Meu comentário de abertura
Neste mês que se inicia
é inevitável o embate entre ideólogos de esquerda e de direita, incluídos nestes
últimos, por vontade dos extremistas de esquerda, todos aqueles que preferem se
situar no centro do famoso continuum
cujo ponto de equilíbrio é a DEMOCRACIA. Ora bem, estou entre os que preferem a
DEMOCRACIA e almejo que ela se consolide no país sem a necessidade do
derramamento de sangue. Mas também entendo que, se houver urgência em defender
a DEMOCRACIA contra a atual tendência comunista levada a efeito por anarquistas
extremados e terroristas, e para tanto tiver de pegar em armas, estou pronto. Devo,
porém, esclarecer que não situo todos os partidários de esquerda no conceito
acima (de fanáticos). Há muitos que são responsáveis e equilibrados e que crêem
ser a SOCIAL-DEMOCRACIA, ou seja, um pouco tendente à esquerda do continuum, o melhor regime para o povo.
Creio também nesta possibilidade e sei que alcançar tal escopo demanda
principalmente seriedade, amor às leis vigentes e respeito às regras
democráticas. Enfim, não pode haver extremismos e os partidários de esquerda
deveriam ser os primeiros a se entrincheirar contra os radicalismos que maculam
seus partidos, excluídos aqueles partidários que não têm mais jeito e sabemos
quais são.
Manter a seta no meio do
continuum é preciso. Deixá-la, porém,
deslizar um pouco à esquerda para beneficiar os menos favorecidos, vá. Mas usar
o povo ignaro como massa de manobra para comunizar o regime pátrio, como
descaradamente pretendem muitos fanáticos acobertados por partidos de esquerda,
aí não! Portanto, a primeira e franca reação deve caber aos filiados de
partidos que acolhem esses extremistas, incluindo hoje anarquistas tais como os
Black Blocs. Ou que enfiem a carapuça
na cabeça!... Mas é certo que nem todos os filiados a partidos considerados de
esquerda, com ou sem mandato, pensam e agem como essas minorias violentas que
vêm sendo subvencionadas por oportunistas que não têm que fazer, como já se
constatou. Ora bem, se houver o silêncio e a inação dos partidos de esquerda,
que sejam todos postos num só saco e igualados em demérito como antipatriotas.
Infelizmente, é esta a dura realidade, o que obriga a quem seja contrário a
esse status quo a se pronunciar
abertamente. É o que faço, e para tanto posto um pronunciamento do filósofo e
professor Olavo de Carvalho por acreditar piamente em cada palavra dele.
Vou deixar o
pronunciamento até o início de abril, de modo que aqui esteja disponível como
homenagem ao Movimento Revolucionário de 31 de março de 1964, que vivenciei já
aos 17 anos, idade suficiente para entender a baderna anterior, muito
semelhante à atual protagonizada por Black
Blocs e demais movimentos organizados nos moldes dos Sem-Terra, que nada
pretendem a não ser DESESTABILIZAR ainda mais a nossa FRACA E CONTAMINADA
DEMOCRACIA. Sim, pois é inegável que a atual turbulência social decorre de
artifícios políticos extremados, pior é que subvencionados com o dinheiro
público.
Sem dúvida, a atual baderna
é levada a efeito por adeptos do regime comunista que apostaram na derrocada do
Brasil naquela época anterior a 1964. Desgraçadamente, muitos ainda estão a
tentar reescrever a História Nacional com o derramamento do sangue de
compatriotas, pois outro modo não há. A mim, - que discordo desses radicalismos
e me refiro a mim pensando nos meus parentes e não no povo brasileiro para não
parecer demagogo, - a mim me cabe levantar minha voz isolada com amparo num
brasileiro merecedor do meu crédito, o que não significa que não haja outros do
seu naipe. Há sim, muitos, que pensam e agem como o filósofo e professor Olavo
de Carvalho. Há sim, graças a Deus!
Reparando
uma injustiça pessoal
OLAVO DE CARVALHO
Discurso
pronunciado no Clube Militar do Rio de Janeiro em 31 de Março de
1999.
Transcrição
revista pelo autor.
NB
– Meu artigo "A história oficial de 1964", publicado em O Globo de 19 de janeiro de 1999, que nenhum
mandarim da esquerda ousou responder, todos deixando o espinhoso encargo para
uma inábil professorinha do interior que acabou confirmando todos os meus
argumentos, trouxe para o autor um presente inesperado e — nos dias que
correm — bastante incômodo: a amizade dos militares. É preciso estar maluco
para declarar isto em público, mas é certo que essa amizade muito me honra e
me alegra. E foi ela que levou dois ilustres militares brasileiros, o Cel.
Luís Paulo Macedo Carvalho, presidente do Instituto de História e Geografia
Militar, e o Gen. Hélio Ibiapina Lima, presidente do Clube Militar, a me
convidar para falar nessas duas instituições, respectivamente nos dias 30 e
31 de março passado. O que eu disse numa e na outra foi mais ou menos a mesma
coisa, mas o discurso do Clube Militar foi gravado e transcrito, o que me
permite reproduzi-lo nesta homepage. O discurso foi pronunciado de
improviso, sem notas. Publico aqui a transcrição integral da gravação em
fita, sem alterações, apenas corrigida em detalhes de linguagem e completada
nos pontos truncados. — O. de C.
Agradeço
comovido ao General Hélio Ibiapina e a todos os queridos amigos do Clube
Militar este convite que muito me alegra, e peço permissão para começar esta
conferência com uns detalhes autobiográficos, não por vaidade, absolutamente,
mas apenas porque alguns fatos da minha vida se encaixam muito bem no assunto
que vamos abordar aqui.
Existem
pessoas que têm o dom de se aproximar de quem está no poder. Eu pareço que
fui brindado com o dom contrário. No tempo dos governos militares, logo no
começo, entre 1966 e 68, eu era um militante do Partido Comunista e odiava os
militares; eu os chamava de "gorilas", como aliás todo mundo naquele
meio. Tive muitos amigos e parentes que foram prejudicados pelo governo
militar e durante todo aquele período eu me senti marginalizado, como muitos
membros da minha geração, em razão de minha hostilidade ao regime. Hoje em
dia, quando os esquerdistas estão no poder, dominam tudo e estão passando
muito bem de saúde, já não estou mais ao lado deles e estou aqui falando para
vocês. Por isto é que digo que fui brindado com este dom de fazer sempre as
amizades mais inconvenientes no momento. Todos conhecemos muitas pessoas que
fizeram carreira no regime militar e tão logo a situação mudou trataram de
trocar de amizades, porque era melhor para a sua saúde...
Ora,
toda a experiência que vivi, primeiro ao lado dos esquerdistas e depois numa
longa solidão para a qual me retirei após ter me desiludido com a perspectiva
socialista, para poder meditar e refazer de certo modo o meu mundo de idéias,
toda esta experiência me ensinou, em primeiro lugar, a inconveniência de
falar quando não se tem um mínimo de certeza razoável. Devo lembrar aos
senhores que a minha atuação pública começa apenas em 1996, com o livro O
Imbecil Coletivo. Até aí a minha vida tinha sido muito modesta, muito
discreta, dando minhas aulinhas e escrevendo uns livros de filosofia que
ninguém lia. Só publiquei O Imbecil Coletivo porque observei a
ascensão de um tipo de mentalidade destrutiva, não só do ponto de vista
político mas sobretudo no que diz respeito à destruição da inteligência
humana. Tendo observado fatos cada vez mais alarmantes, na área cultural, e
vendo que ninguém dava sinal de tê-los percebido, eu disse a mim mesmo:
"Parece que sobrou para mim". Então, com competência ou sem ela,
foi necessário fazer alguma coisa. Esse livro, na época, desencadeou uma onda
que eu não diria de raiva, foi mais onda de pânico, entre pessoas do meio
intelectual que jamais tinham sido criticadas no mais mínimo que fosse e que
estavam acostumadas com o dogma da intangibilidade sacrossanta de suas
pessoas. Um deles, lembro-me claramente, foi o prof. Leandro Konder, um
comunista histórico, um homem que nunca foi criticado par nada, um homem sem
defeito, um homem sem mácula e que, onde quer que vocês perguntem a respeito
dele, lhes dirão: "O Leandro é uma moça", "O Leandro é um
cavalheiro, é um gentleman." Dele não se fala mal. E esse homem,
por conta do seu prestigio de gentleman, vinha não só mentindo
compulsivamente em assuntos culturais, mas pregando idéias bastante
destrutivas, por trinta anos protegido pelo manto de sua pretensa delicadeza.
Então, quando ousei mexer nessa figura, muita gente ficou escandalizada,
parecia que ia ter um enfarte, e eu notei que para essas pessoas doía mais
nos seus corações ver alguém destratar intelectualmente um Leandro Konder, um
Oscar Niemeyer ou alguém assim, do que ouvir blasfêmias contra Jesus Cristo.
Eu cheguei a ver pessoas, em conferências minhas, passarem mal fisicamente
ao ver-me desmascarar certas figuras da sua adoração. Tudo isso eu vi com
estes dois olhos, não estou inventando nada. Eu vi no rosto dessas pessoas a
emoção que a Bíblia chama "escândalo". Que é o escândalo, no
sentido bíblico do termo? O escândalo é um fato que desmente a nossa fé, que
viola a integridade da nossa alma e abala a nossa confiança na ordem do
universo.
Então,
quando eu dizia certas coisas para certas platéias, as pessoas sentiam a
emoção do escândalo, uma espécie de terror espiritual ante a morte do seu
Deus. Não posso dizer que os artigos que publiquei, reunidos nesse livro,
tenham suscitado propriamente ódio ou rancor. Eu tenho certeza de que
suscitaram medo.
As
pessoas sempre me perguntam se nunca recebi pressões ou se fui intimidado ou
ameaçado. Sim, isso aconteceu algumas vezes, mas ninguém fica trinta anos
quieto num canto, pensando, para depois recuar ao surgir a primeira reação
adversa. Recuamos só quando, na juventude, no arrebatamento do entusiasmo,
nos levantamos de improviso contra algo que no calor da hora nos parece
errado e o adversário reage, aí sim nos intimidamos e corremos e pomos o rabo
entre as pernas. Praticamente toda a minha geração fez isso. Fez isso baseada
sobretudo no mito lisonjeiro de que a juventude é idealista e de que a
juventude tem amor à justiça. Ora, o que vocês achariam de um juiz de quinze
anos de idade que condenasse o réu sem sequer tê-lo ouvido? Não há amor à
justiça quando não há amor à verdade, e não há amor à verdade quando não há
sequer a paciência de esperar para conhecê-la. Isto quer dizer que esse
famoso amor à justiça que se atribui à juventude é apenas vaidade, pretensão
e arrogância. Evidentemente esses sentimentos baixos, como todas as paixões
infames de que o ser humano é capaz, sempre podem ser muito bem trabalhados e
aproveitados por pessoas sedutoras. A palavra "sedutor" vem do
latim sub ducere. Ducere é "conduzir", e sub,
"por baixo". Quer dizer: o sedutor é alguém que nos conduz pela
nossa parte inferior, pela nossa parte fraca e pelas nossas tendências
abissais ocultas. Ora, não há tendência mais baixa do que a vaidade e a
arrogância rancorosa. Quem quer que diga a um garoto de quinze anos que ele é
superior à geração de seus pais porque tem o espírito da justiça é apenas um
sedutor barato e mentiroso. Mas acho que não houve na história do século XX
uma única geração que não tenha ouvido esse canto de sereia. Eu também ouvi,
eu também fui seduzido, eu também achei maravilhoso me imaginar o grande
justiceiro: aos dezessete, dezoito anos eu tinha a certeza de que sabia quais
eram os males do mundo, de que eu sabia quais eram os culpados pelos males do
mundo e qual a punição que deveria lhes ser aplicada. Também tinha a certeza
de que o principal mal do mundo era que não me dessem os instrumentos de
punir todos os culpados. Ou seja: para resolver tudo bastava uma só coisa —
dar o poder absoluto ao Olavo de Carvalho e a seus cupinchas. Então tudo
estaria resolvido, isto eu achava aos dezessete anos e toda a minha geração
pensava como eu. Vocês chamam isso de espírito de justiça? Eu chamo de espírito
de estupidez, espírito de arrogância, espírito da pretensão boba. A diferença
entre eu e os meus companheiros de geração é a seguinte: eu percebi isso e
eles não.
Quando
falo em companheiros de geração, às vezes se trata de pessoas que me eram bem
mais próximas que meros companheiros de geração. Durante um certo tempo
dividi um apartamento com o Rui Falcão, que foi presidente do PT, e ambos
éramos amigões do José Dirceu, que não saía dali; então, esses eram os meus
companheiros. Eu percebi que eu era um palhaço arrogante e eles nada
perceberam de si mesmos até hoje.
Não
sei se cheguei a ser alguma coisa que preste, mas aquela porcaria que eu era
já não sou mais. Não consigo mais me enganar com tanta facilidade, não
consigo dizer a mim mesmo, como naquela época: "Olavo, você sabe quem
são os culpados dos males do mundo", "Olavo, você tem o direito de
reivindicar a posse do chicote universal para açoitar o lombo de todos os
malvados", e assim par diante. Ora, estou com 52 anos, alguma coisa devo
ter aprendido neste período, mas certamente, se aprendi, foi porque me abstive
de falar durante vinte anos ou mais. Ontem mesmo, na conferência que fiz no
Instituto de Geografia e História Militar, estava contando que fiz como Buda,
que, sendo tomado por uma dúvida, sentou ao pé de uma árvore e disse: Não me
levanto daqui até descobrir a resposta. Eu também tive um amigo, já falecido,
que foi um grande psicólogo clinico, Juan Alfredo César Müller, o qual, na
sua juventude, tendo terríveis dúvidas vocacionais, entrou numa igreja e
disse para si mesmo: "Vou me ajoelhar e vou rezar até obter a resposta
ou vou morrer ajoelhado aqui." Assim, ele obteve a evidência, uma
espécie de sinal divino de que ele devia seguir a carreira de psicólogo, e
raramente uma vocação foi tão acertada como a desse grande gênio da
psicologia clínica. Quando a gente quer a verdade a gente faz assim, quando a
gente não quer a gente inventa uma qualquer, a que nos pareça a mais
lisonjeira, a que agrade ao nosso grupo de referência, e condenamos o resto
do mundo porque ele não concorda conosco. Quem estudar brevemente a história
do século XX verá que todos os movimentos destrutivos, todos os movimentos
responsáveis por massacre de mi1hões de pessoas, todos eles, foram sempre
encabeçados por jovens, e que a militância a serviço desses movimentos foi
sempre de jovens. Isso será porque o jovem tem espírito de justiça? Somem o
número dos mortos; cem milhões do comunismo, mais vinte mi1hões do fascismo e
assim par diante, sem contar a maravilhosa militância de 1968 — Woodstock —
em favor da disseminação das drogas, que transformou o mundo num feudo dos
traficantes. Quantas pessoas as drogas mataram e a quem incumbe a culpa
disso? A culpa inteira cabe a estes jovens, cujos pais covardemente continuam
a lisonjeá-los, dizendo: "Vocês têm o espírito da justiça",
"Vocês têm o espírito da verdade", "Vocês são melhores que
nós". Nunca se deve dizer isso a um filho, nunca, nunca, nunca. Um
século de lisonja à juventude deu em duzentos mi1hões de mortos. Será que não
está na hora de parar com isso? Será que não está na hora de os adultos
aprenderem que os jovens não devem ser lisonjeados e sim educados, mesmo que
isto os contrarie? Muito bem, eu tive um monte de filhos, tenho oito filhos,
nunca os maltratei, nunca os humilhei, mas também nunca os lisonjeei. Eu
disse apenas o que um pai deve dizer a um filho: "Eu te amo, meu
filho", "Saia de cima do muro que você vai cair", "Pare
de maltratar o seu irmãozinho", e todas essas coisas de pai. Mas nunca
disse: "Você é a encarnação do espírito de justiça", "Você é a
consciência moral do seu pai", e nenhuma dessas coisas covardes que
corrompem a alma da juventude. Podemos expressar bons sentimentos pelos
nossos filhos sem lhes inocular a mais destrutiva das ilusões. Mas a nossa
geração recebeu doses imensas, doses cavalares desta lisonja. E, assim
lisonjeados, acreditamos que bastava nos dar armas e que o resto nós
faríamos: construiríamos um mundo melhor. E como construiríamos um mundo
melhor? Pelo velho expediente de matar — matar quem não o desejasse. Esta é
sempre a solução, qualquer que seja o problema, não é mesmo? Nós tomamos em
sentido literal o que dizia Jean Paul Sartre: "O inferno são os
outros". Basta matá-los e está tudo resolvido, basta matar quem não
concorda conosco. Sendo educado nesta mentalidade, — da qual felizmente me livrei,
mas me livrei progressivamente, porque é uma ilusão pensar que você se livra
do veneno marxista simplesmente trocando a carteirinha do seu clube; não é
assim, é um processo interior que requer uma verdadeira psicanálise, uma
retirada progressiva dos enclaves, dos complexos, dos cacoetes mentais que se
impregnam profundamente na nossa alma —, tendo sido educado nesta
mentalidade, foi assim que julguei o movimento de 1964. Para julgá-lo,
condená-lo e abominá-lo eu não precisei saber quase nada a respeito dele.
Bastou ouvir uma palavra. E qual era essa palavra? Era a palavra mágica –
"a Direita". Qual era o crime dos militares? Eles eram a
Direita. Ora, a Direita quer dizer necessariamente o mal, portanto eles
eram o mal encarnado. Não interessava saber o que estavam fazendo, por que
estavam fazendo, etc. Não era preciso saber nada a respeito deles para
odiá-los e condená-los. Era uma espécie de maldade onto1ógica que estava
grudada na constituição deles, independentemente do que fizessem ou deixassem
de fazer. Se um militar socorresse um doente na rua ele continuaria sendo
mau, e se um homem da esquerda maltratasse uma criancinha, ainda assim ele
continuaria sendo bom, porque a bondade e a maldade não dependiam dos atos e
sim da identidade ideológica. Ora esta metafísica, esta horrenda metafísica
maniquéia, ela na verdade é a essência mesma da política. Um dos grandes
teóricos da política no século XX foi Carl Schmitt. Ele se perguntou qual a
essência da política, o que distingue a política de outras atividades, o que
distingue a política da moral, do direito da economia etc. E ele diz o
seguinte: quando um conflito entre facções não pode ser arbitrado
racionalmente pela análise do conteúdo dos conceitos em jogo e quando
portanto o conflito se torna apenas confronto nu e cru de um grupo de amigos
contra um grupo de inimigos, isto chama-se — Política. Ora, é fácil
você compreender que nesse sentido a definição de Schmitt inverte a definição
de Clausewitz que diz que a guerra é uma continuação da política por outros
meios. Schmitt descobriu, muito mais realisticamente, que a política é uma
continuação da guerra por outros meios. Ora, durante toda a história humana
existiu política, mas havia outras dimensões e outras atividades que eram
consideradas mais importantes. A religião era uma delas, mesmo os governantes
se ocupavam mais de religião que de política. No século XIX, um homem chamado
Napoleão Bonaparte descobre uma coisa terrível: a política, diz ele, é o
destino inevitável dos tempos modernos. Tudo vai virar política e os
homens não se ocuparão senão de política. Ele descobre a politização geral de
tudo. E o que significa a politização geral? Significa que todos os conflitos
já não poderão mais ser arbitrados pela análise dos conteúdos dos termos em
questão, mas serão resolvidos sempre por um confronto de forças entre o grupo
dos amigos e o grupo dos inimigos. Ou seja, terminou a civilização e começou
a barbárie. A politização geral de tudo é simplesmente a barbárie, a
violência institucionalizada, seja sob a forma de violência física, seja como
a violência moral da mentira imposta como verdade obrigatória. Napoleão
previu isso no começo do século XIX, mas a previsão dele só se torna
plenamente efetiva no Século XX. No século XX tudo é politizado, e por isso
mesmo este foi o século mais violento e mais sanguinário da história humana.
A partir do século XIX você vê um crescimento do índice de violência,
absolutamente incomparável com o crescimento paralelo da população. A
politização geral da vida quer dizer que um garoto de quinze, de dezesseis
anos, que mal está entrando na vida, que não tem a menor idéia do que se
passa neste planeta, já está cooptado, já está inscrito no grupo dos amigos,
cuja única finalidade é matar o grupos dos inimigos. Mas isto é vida? Isto é
perspectiva que se ofereça a um jovem: politizá-lo desde o berço,
oferecer-lhe o vício da militância política como se fosse a encarnação mais
alta da ética e do bem? Ora, quantas vezes não ouvi intelectuais brasileiros
fazendo a apologia da politização, condenando as pessoas que não são
politizadas! Por exemplo, um homem que se ocupe mais de religião do que de
política é condenado como um cretino ou um inconsciente, um indivíduo que se
ocupa mais com o sustento de sua família do que de política parece uma
criatura inferior. Quando analisamos o termo e entendemos as implicações
praticas deste conceito, vemos que esta apologia da politização é a coisa
mais monstruosa que algum ideólogo já inventou. Ora, foi à luz desta
mentalidade que eu julguei, sem conhecê-lo, o movimento de 1964. Tendo
percebido que eu já tinha condenado o réu sem nem tê-lo ouvido, sem nem ter
visto a cara dele, sem nem ter sabido onde ele estava, um dia constatei a
minha própria ignorância e disse: Bem, agora tenho de ir para casa e pensar
no assunto.
Então
eu me fiz a pergunta filosófica decisiva. A pergunta filosófica decisiva é
"Quê?" — Quid? Eu me perguntei: Quê aconteceu em
1964? O que foi exatamente aquilo? Ou seja, vamos deixar de lado por uns
momentos a avaliação dos acontecimentos, a investigação de suas causas
profundas, a conjeturação de suas conseqüências a longo prazo, etc. etc., e
vamos fazer a mais simples e a mais decisiva das perguntas. Quê
aconteceu?
Ora,
o que aconteceu em 1964 foi o seguinte. Em janeiro daquele ano, Luiz Carlos
Prestes esteve em Moscou, apresentando a Mikhail Suslov um relatório da
situação brasileira. Não sei qual foi o conteúdo deste relatório, mas a
conclusão de Suslov foi bastante significativa: ele chegou à conclusão que o
Brasil estava maduro para ter uma guerra civil no campo, e autorizou então
Luiz Carlos Prestes, em seu retorno ao Brasil, a desencadear essa guerra
civil no campo. Luiz Carlos Prestes voltou com a autorização e, se não
executou a tarefa de imediato, decerto a teria executado ao longo do tempo.
Se não havia ainda a condição para desencadear uma guerra civil no campo em
escala nacional, havia no entanto condições para paralisar a economia,
instaurar a rebelião entre as Forças Armadas e fazer tudo para tornar viável
a guerra civil encomendada por Suslov. Em suma, estava sendo montado aqui
algo cujo tamanho as pessoas às vezes não avaliam. O que seria uma revolução
comunista num país do tamanho do Brasil? Seria certamente a maior revolução
comunista da história das Américas. Era isso que estava sendo montado aqui.
Ao mesmo tempo é evidente que estava sendo montada uma reação a essa
revolução. Que reação era esta? De onde partia? Partia sobretudo de algumas
lideranças civis. Particularmente em São Paulo do Governador Adhemar de Barros
e no Rio do Governador Cantos Lacerda. Um dos recursos que estes dois líderes
utilizaram para fazer face a uma eventual ameaça comunista foi a constituição
de tropas paramilitares com dinheiro que recolhiam de empresários e com o
apoio discreto e evidentemente ilegal das policias militares desses dois
Estados. Os detalhes do Rio eu não conheço (o assunto está sob pesquisa e não
posso assegurar nada sobre a extensão dos recursos paramilitares sob o
comando de Lacerda), mas a situação de São Paulo eu conhecia muito bem. A
Policia Militar, que então se chamava Forca Pública, era uma espécie de
igreja ademarista, um culto ademarista, uma seita. Os oficiais da PM parecia
que já nasciam ademaristas, como se estivesse no ADN. Se o Adhemar de Barros
lhes dissesse: "Vocês peguem um carregamento de três mil metralhadoras e
entreguem na rua tal numero tanto", eles fariam. E assim foram se
construindo certas organizações paramilitares como par exemplo a PAB
(Patrulha Auxiliar Brasileira), que era uma tropa de vagabundos e
arruaceiros, lumpemproletários, exatamente como as tropas fascistas de
Mussolini. Ora, eu não acredito que o fascismo seja o pior dos males, o
fascismo é uma reação ao comunismo, o fascismo está para o comunismo assim
como a febre está para uma infecção. O fascismo não é causa sui, não é
ele que se produz a si mesmo, mas ainda assim é uma coisa bastante perigosa.
Não sei medir a extensão destas tropas paramilitares fora de São Paulo. Na
Paraíba certamente havia organizações desse tipo. Um historiador comunista
chamado Moniz Bandeira que apesar de comunista sempre me pareceu honesto no
que escreve, diz que provavelmente havia na Paraíba por volta de dez mil
homens armados. Muito bem, descobri essas coisas uns anos atrás, quando
estava estudando para poder reescrever os capítulos finais de uma obra
chamada O Exército na História do Brasil, publicada pela Odebrecht e
pela Biblioteca do Exército. Na época eu era um redator autônomo contratado
pela Odebrecht, e um dos serviços que vieram parar na minha mesa foi o de
corrigir o texto desse livro. O capítulo referente à Revolução de 1964 tinha
muitas lacunas e decidi completá-lo por minha conta. Foi revirando livros e
documentos, fazendo entrevistas com testemunhas da época, que me dei conta
dessas coisas, mas havia alguém que já havia descoberto tudo isso muito antes
de mim: o então General Humberto de Alencar Castello Branco, em setembro de
1963, era chefe do Estado Maior do Exército, e fez um discurso alertando seus
companheiros para o perigo da proliferação de organizações paramilitares, que
num momento de crise poderiam usurpar as funções das Forças Armadas. Ele não
se referiu apenas à famosa organização de esquerda, os "Grupos dos
Onze", nem às Ligas Camponesas: ele falou no plural, sem mencionar cor
ideo1ógica, e subtendendo que quaisquer organizações paramilitares
eram um insulto e um perigo para as Forças Armadas regularmente constituídas.
Ora, eu vim a me preocupar com isto em 1996, o Gen. Castelo Branco se
preocupou em 1963: dá para medir o tamanho da minha sonolência, da minha
burrice, da minha idiotice? Dá para vocês medirem o estado de hipnose em que
vivi durante todos esses anos entre 1964 e 1996, para um dia acordar e ver
que este homem já havia percebido tudo isso trinta e três anos antes? Muito bem,
estavam lá os comunistas montando a sua revolução e os governadores
direitistas montando suas tropinhas paramilitares de fascistinhas, a PAB
tinha até aquela vestimenta cáqui, muito característica, que lembrava as
camisas pardas das SA. Então, com um monte de comunistas armados de um lado e
fascistas armadas do outro, que é que ia acontecer? Certamente, a Noite de
São Bartolomeu. Mas a direita sempre foi mais combativa, mais corajosa, e
estava mais armada: isto quer dizer que se a iniciativa da reação aos
comunistas dependesse exclusivamente dos lideres civis, não teria chegado
um único comunista vivo ao fim do ano de 1964. A revolução comunista
teria falhado. Os comunistas seriam derrotados, como o foram pelas Forças
Armadas. Mas quantos eles teriam matado e quantos deles teriam morrido? O
número é incalculável, mas além disso ainda podemos compreender que, em plena
época da chamada Guerra Fria, as duas grandes potências não duelavam
diretamente, mas sim através de situações exatamente como essa, montadas em
países periféricos. Portanto, se houvesse uma guerra civil aqui, todo mundo
iria querer ajudar os dois lados. Seria um festival de generosidade
universal: os Estados Unidos mandando armas e assistência técnica para um
lado e a União Soviética e a China mandando armas e assistência técnica para
o outro. Seria uma efusão de bondade fantástica, como foi no Vietnã. E
teríamos vivido este drama par uma década ou duas. Isto era o cenário que
estava montado, isto não é uma conjetura feita a posteriori, isto eram
os planos que já estavam em andamento de parte a parte. Na noite de 31 de
março para 1o. de abril, o que faz porém o Exército? Ele toma a
dianteira, ocupa as ruas, desmonta a máquina comunista, coloca uma focinheira
nas tropas direitistas e por fim corta a cabeça dos seus líderes, primeiro
encostando-os, depois chegando a cassar os mandatos de Adhemar de Barros e
Carlos Lacerda, porém, antes mesmo disto, tomando uma medida mais decisiva
ainda que foi criar a Inspetoria Geral das Polícias Militares, com o que
todas as policias militares estaduais, virtuais colaboradoras das tropas
paramilitares de direita do Brasil inteiro, foram submetidas diretamente à
autoridade do Exército e voltaram à disciplina normal. Esta imensa operação
de desmontagem de uma revolução esquerdista e de um aparato bélico
direitista, quantas mortes custou? Duas, três, cinco no máximo. Quantas
pessoas morreram em conflitos políticos entre 1964 e o fim do mandato do
Marechal Castelo Branco? Quantas? Cinco? Seis? Este foi o preço que nós
pagamos pela desmontagem não só da maior máquina revolucionária já construída
pelos comunistas em toda a América Latina, em todas as três Américas, mas
também, pela desmontagem do aparato bélico de reação direitista civil, que
simplesmente desapareceu da história e entrou no esquecimento. Foi isto o
que aconteceu em 1964. Quando vemos isto, só há uma coisa que podemos dizer: Foi
absolutamente genial. Não é qualquer um que desmonta uma bomba desse
tamanho com uma perda de vidas humanas tão reduzida, tão insignificante. É
claro que depois houve alguma violência porque decorridos quatro anos a
esquerda se rearmou e se lançou à aventura das guerrilhas. Em razão das
guerrilhas morreram umas trezentas pessoas entre os guerrilheiros e duzentas
pessoas do outro lado. Na pior das hipóteses, quinhentas pessoas — isto ao
longo de mais de uma década, num pais do tamanho de um continente. Este
talvez tenha sido o preço mais barato em vidas humanas que qualquer regime do
mundo já pagou pela reconquista da sua própria estabilidade. Nunca se deteve
uma revolução comunista com tão poucas mortes. Ora, mas sempre vamos
encontrar um engraçadinho para nos dizer: "Mas uma só morte já é
revoltante!" Ora, nós sabemos perfeitamente que essa atitude é um teatro
histérico, um fingimento. Quando se diz que um total de quinhentas mortes é
menos grave que um de mil mortes — ou do que as dezessete mil mortes de
adversários do regime cubano —, aí já está implícito que todas as mortes são
más. Só podemos fazer um cálculo do mal maior ou menor se já
admitimos que ambos são males. Mas toda vez que se diz que aqui houve menos
violência, que um adepto do regime sanguinário de Fidel Castro não tem
autoridade moral para criticar o uso moderado que o nosso governo militar fez
de uma violência que a própria esquerda inaugurou, sempre aparece um
hipócrita, um sofista, um mentiroso comunista para fingir que é tão cristão,
tão bondoso, que não admite a morte de um mosquito, e é precisamente esse
tipo de calhorda que vem nos atirar ao rosto a bela frase: "Mas uma
só morte já é revoltante!" Ora, qualquer principiante de lógica sabe
que não é possível nivelar urna afirmação categórica e uma afirmação
comparativa. Por exemplo, se digo que Aids é mais grave do que gripe, não
estou fazendo apologia da gripe, estou subentendendo que ambas são doenças,
que ambas são males, não é isso? E, se um indivíduo ameaçado de Aids descobre
que tem apenas gripe e se regozija com isto, devemos concluir que ele gosta
de gripe, que ele ama a gripe, que ele é um apologista da gripe e desejaria
espalhar os germes da gripe no mundo? O alívio do mal menor será uma apologia
do mal? Só um tipo perverso, como são intelectualmente perversos todos os
comunistas sem exceção, pode fingir que acredita numa coisa dessas. Quando
nós mostramos que o preço pago por este país para se libertar de urna guerra
civil que provavelmente não terminaria nunca foi um preço baixo, sempre
aparece não só um farsante para insinuar que adoramos pagar esse preço, mas
também aparece sempre um engraçadinho que nos diz que o que estamos fazendo é
"contabilidade macabra". Qual de vocês já não ouviu esta expressão?
Ora, todos sabemos que os comunistas odeiam "contabilidade
macabra". E por que a odeiam? Odeiam-na por um motivo muito simples.
Odeiam-na porque toda soma do número de vítimas mostra que eles são os
maiores assassinos, que eles têm o primeiro prêmio do morticínio universal,
que nenhum regime do mundo pode se igualar, em sanha mortífera, ao desses
benfeitores do gênero humano. Se somamos o número total de vítimas do
comunismo neste século, vemos que é superior ao número de mortes de duas
guerras mundiais, somado ao número de vitimas de todas as ditaduras de
direita, mais o número total de vitimas de terremotos, enfartes e epidemias
variadas. Isto não é força de expressão: é um simples fato, medido
matematicamente. Ou seja, o comunismo foi o pior flagelo conhecido pela
humanidade desde o dilúvio universal. Não há outro termo de comparação. A
peste negra, proporcionalmente, foi menos grave do que o comunismo. Será que
perdemos totalmente o senso das proporções? Ou será que o medo de sermos
acusados de fazer "contabilidade macabra" nos torna cegos para as
proporções dos males? Será que os defensores de uma ideologia tão assassina,
tão intrinsecamente homicida, têm alguma autoridade moral para falar mal da
nossa "contabilidade macabra", coma se o feio, como se o mal, não
estivesse em cometer os homicídios e sim em somá-los? Como se fazer cadáveres
fosse menos grave do que contá-los? Quem condena a "contabilidade
macabra" é sempre aquele que tem mais crimes a esconder, que tem
portanto uma boa razão para não querer fazer as contas. Pois a contabilidade,
macabra ou não, mostra que num país de mais de uma centena de milhões de
habitantes um governo militar conseguiu deter uma revolução sem fazer mais de
cinco vítimas, e que em seguida esse mesmo governo conseguiu desmontar uma
guerrilha sem matar mais de trezentos combatentes (perdendo ele próprio
duzentos), enquanto na vizinha ilha de Cuba, em tempo de paz e sem ser
desafiado por qualquer guerrilha, o governo comunista matava quase duas
dezenas de milhares de pessoas. Não, macabra não é a contabilidade:
macabro é o esforço de ocultar os resultados do balancete.
Ora
mas foi somente isso que aconteceu em 1964 — um movimento muito bem sucedido,
que desmonta duas máquinas de guerra e devolve a paz à nação, com um número
de perdas insignificante? Não! Em seguida, as pessoas que fizeram o movimento
tinham de governar. Governar como? Tinham um programa? Tinham ao menos uma
ideologia pronta? Não tinham. Tanto não tinham, que os governos nascidos da
Revolução de 1964 tentaram, nos anos subseqüentes, duas políticas exatamente
contrárias: primeiro uma política liberal internacionalista, com Castelo, e
depois uma política estatizante nacionalista, com Geisel. Ou seja, eles
tentaram as duas pontas do espectro ideo1ógico que então havia no país. Isso
prova que não tinham ideologia nenhuma. Ora, não ter ideologia nenhuma
significa que esse movimento não foi feito para implantar uma ideologia
determinada, mas que foi feito simplesmente para tirar o pais de uma
emergência catastrófica, e que, apesar de não se apresentar com programa
algum, acabou tendo uma folha de realizações bem superior, seja à da Era
Vargas, seja à dos governos que lhe sucederam. Quais são essas realizações?
Voltemos à definição: o movimento de 1964 foi um movimento de emergência para
desmontar duas máquinas de guerra, para impedir que o pais entrasse numa
guerra civil e que em seguida, mesmo não tendo ideologia nem planos
definidos, conseguiu — o quê? Vamos ver: em 1964, o número de pessoas que
viviam na miséria, que viviam com menos de um salário mínimo neste país era
de sessenta por cento da população nacional. Quando terminou o regime
militar, eram vinte e poucos por cento. Ou seja, esse regime que não
tinha ideologia, que não tinha planos, que nem sabia o que haveria de fazer,
conseguiu tirar da miséria quarenta por cento da população brasileira.
O que são quarenta por cento da população brasileira? São, hoje, setenta
milhões de pessoas, na época uns cinqüenta milhões. Aí é que eu me pergunto:
Será que estamos todos dormindo? Será que não percebemos as coisas? Será que
perdemos o senso das proporções? Digam-me vocês: Qual o regime do século XX,
qual o plano econômico, por mais genial que fosse, seja o Plano Qüinqüenal
de Stálin ou o New Deal de Roosevelt ou qualquer outro, que conseguiu
retirar da miséria e deu condições de vida humana a 50 mi1hões de pessoas no
prazo de uma geração? Quem fez isso? Quem pode se gabar de tanto? Nós
conseguimos fazer. Quando digo "nós", "nós, brasileiros,
fizemos", — vejam que coisa irônica! —, estou atribuindo a mim as obras
e as g1órias daqueles a quem eu abominava e a quem chamava de
"gorilas". E eles, os abomináveis gorilas, me deram a possibilidade
de hoje poder dizer com orgulho: Nós, brasileiros, fizemos isso, nós
tivemos a vitória — a maior vitória sabre a miséria que se conheceu no século
XX. E será que temos motivo para sentir vergonha disso? Será que um daqueles
meninos de quinze anos que eram meninos de quinze anos aos quinze anos e que
agora aos cinqüenta e tantos continuam meninos de quinze anos, bobocas
irresponsáveis e sobretudo mentirosos, será que um desses meninos tem
autoridade para julgar e condenar o movimento que fez isso?
Quando
nos perguntamos o que aconteceu em 64, foi isto. Houve prisões, houve
torturas, houve mortes. Eu tive parentes que foram torturados, eu próprio
passei muito medo e humilhações. Tive amigos que foram mortos. Um amigo
querido meu, João Leonardo da Silva Rocha, apanhou tanto de alguns soldados,
segundo se dizia, que ficou louco. Nunca mais ficou bom. Mas eu teria de ser
um monstro de mesquinharia para condenar em bloco, por esses atos de
violência, por revoltantes e intoleráveis que sejam em sua própria escala, um
regime que salvou o país de uma guerra civil e que salvou cinqüenta milhões
pessoas da miséria. Porque ninguém conseguiu fazer tanto com tão pouca
violência. Ora, falamos em trezentos, quatrocentos, quinhentos mortos!
Quantas pessoas morreram nos Estados Unidos em conflitos políticos no mesmo
período? Quantos negros foram espancados e mortos, quantos brancos
assassinados em represália? E isto em plena vigência da democracia, com todas
as garantias da ordem jurídica, sem o perigo de uma guerra civil. Para matar
quatrocentos, quinhentos ou trezentos, os americanos não precisam de uma
guerra civil. Na guerra civil deles morreram cinco milhões — foi a
maior guerra que o mundo conheceu até então. E o nosso regime, para parar uma
guerra civil, e depois para desmontar a guerrilha, matou trezentos e perdeu
duzentos. Devemos comparar os nossos militares aos governantes de outras
nações, aos cubanos, aos espanhóis antepassados do Dr. Garzón que queimavam
freiras em massa, aos americanos que se matam sem cessar, aos lindos lordes
ingleses que nunca pararam de matar irlandeses, aos russos que mataram trinta
milhões de seus compatriotas, aos chineses que mataram sessenta milhões, ou
devemos compará-los a Deus e condená-los por não serem perfeitos? Se houve um
governo humano que fez melhor, me mostrem qual. Sobretudo, se houve um
governo comunista que fez melhor, me mostrem. Eu nunca vi. Mas todas estas
coisas óbvias que estou dizendo parece que foram perdidas de vista, que se
tornaram invisíveis e incompreensíveis, ofuscadas por tantas mentiras e tanto
falatório comunista recompensado a peso de ouro por empresários de imprensa
venais e irresponsáveis. E tudo isso foi perdido de vista por um motivo muito
simples: esse governo militar, que era não opressivo, que não era um governo
fascista, não tinha um dos principais traços que caracterizam todas as
ditaduras e todos os movimentos fascistas: ele não tinha a menor vontade de
inculcar uma ideologia na população. Ele não tinha nenhuma ideologia
para inculcar. De vez em quando fazia uns cartazes, "Brasil, ame-o ou
deixe-o", ou mandava passar uns anúncios de suas realizações, uma
estrada, uma usina, uma ponte — tudo com menos alarde e menos despesa do que
qualquer governo civil antes ou depois dele. Isso foi tudo. Pergunto eu:
Havia doutrinação fascista nas escolas? Havia um cinema doutrinário pago pelo
governo para inculcar idéias fascistas na população? Não: O governo dava
dinheiro para a oposição fazer filmes! Havia programas de TV
martelando e remartelando o discurso oficial 24 horas por dia, como em Cuba e
em todos os países comunistas e fascistas? Não! Não havia. As novelas, o
gênero mais popular de TV, eram usadas pelo governo para transmitir
propaganda ideológica? Não. As novelas eram todas escritas por comunistas
notórios como Dias Gomes e Janette Clair, e quando o governo censurava alguma
cena erótica julgando-a imprópria para o horário das oito quando as crianças
estavam acordadas, era uma tempestade de protestos! Havia editoras dominadas
pelo governo publicando material ideológico o tempo todo para inculcar a
doutrina oficial na população? Não! Ao contrário, nunca o mercado de livros
esquerdistas foi tão próspero — no mais das vezes com subsídios do governo —,
nas universidades só havia propaganda comunista e simplesmente não se notou
um esforço ideo1ógico par parte do governo. O único passo que o governo deu
nesta direção foi a disciplina de Educação Moral e Cívica. Mas o que
aconteceu com a EMC? Eu estava lá, "meninos, eu vi". Eu vi isto acontecer.
Eu vi o Partido Comunista decidir, muito simplesmente: colocaremos os nossos
militantes em todas as cátedras de EMC e as transformaremos em canais de
propaganda comunista. Assim disse e assim fez. O governo o impediu? Fez algo
para impedir? Não! Ou seja, além de dar liberdade para os comunistas fazerem
o que fizeram, ainda criou instrumentos, financiou filmes comunistas, deixou
comunistas ocuparem as cátedras de EMC, deixou que os comunistas tomassem
toda a imprensa e toda a universidade onde hoje exercem cinicamente um poder
de censura. Tudo isso aconteceu porque havia um cidadão chamado Golbery do
Couto e Silva que acreditava numa tal teoria da "panela de
pressão". E o que era a panela de pressão? Era que, dizia ele, "não
podemos tampar todos os buracos, tem de haver uma valvulazinha..." E
onde era essa valvulazinha? Eram as universidades e a cultura, o movimento
editorial e o show business — eram todos os canais de comunicação das
idéias. Tudo isso foi entregue pelo próprio governo nas mãos dos comunistas. Mas
que bela teoria, hein? Era só o que as comunistas queriam. Era só o que eles
queriam para fazer da sua derrota militar a sua vitória política, porque
naqueles anos estavam começando a entrar no Brasil as obras do ideólogo
italiano Antonio Gramsci. Este dizia adeus à teoria leninista da insurreição
e criava uma nova estratégia baseada em duas coisas: de um lado, aquilo que
chamava de Revolução Cultural, ou seja, o domínio do vocabulário, o
domínio dos automatismos mentais, de modo que as pessoas, sabendo ou não,
passem a falar e pensar como os comunistas e acabem aceitando o comunismo,
com ou sem esse nome, como se fosse a coisa mais natural do mundo; de outro
lado, o que ele chamava de a longa marcha da esquerda para dentro do
aparelho de Estado, ou seja: ocupar todos os postos da burocracia.
Lentamente, com muita calma, através de ocupação de espaço, de nomeações, até
mesmo de concursos, — par exemplo, o governo abre um concurso para a Policia
Federal e, quando você vai ver, noventa por cento dos candidatos que se
apresentam são comunistas, foram mandados ali para isso.
Ora
que raio de governo fascista era esse, que não tinha militância, que não
tinha partido de massas, que não tinha ideologia, que não tinha sequer um
programa de doutrinação das massas, um discurso para ser repetido nas
escolas? É simples: esse governo nunca foi fascista. Foi um governo de
emergência, criado para impedir uma guerra civil e que chegou ali e teve de
governar de alguma maneira, sem nunca ousar aprofundar sua intervenção na história
brasileira, ao ponto de constituir uma legitima revolução. O movimento de 64
foi uma revolução? Eu acho que não foi. Também acho que disputar com as
esquerdistas e insistir no termo "revolução" quando dizem que foi
apenas um golpe é ceder a uma tábua de valores esquerdistas, a um vocabulário
esquerdista. Porque para um esquerdista uma revolução é a melhor coisa do
mundo. Comunistas é que adoram revoluções. Para que temos de imitá-los? O que
temos de responder-lhes é: Vocês, comunistas, que façam suas revoluções. Nós
fazemos coisas modestas, nas quais morre menos gente, nós não somos
assassinos profissionais, nós não estamos o tempo todo tentando virar o mundo
de cabeça para baixo, nós só agimos na emergência para impedir catástrofes.
Porque nós não somos como vocês, nós não temos a solução de todos males, nós
não somos o bem encarnado, nós não acreditamos que temos a verdade revelada
que nos autorize a matar metade do mundo para salvar a outra metade. Em suma,
nós somos gente, somos seres humanos, não somos anjos do Senhor como vocês,
não temos autoridade para fazer a História à nossa imagem e semelhança, e por
isto mesmo, ao tomar o poder em 1964, governamos com sabedoria, com
paciência, com bondade, com brandura e sobretudo protegemos vocês contra a direita
civil que queria matá-los. Se chegou um único comunista viva ao fim de 1964,
ele deveu isso a quem? Às Forças Armadas.
Isso
foi o que aconteceu em 1964. Pergunto:
onde estava eu? Eu estava dormindo. Dormindo no berço esplêndido da mitologia
esquerdista, alimentado de palavras, sobretudo de adjetivos:
"Fascista!", "Explorador!", "Imperialista!"
Ah!, como essas palavras mexiam comigo! Como eram poderosas! Alimentando-me
delas, pude passar muito tempo sem me perguntar o que acontecia na realidade.
Quando finalmente — e a contragosto — descobri o que acontecera, eu me disse:
Quê posso fazer agora? Eu não posso mudar o curso da história passada, mas
posso dizer algumas coisas boas àquelas pessoas que participaram desses
acontecimentos, que tiveram uma participação em 1964 e que ajudaram a
construir o Brasil. Não adianta chegar hipocritamente para vocês e pedir
desculpas. Não se trata disso. Mas há uma coisa que posso fazer. Posso lhes
dizer: Não se envergonhem da sua obra. Levantem as suas cabeças, tenham
orgulho e não permitam que nenhum hipócrita comunista venha se fazer de seu
fiscal. Nunca, nunca cedam a sua dignidade ao falso moralismo da hora, nunca
sacrifiquem aquilo que é elevado e digno em vocês àquilo que é baixo e vil
num outro qualquer. Era isso que eu queria pedir a todos vocês. Muito
obrigado.
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5 comentários:
Olavo de Carvalho parece estar ainda procurando um melhor caminho a seguir(e como a maioria de nós está confuso). Acho que "nem 8 nem 80". Acho que ele e todos nós deveríamos continuar a perseguir o meio termo. É perigoso abraçar a esquerda ou a direita. Nada justifica a desordem, a roubalheira e a patifaria "comunistóide" atual, mas nada jamais justificará a tortura e a morte indigna de seres humanos.
Emir disse:
Concordo com seu comentário e foi o que defendi: o meio-termo. Mas esse "meio-termo" nos EUA custou o preço duma guerra sangrenta entre milhões de compatriotas. Tomara que não cheguemos a isto, pois não tenho dúvida de que há um forte segmento extremista disposto a tornar o Brasil uma republiqueta como a de Cuba. Este é o problema, real, que não nos permite mais ignorar, e talvez haja a necessidade de reagir a ele em superioridade de forças, o que implica não poupar meios para tal desiderato.
Texto irrepreensível. Qualquer comentário sobre possíveis torturas, ainda mais tratadas uniliteralmente, demonstra desconhecimento histórico e, portanto,falta de embasamento para qualquer discussão, ideológica ou não.
Não achei Olavo confuso, e o que disse me pareceu muito claro. Os militares assumiram com o apoio de políticos notáveis da época, da igreja, do povo, para impedir a guerra civil que se desenhava e uma ascenção comunista e fazer a transição. Mas ficaram no poder e (por não serem fascistas) não implantaram suas idéias, não tinham plano de governo e mesmo assim obtiveram resultados fantásticos. Foi o que Olavo disse:era governo de homens, falhos, não de homens que se achavam Deus. Erros foram cometidos, com mortes e torturas, mas o saldo final do balancete foi muito positivo se comparados ao demais regimes em outros países. Sinceramente, é melhor do que estamos agora. Isso sim é uma ditadura: velada, mas ditadura.
Emir disse:
Também não acho Olavo de Carvalho confuso, muito pelo contrário, esteve confuso lá atrás e não agora. Hoje a posição dele, não somente em vista deste texto, mas de toda a sua obra, é cristalina em relação ao Movimento Cívico militar de 1964 que evitou a baderna comunista que intentavam implantar no Brasil. E, pelo visto, outro Movimento Cívico idêntico não demorará a acontecer...
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