domingo, 14 de dezembro de 2014

A que veio a COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE?



Uma farsa?...

A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, desde o advento da lei de sua criação, nasceu sob o manto da falsidade e da conveniência dos petralhas e seus xerimbabos.  Não teve o escopo de apurar a verdade histórica dos fatos, os prós e contras do comunismo no Brasil, cujas tentativas de implantação vêm de antes de 18 de setembro 1946, data da promulgação da Constituição pelo presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). Não poderia a tal COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE iniciar suas pesquisas sem incluir nela o Estado Novo e as perseguições aos comunistas naquele histórico período? Porque a essência dos movimentos reacionários de esquerda que se seguiram e as reações contra eles se reportam inevitavelmente à década de 30, o que põe Getúlio Vargas, Brizola e Jango no centro do mesmo ringue e do mesmo lado...

Ocorre que Vargas protagonizou uma ditadura fascista e seus parentes dela tiraram proveito. Aliás, eram eles lídimos representantes do coronelismo gaúcho, tanto que o pai de Jango, Vicente Rodrigues Goulart, além de estancieiro era coronel da Guarda Nacional. Ademais, Jango era irmão da esposa de Brizola, o que tornou a política rio-grandense-do-sul um só núcleo familiar que viria a comandar os destinos do país misturando regimes de direita ao gosto de Getúlio Vargas às guinadas de esquerda ao gosto de Brizola e Jango. Como até hoje sói ser a política no Brasil.

Acontece que, mesmo com o fim do Estado Novo, a perseguição de militantes do Partido Comunista Brasileiro, por sua famigerada polícia, não parou. E se estenderia mesmo durante o governo Dutra, que, embora tenha promulgado uma constituição considerada democrática, não fez cessar as perseguições aos antigos militantes comunistas, inclusive com a mesma polícia política matando muitos deles na escuridão da impunidade. Mas por que adentro o tema?... Qual seria meu interesse em me imiscuir no tema, se não gosto de extremidades ideológicas (de esquerda ou de direita)? Explico...

Nasci em julho 1946, ano da Constituinte, dois meses antes de sua promulgação (18 de setembro). Mas ainda muito criança, três ou quatro anos, me vi na carroceria de um caminhão com meus três irmãos, um menino e duas meninas, crianças como eu. A tumultuada mudança de São Gonçalo para os sertões de Santo Antônio do Imbé, Distrito de Santa Maria Madalena, decerto não foi entendida por nós, na verdade nem por minha mãe, que era pessoa simples e de pouco estudo. Era noite quando partimos no velho caminhão de “queixo-duro”. Até Macaé havia precário asfalto. Dali em diante era o chão barrento levantando poeira ou fazendo o caminhão deslizar nas rieiras dos lamaçais. Sim, cair na estrada naquela época significava perigosa aventura.

Na boleia do caminhão seguiam a mãe e o pai, com tio Urany dirigindo. Os motivos da viagem eram-nos totalmente desconhecidos. Só o pai e seu irmão sabiam de tudo. A mãe e seus filhos sequer imaginavam o que ocorria. Até que, depois de pegar estradas vicinais, não mais que trilhas em meio à mata virgem, com árvores enormes e cipós pedurados, o caminhão parou diante de uma palhoça feita a sopapo de barro e sapê.

A iluminação da palhoça era precária, apenas algumas lamparinas e lampiões a querosene garantiam alguma luminosidade. Mas como chegamos de madrugada, não tardou a amanhecer, e finalmente deparamos com a mata virgem e o rio Imbé correndo entre as árvores, os jacarés na sua orla pegando os primeiros raios solares. Cena apavorante que se tornaria comum depois de um tempo. E, claro, a recomendação da mãe e do pai era a de não nos afastarmos da palhoça sob pena de apanhar pancadas.

Ainda pela manhã surgiram do matagal alguns roceiros dirigindo-se ao pai como “Seu Luiz”. O nome dele, tal como o meu, era Emir. Por que “Seu Luiz”?... Bem lá ficamos, no meio do mato, o pai cuidando do roçado, que incluía o plantio de café morro acima e do abacaxi morro abaixo, e mais mandioca para produzir farinha, milho, feijão e talvez algum arroz. A farinha era moída numa coberta de sapê onde também havia um enorme fogão de barro, sobre ele um tacho de cobre grandão, onde a farinha era torrada. Também o café era torrado e socado, o açúcar era o caldo de cana, enfim, tudo dali, nada de fora, nenhum movimento indicando haver vida naquele sertão longínquo.

Meus irmãos e eu nos deliciávamos com tudo aquilo e nada de escola. A mãe nos banhava em bacia com sabão marrom, roupas rotas nos varais, poucas, mas comida farta, não sei por quanto tempo durou a aventura, até que o pai, com cerca de 35 anos de idade, surpreendido por doenças, teve de ser levado para Campos. A família foi junta e instalada num casarão próximo da Estação do Saco (de trem). Ali eu lembro do pai sempre de pijama, irritado, porém ainda participando dos trabalhos da lavoura lá na roça, para onde ia durante a semana e voltava em alguns fins de semana e em outros, não. Não percebi nada de perseguição, se é que ainda havia a necessidade de perseguir um “morto-vivo”...

A vida então seguia rumo, os parentes (irmão e sobrinhos mais velhos) davam muita atenção e carinho ao pai. Mas ele foi sendo vencido pelas doenças e do casarão nos mudamos para outra casa, na Rua Professor Reis, atrás do campo do Goitacás, onde a vovó (Vovó Neném) se instalara após também se deslocar de São Gonçalo para Campos atrás do seu filho-problema: meu pai.

A doença dele prosperou, ele permaneceu sofrendo durante mais de dois anos, prostrado na cama, e servido ininterruptamente por oxigênio, até que em 22 de fevereiro de 1957 veio a falecer nos braços do irmão, tio Urany. Esta cena trágica eu casualmente assisti da porta do quarto. Jamais a esquecerei! Irá comigo para o túmulo como uma das mais fortes de toda a minha vida, talvez devido à minha idade: dez anos. Completei onze anos quatro meses depois da morte dele, não mais em Campos, mas em Niterói, para onde a minha mãe viera com a filharada aumentada em Campos: mais um parto de menino: meu irmão Evanir, que contava apenas um ano quando o pai já foragido evadiu-se deste mundo estranho.

A vida da família em Niterói foi muitíssimo difícil, a pobreza era absoluta, minha mãe trabalhando numa máquina de costura dia e noite para abrigar e alimentar cinco filhos menores, além de lhes encaminhar aos estudos, o que ela fazia como prioridade maior de sua vida. Enfim, viúva aos 37 anos, totalmente desinformada quanto à realidade daqueles turbulentos anos em Campos e em Santo Antônio do Imbé, ela foi criando sua prole com a ajuda providencial de duas irmãs e um tio-avô, irmão da mãe dela (Vovó Mocinha).

Ajudados ainda por outros familiares, nós crescemos, estudamos, trabalhamos, e deste modo esforçado cada um dos irmãos conquistou seu espaço no mundo, podendo ainda retribuir o heróico esforço materno com muito carinho e conforto. Sim, a mãe teve tempo de ver os filhos materialmente bem-sucedidos e desfrutou a convivência de muitos netos. Faleceu no Hospital da PMERJ, em Niterói, cercada de atenção dos filhos e dos médicos e enfermeiros. Morreu feliz aos 77 anos.

Mas perdurava em minha vida o mistério da fuga para Campos e para o Imbé. Com esta mancha no meu espírito ingressei na PMERJ no ano de 1965. Já primeiro-tenente, habilitei-me junto à Faculdade Moraes Júnior (Instituto dos Contabilistas, na Rua Buenos Aires, Rio) para estudar Ciências Administrativas. Mas para efetivar a matrícula era exigido um atestado firmado pelo DOPS da Polícia Civil, cujo nome diz tudo: “Atestado de Ideologia”.

Era o ano de 1973. Dei entrada em requerimento no DOPS de Niterói solicitando o documento. Na semana seguinte, recebi convite para comparecer ao DOPS e me entrevistar com o delegado titular do órgão. Em lá chegando, fardado, o delegado, Dr. Eraldo Gomes, cujo irmão era servidor do SNI, apresentou-me uma ficha amarelada, grafada em máquina de escrever de fita preta. No cabeçalho da ficha constava o nome do meu pai (Emir Larangeira) e sua filiação. No campo maior, escrito em diagonal, em letras vermelhas e garrafais, a frase seguida da palavra: “FUNCIONÁRIO DA VIDROBRÁS – COMUNISTA” E o discurso duro da autoridade informando-me que não me daria o atestado.

Custei a sair do espanto, estacado diante dele. Mas logo me recompus e informei ao delegado que eu contava apenas dez anos quando o meu pai falecera e que dali eu não sairia sem o atestado. Claro que o clima ficou tenso, fiquei com cara inamistosa, ele sentado e provavelmente armado, e eu de pistola na cinta com vontade de usá-la. Mas ao ser informado da realidade, ele voltou atrás, pediu-me desculpas e mandou providenciar na hora o atestado. Terminamos bem e assim eu finalmente segurei a ponta do fio duma misteriosa meada...

Saí do DOPS e fui direto aos meus tios, Itassy e Urany, que na época da fuga para o Imbé eram sargentos da PMRJ. E é evidente que foram muito prejudicados por ser meu pai, irmão mais velho deles, COMUNISTA, antítese do que eles representavam em suas vidas pessoais e funcionais. Que situação! E mais ainda teve problema o irmão mais velho do pai, tio Acyr, que fora sargento da briosa e depois ingressara na Polícia Civil como detetive.

Enfim, família de policiais civis e militares com irmão comunista militante, distribuidor de panfletos em São Gonçalo e Niterói, e também em Campos (mesmo doente ele jamais abandonou a militância). Eta situação!... Mas foi a partir daí que passei a entender o porquê de experimentar sem saber a esquivança dos colegas oficiais lotados no serviço secreto da PMRJ e depois da PMERJ. Sensível, como sou, não me era difícil perceber as esquivas em relação a mim, embora eu jamais tenha defendido extremismos e tenha até sido instrutor de “Guerra Revolucionária” e de “Comando” (Emprego Tático de Unidades de PM) na antiga PMRJ.

Eu, porém, não fazia o gênero do “Araponga”. Meu negócio era combate ao crime ao estilo do BOPE. Lá na antiga PMRJ não havia “Caveiras”, havia “Demônios Verdes”, e eu era um deles em condição de mais antigo e instrutor dos demais. Mesmo assim, os “Arapongas” não desgrudavam seus desconfiados olhos de mim. Claro que havia exceções, mas a regra era esta, com a qual convivi numa situação no mínimo esdrúxula: não era de esquerda, e até por ela repudiado, nem de direita, mas por esta igualmente execrado devido à conhecida (por eles) história do meu pai.

Já tentei por todos os meios localizar a ficha e os arquivos (dossiê do DOPS) referentes ao meu pai. Jamais tive êxito, ninguém sabe onde foi parar o arquivo do DOPS de Niterói. Desisti. Minha irmã mais velha fez de tudo para ter acesso aos arquivos, igualmente sem êxito. Não com a intenção de pleitear indenização estatal como hoje se vê. Isto decerto desonraria tudo que meu pai fez, certo ou errado, não importa.

E não com certa angústia penso no pai, morto aos 40 anos, destroçado por perseguições, somente por ser militante de um partido legalizado, mas depois tornado proscrito pelo Estado Novo, que continuou perseguindo comunistas, com muitos militantes assassinados. Meu pai seria assassinado, sim, se não enveredasse pela clandestinidade. Mas histórias assim não interessam à COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, esta que deveria iniciar seus trabalhos desde a década de 30 para chegar aos dias atuais e com absoluta isenção, exatamente o que não aconteceu.

Bem, só para ilustrar vou postar um bilhete de minha irmã mais velha, que guardo com muito zelo, assim como o Atestado de Óbito do pai, para que os leitores reflitam sobre esta história, apenas uma dentre muitas ignoradas pelo sistema situacional hoje representado pelas esquerdas, incluindo-se militantes da “esquerda caviar” que jamais lutaram por uma causa. Porque o pai, mesmo equivocado, e no meu modo de ver um sonhador, nada mais que inocente útil, mesmo assim lutou por seu ideal não medindo consequências. Não aprovo o que ele fez ou deixou de fazer. Jamais o imitaria, nunca fui nem pretendo ser comunista e menos ainda fascista, amo a democracia. Mas eu o admiro e venero mais que qualquer outra pessoa deste mundo!



3 comentários:

Anônimo disse...

Meu comandante,minhas condolências,ainda que intempestiva.
Depois de tudo que li só me resta uma pergunta: QUE PAÍS É ESSE?
ABRAÇOS DE UM SARGENTO DECEPCIONADO.

Anônimo disse...

Cel Larangeira.
Quem conviveu com o senhor na caserna e conhece sua história de vida, tem em mente, consciente ou inconscientemente, que conheceu um homem de verdade. Sua luta foi ferrenha, como um valente de verdade enfrentou hipócritas e covardes de peito aberto e ainda tem a coragem de mostrar a verdade a quem quiser ver. Infelizmente, bravos do seu quilate estão em extinção até porque é bem mais cômodo se omitir, não se envolver e não se estressar. A vida vai nos ensinando assim!
Desejo um Feliz Natal ao senhor e a toda sua família!

Anônimo disse...

Emir disse:

Muito obrigado, meu amigo! Desejo-lhe também um Feliz Natal.