segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Uma reflexão sobre a cultura operacional da PMERJ

Fonte: Jornal O GLOBO de 12 de fevereiro de 2013

A abordagem do professor Marcelo Baumann Burgos sobre UPPs é pertinente, não deve sofrer a indiferença dos interessados pela segurança pública e merece como contribuição um rápido cotejo com a legislação que formata a operacionalidade da PMERJ. O articulista admite, inclusive, que a UPP seja “filha de ensaio e erro” até alcançar o estágio de sucesso que hoje conhecemos. Ressalvando que o que é decorrente de “ensaio e erro” não deve ter sido bem planejado, creio que as UPPs sejam bem-vindas, embora sejam mínimas as favelas pacificadas. Mas pior era antes, com todas as favelas lidando com incursões geralmente violentas, demais de aleatórias... A verdade é que as manobras da tropa para incursionar favelas ainda hoje derivam de motivações várias, muitas delas burlando regras. E, não raro, essas ações resultam em violência policial contra favelados ou violência inesperada de bandidos contra PMs, que culminam mortos ou feridos em confrontos muitas vezes desnecessários. Cá entre nós, é assim em virtude do modelo de repressão desde muito tempo adotado como cultura operacional. Não?... Vide o exemplo abaixo, que é o de sempre:

“16/02/2013 06h19 - Atualizado em 16/02/2013 06h19

Tiroteio entre policiais e traficantes fere três pessoas no Rio

Vítimas foram atingidas por balas perdidas na Favela Vila Vintém.

Feridos foram levados pelos PMs ao Hospital Estadual Albert Schweitzer.

Do G1, com informações da Globo News

Três pessoas foram atingidas por balas perdidas durante troca de tiros entre policiais militares e traficantes na noite desta sexta-feira (15), na Favela Vila Vintém, em Padre Miguel, Zona Oeste do Rio.

Os policiais foram surpreendidos por traficantes enquanto realizavam patrulha pela região.

Os feridos foram socorridos pelos PMs e levados ao Hospital Estadual Albert Schweitzer, em Realengo. Não há informações sobre o estado de saúde das vítimas.”

Com quantas notícias idênticas o leitor já deparou ao abrir matutinos? Muitas?... Bem, sublinhei o segundo parágrafo, que se resume normalmente a alguma radiopatrulha (guarnição composta por dois homens) pedindo reforço em vista de ser “atacada” por traficantes favelados, instituindo um motivo para a incursão em favela por uma só guarnição de PATAMO contando com 05 homens fortemente armados (não afirmo que foi o caso, é apenas ilustração). Seria esse procedimento amparado pela legalidade?... Ora, a repressão ao crime em favelas funciona mal na teoria e pessimamente na prática, claro que excluindo da apreciação as UPPs, que até agora vingam dentro do seu objetivo preventivo, como regra, e repressivo como exceção.

Sei que é maçante, mas mesmo assim me arrisco a oferecer um complemento de análise a partir de síntese da legislação que ainda forja a cultura operacional da PMERJ. E embora algumas regras estejam esquecidas e outras sejam hoje contestadas, tudo começa e termina com base em antigas prescrições constitucionais, em defasadas leis e superados decretos federais. E o epicentro dessa cultura é a IGPM – Inspetoria Geral das Polícias Militares –, organismo subordinado ao Estado-Maior (EM) do Exército Brasileiro (EB) que editou no passado (talvez pelos idos de 1968, no mais ou no menos) o Manual Básico de Policiamento Ostensivo, conhecido por todas as Polícias Militares (PPMM) pela cor de sua capa como “AMARELINHO DA IGPM”. Eis algumas dessas regras:

ARTIGO IV – PECULIARIDADES DE EMPREGO – 2.9. PROCEDIMENTOS GERAIS (...) c. Policiamento Motorizado (...) 3) Denomina-se Guarnição (GU), a fração que atua no processo de policiamento motorizado, composta, no mínimo, de 02 (dois) patrulheiros, sendo um deles o motorista. 4) São consideradas também RP, as VTr como reforço de guarnição, armamento e equipamento, empregadas em ações de força, e que podem receber denominações tais como PATAMO, ROTA, ROTAM e outras.

Seguindo a orientação do “AMARELINHO DA IGPM”, a PMERJ lançou a Diretriz Geral de Operações (DGO), aprovada por ato do comandante-geral de 27 de outubro de l982. Esse documento, - cuja anulação em épocas posteriores talvez tenha havido, o que sempre se ignorou, e o máximo que pode ter havido é uma troca de meia dúzia por seis, -  esse documento trata na Seção II dos “tipos de policiamento”, a partir do Art. 5º, desdobrando-os em “formas de policiamento” a partir do Art. 7º. Entre estas, no Inciso I, item l, letra b aparece o PATRULHAMENTO TÁTICO MOTORIZADO (PATAMO):

Executado dentro de toda área da UOp PM, desenvolve ações conforme planejamento adrede estabelecido, para ações diárias, semanais ou mensais. Exerce ação repressiva. É controlado pela UOp PM, sendo empenhado pelo COPOM em caso de apoio às RP.

A DGO também define uma forma de policiamento (Policiamento Ostensivo Complementar – POC) que geralmente é missão de PATAMO:

Art.7º (...) – II (...) 2) Operações de Ação Repressiva (A Rep): a) A Rep 1 – Vasculhamento: desenvolvimento de ações de caráter genérico, visando a repressão de todas as formas de crime ou contravenção pelo vasculhamento da área considerada; b) A Rep 2 – Busca e Captura: desenvolvimento de ações com o objetivo específico de reprimir uma determinada espécie de crime ou contravenção, visando à busca e detenção dos delinquentes envolvidos e à apreensão de materiais utilizados para a prática de delito considerado; c) A Rep 3 – Revista: desenvolvimento de ações inopinadas, em locais estratégicos e em horários especiais, revistando veículos particulares e coletivos, com a finalidade de apreender armas, tóxicos ou quaisquer outros materiais utilizados para a prática de crime ou contravenção, identificando e revistando seus ocupantes e passageiros. É também utilizado para repressão ao roubo e ao furto de automóveis; d) A Rep 4 – Cerco.

Enfim, as normas contidas na DGO estimulam a cultura repressiva, por mais que a tentem negar. Neste ponto interessa sublinhar da DGO o Capítulo 4, que trata exatamente do POLICIAMENTO TÁTICO MOTORIZADO (PATAMO):

ARTIGO X – CONCEITUAÇÃO – Forma de patrulhamento executado dentro dos Setores de Patrulhamento (St Ptr) em toda área da UOp, em roteiros previamente elaborados, tomando por base os logradouros do setor. Exerce ação preventiva-repressiva. (...) ARTIGO XI – OBJETIVOS – 1. Complementar o policiamento ostensivo das UOp com a formação de grupos treinados e selecionados para ações policiais especiais, em diversas situações; 2. Atuar sobre concentrações de delinquentes e/ou em áreas nitidamente caracterizadas por forte incidência criminal e contravencional. ARTIGO XII – EXECUÇÃO – 1. Condições de Emprego: a. O PATAMO (...): 2) Concentração de delinquentes (...); b (...); c. (...) d. (...); e. O pessoal do PATAMO deverá ser selecionado, escolhendo-se aqueles que estejam em melhores condições disciplinares e que tenham demonstrado aptidões para o uso de armas, contato com o público e motivação para esse tipo de serviço. 2. Modo de atuação: (...) a (...); b (...); c. As PATAMOS serão acionadas pelas UOp PM e cumprirão missões específicas. É o meio de que dispõe o Cmt da UOp PM para fazer face a problemas especiais; obedecerão ao planejamento da UOp PM, devendo cobrir as 24 horas do dia, nos horários críticos.

Com base nesta doutrina expedida pela IGPM e gravada na DGO, a PMERJ lançou o Manual Básico do Policial Militar (M-4), aprovado por ato do Comandante-Geral em 05 de dezembro de l983. Esse manual é extensivo aos oficiais e praças e contém prescrições detalhadas e direcionadas até o homem isolado. Mas interessa o Capítulo VI – PATRULHAMENTO TÁTICO MOTORIZADO:

CAPÍTULO VI – SEÇÃO I (...) Art. 136 – O Patrulhamento Tático Motorizado (PATAMO), difere da Radiopatrulha (RP) essencialmente no que diz respeito à maior mobilidade, dinamismo, flexibilidade e emprego maior de recursos, armamento e pessoal, exercendo ação preventivo-repressiva no combate à criminalidade.

Entre outras orientações relevantes, há algumas que merecem destaque:

Art. 137 – (...) – Parágrafo 4º: (...) 4) atua normalmente próximo a subidas de morros, ou onde houver favelas. (...) Art. l38 – Como a PATAMO atua sempre na ofensiva direta contra o crime, indo de encontro à ocorrência, deve-se ter sempre em mente que: (...) Parágrafo 2º – É necessário que todos estejam familiarizados com a conduta de combate do grupo, e cada um tem de saber a sua função e também o procedimento de seus companheiros. (...) Art. l46 – A ação em favelas deve ser executada com 2 (duas) viaturas do PATAMO, no mínimo. (...) Art. l50 – Quando for utilizada mais de uma viatura PATAMO para o patrulhamento em conjunto, o comandante será um Oficial Subalterno.

Sem esta digressão indo ao conteúdo do problema, não se ampliará a percepção do artigo gravado pelo professor Marcelo Baumann Burgos. Por três razões: a uma porque as UPPs não se enquadram nas normas tradicionais e atendem a poucas favelas num universo de milhares delas; a duas porque o modelo tradicional de repressão é ainda predominante na cultura interna e nas ruas; a três porque a cultura interna, avessa a mudanças, é mais que resistente, é resiliente, e tenderá à condenação futura das UPPs, como o público interno já o fez quando a PMERJ se arriscou a defender a “integração comunitária” durante determinado comando e o seguinte permitiu aflorar o pejorativo “interferência comunitária”, claro que defendendo a manutenção da PMERJ com a tradicional perspectiva de sistema fechado, ou seja, repressiva como regra e preventiva como exceção.

Enfim, a PMERJ só quer saber de PATAMO e formatos equivalentes absorvendo volumosos efetivos. Ora, duas guarnições de PATAMO de 05 homens dariam para formar 05 guarnições de RP de 02 homens, conta simples para aumentar deveras a frequência do patrulhamento em todo o RJ. Eis um modo simples de privilegiar a prevenção (índole da guarnição de RP) em detrimento da repressão (índole da guarnição de PATAMO). No fim de contas, numa emergência é fácil articular quantas patrulhas de 02 homens forem necessárias, juntando-as em aparato, pois elas estarão perto umas das outras. Vê-se isto o tempo todo nos enlatados norte-americanos. Ademais, todas as UOP mantêm uma Força de Choque que poderá ir às ruas, apoiar as radiopatrulhas, embarcada em duas ou mais viaturas de 05 homens. Claro que o comando deve ser no mínimo de tenente, como prescreve o M-4.

Mas a cultura da PMERJ de aversão aos “de fora” não será tão facilmente vencida, nem mesmo por pressões da imprensa (a corporação não disputa votos nem se afeta com impopularidades). As resistências (ou resiliências) internas estão na forma cística, sim, mas tão logo haja uma oportunidade a bandeira contrária ao modelo de intervenção policial denominado UPP será desfraldada. Procede, pois, a preocupação do professor Marcelo Baumann Burgos quanto ao futuro das UPPs. Porque não se há de negar o perigo da concentração de efetivos em áreas restritas, o que torna a UPP uma exceção, eis que contrária à regra geral do aumento da frequência do policiamento mediante o máximo fracionamento da tropa nas ruas e logradouros (princípio da prevenção pela presença ostensiva). E como há pressões de tudo que é canto que se vê prejudicado pela concentração de volumoso efetivo em caráter permanente (razão do sucesso das UPPs), a tendência é a do aumento da indignação da população não atendida com UPPs em seus ambientes de moradia e trabalho.

Sabemos também que aumentar o efetivo de forma desbragada é um perigo, pois, além de produzir mais ex-PMs, consagra a impossibilidade do pagamento de bons salários a todos, diferentemente do que ocorre atualmente: apenas PMs lotados em policiamentos privilegiados percebem gratificações, e os que estão na vida normal, não. Pior é que essas gratificações, mesmo boas para quem as recebe, são apêndices, não geram direitos futuros e são perdidas até quando o PM adoece. Enfim, ele só recebe o privilégio remuneratório se trabalhar. Não pode e não deve adoecer nem ser ferido porque será afastado da linha de frente ou de alguns lugares de retaguarda que interessem ao sistema por guardar forte relação com o controle disciplinar da tropa. E, claro, em sendo afastado o salário mirra...

Ora bem, o artigo do professor, – quanto aos aspectos que aqui me ponho a enumerar como advogado do diabo, – torna-se verdadeiramente angustiante, mais até do que ele concebe como temor futuro. E não adianta prender o foco no óbvio de que as comunidades atendidas com a implantação de UPPs estão satisfeitas, e que entidades de direitos humanos vibram. Claro que há a satisfação, mesmo considerando as falhas humanas e estruturais que por vezes põem em xeque as UPPs. Mas no geral, – e independentemente de os locais escolhidos atenderem aos interesses capitalistas com os eventos desportivos que virão, – as UPPs se tornaram uma boa realidade. Por outro lado, há uma quebra na garantia de segurança individual e comunitária (base conceitual e prática da segurança pública), que é direito genérico do cidadão e está hoje numa corda bamba, ou seja, em desequilíbrio tendente ao tombo fatal. Melhor pensar assim, realisticamente, para que haja tempo de pôr embaixo uma rede...

Mais uma vez sublinho que assiste razão ao professor: é inadmissível “uma volta à situação anterior”. Mas é bom lembrar que a “situação anterior” ainda vige em todo o RJ, exceto nas favelas aquinhoadas com UPP. Sim, a “situação anterior” é predominante na cultura interna, hoje aplacada pelo temor disciplinar. Bem, sei que não é caso de “voltar à situação anterior”, mas os discursos ufanistas ou preocupados, ou ambos, podem não resistir à realidade que vem sendo ignorada: quem não goza do privilégio da UPP almeja-a também, e para ontem. E insisto na ideia de que são milhões de cidadãos no RJ insatisfeitos com a atuação da PMERJ em seus nichos distantes, sem UPPs, e que ainda vivenciam a carência de efetivos na prevenção e na repressão ao crime, que, por sua vez, e inegavelmente, aumenta, aumenta, aumenta... E igualmente reclamam os desatendidos de nichos próximos das comunidades faveladas a festejarem a liberdade por conta das UPPs. De resto, concordo em gênero, número e grau com a opinião do professor, que jorra luz sobre um problema que precisa ser debatido sob pena de, ao fim e ao cabo, vencer mais esta contenda a “velha polícia”, que continua ativa como nunca, não quer saber de UPP e não se dobra a opiniões habilmente veiculadas pela mídia. Sim, a PMERJ é “cascuda”, apega-se em demasia às tradições e não teme opiniões vindas de fora, por melhores que sejam para a sociedade e por mais ilustres que sejam seus autores.

Eis a questão a ser vencida, que não se pode prender a nenhuma mudança de atitude (“mudança evolucionária”), mas depende de imposição de novos comportamentos por meio da “mudança revolucionária”, ou seja, pela reformulação das leis, dos regulamentos e demais sistemas legais que estão a facilitar a manutenção do status quo. Porque, enquanto as UPPs estiverem reduzidas ao campo das atitudes a modelar comportamentos operacionais, a vontade política atual pode ser atropelada pela própria instituição num novo momento de poder; e para tanto nada melhor que se apegar ao carcomido sistema legal que fundamenta suas atitudes e seus comportamentos tradicionais: este que aqui resumimos com a sugestão do conhecimento do seu todo por quem guarde interesse em ver a PMERJ, num futuro próximo, com reais perspectivas de sistema aberto e aceitando as UPPs como realidade e se tornando preventiva como regra e repressiva como exceção.

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