segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Conflito necessário?...

Fonte: O GLOBO de 23 de novembro de 2012

“O jornal exerce hoje todas as funções do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o pai da mentira, mas o pai da discórdia.” (Eça de Queirós)



Como no tempo da Inquisição em que o silêncio imperava entre as pessoas e a delação era o principal meio de prova contra “bruxarias” e “heresias”, é neste ambiente artificioso que um segmento da imprensa, espécie de “mídia-amiga”, vem agindo em compadrio com o Ministério Público (MP) contra interesses da Polícia Judiciária (PJ), como demonstra a matéria acima, apenas outra de uma série delas de igual sentido. Haveria nisso algum interesse inconfesso?... Não sei, porém não entendo a posição do MP contrária à PEC 37, que até ganhou o desmerecedor epíteto de “PEC DA IMPUNIDADE”, como se os membros do MP fossem semideuses... Mas quanto à “mídia-amiga”, esse faccioso comportamento contra a PJ vem desde muito tempo criticado por alguns importantes articulistas que sabem distinguir interesses maiores da população dos interesses menores de organismos burocráticos estatais. Os articulistas aos quais me refiro na verdade não aprovam artigos destinados a confundir a opinião pública nem aplaudem epítetos pejorativos que abundam na internet em vista do referido embate institucional... O assunto, por demais controvertido, me remete a uma crítica grafada na Revista VEJA em 10 de janeiro de 2001, ao se reportar a uma Medida Provisória presidencial cobrando responsabilidades do Ministério Público. Acho que vale a pena transcrever um trecho que se encaixa perfeitamente no presente raciocínio:


“... Quase todo mundo já percebeu – inclusive a imprensa, que prefere silenciar sobre o assunto com receio de perder o acesso às informações – que os procuradores têm tido uma atuação leviana em alguns casos. Há vezes em que apresentam denúncia à Justiça apenas com base em uma notícia de jornal, que eles mesmos trataram de deixar vazar por baixo do pano. É comum um jornal divulgar uma denúncia hoje e, no dia seguinte, publicar a notícia de que um procurador ‘vai investigar o assunto’, num círculo de compadrio entre repórteres e procuradores que, muitas vezes, arrasa reputações com base em indícios frágeis. Se a ‘denúncia’ é fraca, esquece-se dela dias depois, mas o ‘denunciado’ já passou pelo constrangimento de ter o nome vinculado a uma tramóia...”


Percebe-se que, por temores semelhantes, o atual conflito é tabu (quase dogma) capaz de amedrontar muitas gentes, a ponto de lhes impor o silêncio. Talvez porque o recado das matérias publicadas e desdobradas em opiniões coincidentes do poderosíssimo órgão focado e da poderosíssima “mídia-amiga” realmente atemorize os contrários ao que eles em uníssono defendem: liberdade para o MP praticar uma “investigação criminal” incompreensível até para quem lida com ela. Ah, parece briga de foice no escuro, porque, enfim, “investigação criminal”, em outras palavras, não passa de técnica de apuração de crimes, tal como se faz em corriqueiras pesquisas científicas, ou seja, mediante o uso da ciência e da tecnologia para se chegar à verdade sobre algo e/ou alguém. Isto jamais será proibido ao MP, pois disso ele depende para decidir ou não pela denúncia. Mas a parte contrária (PJ), que defende a PEC 37, pretende neutralizar o avanço do MP em sobraçar sua destinação constitucional, que, tal como a do MP, é talvez mal definida na Carta Magna. Na verdade o alvo é o Inquérito Policial Civil, base do labor da PJ que o MP quer eliminar ou, pelo menos, menoscabar sua imprescindibilidade na deflagração da ação penal.

Desconsiderando por um momento o adjetivo “criminal”, a investigação em si é praticada até no lar e em todos os lugares onde alguém sinta alguma necessidade de desvelar mistérios ou dirimir dúvidas. Portanto, quanto à investigação, que é a busca da causa a explicar um efeito (ou a inferência a partir do efeito para identificar uma causa), não se há de delimitá-la nem proibi-la a ninguém, sob o risco de o professor não poder observar se o aluno cola durante a prova. Enfim, investigação não passa de processo de inferência em torno duma dúvida razoável. Inquirir, perquirir, esquadrinhar, examinar com atenção, tudo se insere na ação de investigar, que não pode pertencer a nenhum organismo nos moldes do clássico “1984” de Orwell.

A questão que está pondo a PJ e o MP em trincheiras belicosas prende-se ao crime em si, que compete à PJ investigar para preparar a peça inquisitorial (Inquérito Policial Civil) e encaminhá-la à Justiça [“Art. 144 (...) § 4º – às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”]. Neste âmbito, a ação do MP, em vista do resultado apresentado pela PJ, pode ser a de concordar com ele e torná-lo processo criminal (Ação Penal) por meio de denúncia afirmativa, sempre afirmativa, de que o fato e suas causas determinantes são verdadeiros. Se não, pode o MP mandar tudo de volta à PJ, e requisitar mais investigação, mais documentos, mais esclarecimentos, até que conclua, enfim, se há crime a ser denunciado, de modo que o juiz acolha a denúncia sem ressalvas, o que é regra: dificilmente um juiz rejeita uma denúncia, e, quando o faz, a decisão dele é ainda reavaliada em instâncias superiores e muitas vezes mudada. Ao que tudo indica, todavia, é que o MP almeja prescindir do Inquérito Policial Civil e agir tal como o jogador “Faísca”, que bate o escanteio e corre a tempo de cabecear e marcar o gol...

Ora, há um ponto nebuloso no discurso do MP contra a PEC 37, esta que, por sua vez, reforça a incumbência constitucional da PJ em vista de lacunas mal preenchidas na Carta Magna e no próprio parágrafo em sublinha (“ressalvada a competência da União”). Como se vê a “competência da União” é expressão vaga e imprecisa, tal como a “incumbência”, o que necessita de certa forma ser consertada para encerrar o nocivo conflito institucional... Aliás, se existem lacunas na Lei Maior, elas se situam bastante no campo da ordem pública e de sua garantia (segurança pública).

Que “competência da União” é essa? Que “incumbência” é essa?... Qual teria sido a intenção do legislador ao grafar os diferentes vocábulos?... Bem, não sei nem vou agora investigar... Mas o MP, contando com o apoio unívoco da “mídia-amiga”, insurge-se contra a PEC 37 por entendê-la “conspiração política”. Então se deduz que a burocracia estatal abomina a política com o aval da “mídia-amiga”, o que cheira mal numa democracia. Afinal, a representatividade do parlamento não deve ser posta em xeque. Mas parece que os membros do MP e da “mídia-amiga” são vestais e os políticos e policiais civis, meros vilões a desserviço da sociedade brasileira. Aí também não dá!...

Será que a realidade é como esses dois segmentos (MP e “mídia-amiga”) afinados entre si informam ao público leitor? Não seria isto nada mais que holograma da realidade?... Como não pensar assim, se a “mídia-amiga” toma partido em favor do MP com a sutileza de uma cáfila pisoteando tambores?... Por que não abre espaço para o outro lado da peleja também ponderar suas razões? Por que os dois organismos em conflito não se assentam numa mesa comum para debater e encerrar a questão como gentes grandes?... Por que, em vez disso, a “mídia-amiga” associa o polêmico tema à posse do Presidente do STF em vista da contundente declaração do Procurador-Geral da República?... Por que vincular um assunto discutido em local próprio (Congresso Nacional) ao “mensalão”, que, por sinal, tem também origem em inúmeras e minuciosas investigações policiais, não sendo apenas resultante do elogiável esforço de inferência do MP (inferir é investigar) e da atuação magnífica do PGR no STF?...

Por falar em investigações policiais ou apuração de infrações penais, diferentemente do MP a PJ vai à ponta da linha aprisionar criminosos geralmente armados e perigosos, expondo seus integrantes ao risco extremo da morte, o que não acontece com os integrantes do MP, que investigam crimes longe desse incontrolável risco. A preparação do Inquérito Policial é a parte mais amena, geralmente articulada em ambientes seguros, tal como as apurações levadas a efeito pelo MP, ou seja, longe do risco de morte. Portanto, o MP sobraçar a parte mais simples e segura da investigação criminal, deixando para a PJ a limpeza da sujeira, é no mínimo injusto... Provocar esse esvaziamento de poder da PJ sob o pretexto de que os delegados de polícia não se investigam entre si e que por isso precisam ser investigados por promotores de justiça é mais que injustiça, é monstruosidade.

A verdade é que estamos diante duma desagradável disputa de poder entre o MP e a PJ que não interessa à sociedade. Em vista disso, a sociedade precisa conhecer mais miudamente o assunto e não embarcar em nenhum discurso de mão única. Se o assunto avança no Congresso Nacional, alguma razão de força maior existe e não pode ser tratada em reducionismo. Não sei, na verdade, se assiste razão a uma ou a outra parte, mas defendo que o Congresso Nacional deva ser posto acima dessas paixões miúdas. Por isso não compreendo o porquê de tanta pressão articulada como partitura musical entre a “mídia-amiga” e o MP, inserindo-se um deputado em voo solo, como se ele representasse algum segmento político além da pessoa dele. Ao que parece, e como se viu na matéria que postei anteriormente, o ilustre deputado Alessandro Molon, do PT-RJ, não representa nada além do seu voto a favor do MP, sendo certo que a maioria dos parlamentares que aprovou a PEC 37 nas Comissões Parlamentares não foi ouvida no mesmo contexto e muito menos teve chance de fazer pose de herói no jornal em destaque. Ora, isto sim é que parece miasma de conspiração!


Eis o objeto do conflito (com a inserção da palavra que muda tudo):

TEXTO ORIGINAL DA PEC 37-A/2011:

"Acrescenta o § 10 ao Art. 144 da Constituição Federal para definir a competência para a investigação criminal pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal. O Congresso Nacional decreta: As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 30, do art. 60, da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1° O art. 144 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 10: "Art. 144 (...) § 10. A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1° e 4° deste artigo, incumbem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.

Art. 2° Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua promulgação."


CONFIRA A ÍNTEGRA DA EMENDA SUBSTITUTIVA APRESENTADA PELO RELATOR:

 "Acrescenta o § 10 ao art. 144 e os §§ 6º e 7º ao art. 129 da Constituição Federal e o art. 98 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para definir a competência para a investigação criminal. As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º O art. 144 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 10: "Art. 144 (...) § 10. A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1º e 4º deste artigo incumbe privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente, ressalvadas as competências próprias:

I – das polícias do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, das assembleias legislativas dos Estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal, nos termos dos arts. 51, IV, 52, XIII, 27, § 3º e 32, § 3º, respectivamente;

II – das Comissões Parlamentares de Inquérito; e

III – dos Tribunais e do Ministério Público, em relação aos seus membros, conforme previsto nas respectivas leis orgânicas."

Art. 2º O art. 129 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 6º e 7º:

"Art. 129 (...) § 6º É facultado ao Ministério Público complementar provas obtidas por órgãos não policiais, com atribuições investigatórias definidas em lei e derivadas desta Constituição, bem como na hipótese de infrações penais conexas apuradas em inquérito civil, em qualquer dos casos, desde que esteja provada a autoria. § 7º No exercício das funções institucionais dispostas nos incisos II e VI, o Ministério Público deverá atuar, em caráter subsidiário, na apuração das infrações penais conduzida pelo delegado de polícia, no âmbito do inquérito policial, ou pelo oficial das Forças Armadas, da polícia militar ou do corpo de bombeiros militar, no âmbito do inquérito policial militar, acerca de crime cometido no exercício da função ou a pretexto de exercê-la, ou contra a Administração Pública, por agente político ou agente público, bem como aquele envolvendo organização criminosa, assim definida em lei."

Art. 3º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é acrescido do art. 98, com a seguinte redação: "Art. 98. Ficam ressalvados os procedimentos investigativos criminais realizados pelo Ministério Público até a data de publicação da Emenda Constitucional que acrescentou o § 10 ao art. 144 e os §§ 6º e 7º ao art. 129 da Constituição Federal."

Art. 4º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação."

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