). “Beijem-me. reverendos”. O senhor cura de Saint-Paul não teve coragem, mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-o na testa. Os carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que não blasfemassem, que cumprissem seu oficio, pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de Saint-Paul que rezasse por ele na primeira missa. Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar, mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha. ...Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os oficiais, entre os quais me encontrava eu e meu filho, com alguns arqueiros formados em destacamento, permanecemos no local até mais ou menos onze horas.”

Há muitos países em que ainda vigora a pena de morte, sempre, claro, determinada pelo estado-protetor-controlador do todo em suposto benefício da parte. Já outros eliminaram a pena capital, porém mantiveram a prisão perpétua, não se sabendo o que é pior numa comparação simples de quem não está na condição de condenado. Outros escalonaram as penas de prisão, indo de um máximo a um mínimo de controle que hoje, por exemplo, no Brasil, alcança a prisão domiciliar e a tornozeleira eletrônica, que permite ao estado controlar cada passo do condenado, até que numa progressão de pena ele alcance a liberdade, porém jamais absoluta, já que ele deixa de ser criminoso primário. Mas nem assim, nem com esta magnitude de controle da sociedade pelo estado, a desordem foi nem será eliminada da vida coletiva, o que demanda mais providências estatais de controle, já aí por meio da coerção direta de agentes públicos incidindo sobre pessoas e coisas sem necessidade de prévia tipificação, o que na doutrina do direito, mundo afora, se ousou denominar “Poder de Polícia”, vocábulo exsurgido do direito tributário norte-americano (“Police Power”), segundo se sabe, o que é mero detalhe, o objeto desta criação pelo estado controlador foi, é, e sempre será um subjetivo “bem comum”.

Como se vê, para o cidadão como individuo detentor de direitos sobra-lhe bem mais dever que direito, assim como para a comunidade à qual se integra, embora o pressuposto estatal seja o de sua segurança individual e comunitária. E como a desordem pública é multivariada e multifacetada, o estado, por meio de seus agentes, tem de se desdobrar em muitos para manter o que entende como ordem, tendo como inevitável contraponto e desordem. E para a esta se antecipar, o agente público se vê às voltas com a necessidade inadiável de formular imediatos juízos de valor ante um comportamento supostamente delituoso ou desordeiro, tendo de agir, todavia, levando em conta que seus excessos estão tipificados como crime. E quanto mais liberdade presumida possui o cidadão, menor é a capacidade de coerção estatal por meio do seu agente público. Este é o cenário de ação de uma polícia administrativa, cenário atual das polícias uniformizadas, no caso brasileiro, das polícias militares, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária, das guardas municipais e semelhantes, sendo certo que algumas dessas instituições fiscalizadoras do comportamento individual e coletivo, com fundamento inicial no Poder de Polícia, não usam farda nem uniforme, são identificadas às vezes por coletes improvisados ou simplesmente por nada: usam roupas comuns a todos os cidadãos, ostentando apenas uma identidade funcional ou um crachá.

O assunto não tem fim. É um processo a ser permanentemente estudado, avaliado, reavaliado etc. Enquanto isso, no vácuo das incertezas e das turbulências ambientais novas leis e regras de controle proliferam, voltando-se aos tempos das delações que levaram muitos inocentes à fogueira, à forca, ao fuzilamento, bastando lembrar a história tenebrosa das “Bruxas de Salém”. Ah, estamos em nova temporada de “caça às bruxas” que faria Tomás de Torquemada corar. É, sim, o que se assiste atualmente num atordoado Brasil que se abraça aos “dedos-duros” para vigiar e punir supostos criminosos, sem se importar se dentre eles possa haver inocentes. Sim, sim, onde impera a pena capital o estado aposta cinicamente numa tal “humanização” da morte como se uma fosse diferente da outra para quem é por ela alcançado. E aqui, no atual torrão tupiniquim, o estado “salvador” seleciona as reses para o abate deixando no pasto algumas cabeças merecedoras de igual fim, mas que precisam se reproduzir, senão o “castigo-espetáculo” cessará e deixará o povo sem o pão e o circo, sem o seu “César” a esperar o polegar lhe indicando: “Este sim, este não! Este sim, este não!” E assim sucessivamente, até quando Deus quiser acabar com a festa mandando um meteoro invencível. Pode demorar, senhora e senhores, mas ele virá!...



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