sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Meu coração


Desde que o mundo é mundo o coração tem servido de inspiração aos poetas e prosadores. Acostumamo-nos a ler e a ouvir o coração ser cantado em prosas e versos, e em inúmeras variações poéticas que marcaram época e deleitaram os povos em emoções infindas, assim como até hoje acontece. Aliás, é rima perfeita coração com emoção, assim como a relação entre ambos é tão íntima que um afeta o outro em espírito e matéria. Sim, todos sabemos que o coração não é apenas um músculo. Por razões que a materialidade não explica, ele tem algo mais, vai além do mero funcionamento sistemático de bombear o sangue. Ele também bombeia o invisível, o sentimento. Nem tão invisível, pois é certo que é no coração, e somente nele, que as manifestações do nosso espírito afloram como forças vivas e palpáveis. 

Quem já não ouviu expressões do tipo “dói-me o coração!”, sem que essa dor não passasse de uma forte manifestação do sentimento humano? Essas emoções, com certeza, não afloram do que denominamos parte pensante, do racional, do cérebro. Elas vêm do coração, sem dúvida, e não passam tanto por qualquer interferência de um comando cerebral, lugar onde dizem estar o centro racional de tudo. Não!... Não há mais dúvida de que razão e emoção não se equivalem. Na verdade, razão é corpo e emoção é alma. 

Eu operei meu coração. Houve a decisão e logo me vi rodeado por uma equipe médica no Centro Cirúrgico do SICOR, na Tijuca, pronto para receber os cortes no peito que desvirginaria o meu pedaço mais importante. E me veio então a lembrança de que as minhas emoções me poderiam escapulir definitivamente. Gozado, com tanta coisa para pensar, e até com o pleno direito de sentir medo da morte, nada disso me ocorreu. Fui para a cirurgia sabendo dos riscos, porém convicto de que não seriam os médicos que garantiriam minha permanência neste mundo. Quanto a isto, nada temi. Contudo, veio-me o medo de olhar para dentro de mim e não mais ver meu coração como receptáculo único de minhas emoções. Aí tremi, espantei-me, atordoei-me, enquanto sentia as primeiras fisgadas de agulhas por tudo quanto era veia. Eram nove e trinta da manhã de sete de outubro de 1999. Pensei nisto e apaguei. 

Acordei perto de uma hora da tarde, já no Centro de Tratamento Intensivo (CTI). E logo percebi onde estava, eu conhecia aquele ambiente, pois lá permaneci após malsucedida angioplastia que não me desentupiu as coronárias. Percebi que estava no leito número um, defronte do local de permanência da enfermagem, tendo à esquerda a porta de entrada do Centro Cirúrgico, de onde eu praticamente acabara de sair, eis que o efeito da anestesia geralmente é calculado para terminar tão logo a cirurgia se encerre. Neste momento, eu fitei o umbral de entrada do Centro Cirúrgico. Deitado, a única visão que me era possível estava acima do nível do leito hospitalar, normalmente mais alto do que as camas comuns de nossas casas. E vi, com respeito, aquele crucifixo prateado prendendo o Cristo crucificado, um símbolo vivo da Igreja Católica. Eu sou católico. Gostei e pensei comigo que aqueles médicos, poderosos, competentes e audazes não abdicavam do apoio do Cristo postado acima de suas cabeças. E desfaleci... 

Eram três e meia da tarde, segundo depois pude saber, quando me vi acordando com uma dor tenebrosa, como se assim eu estivesse sendo retalhado por fios de navalha. Abri até onde pude meus olhos e deparei com aquelas cabeças de toucas verdes em volta do meu corpo, fisionomias desesperadas e mãos ágeis abrindo-me o peito sem anestesia. É lógico que eu sabia que se tratava de grave emergência. E eu via os médicos em volta de mim, sem lhes poder comunicar a minha dor. Eu estava entubado. E talvez meus olhos estivessem semicerrados apenas. Daí, eu os via, mas não era notado. E nem poderia, posto eles estarem agarrados no meu fio de vida, segurando-o tenazmente, para que dessa existência terrena eu não partisse. 

Tudo num átimo, numa velocidade que eu não consigo aqui retratar. Mas posso garantir que mesmo assim pude ver no pé do leito um homem de cabelos grisalhos assistindo à desesperada emergência. E vi aquele homem não porque buscasse olhar para ele, mas apenas porque sua imagem estava no caminho do Cristo crucificado, para quem eu mirava em desespero. E supliquei, bem rápido, três coisas: que Ele iluminasse os médicos, que Ele me enviasse forças para suportar a dor terrível, e, por derradeiro, conformei-me diante d’Ele, aceitando também a Sua vontade, caso fosse a de me levar. E, creiam, neste momento eu vi a Luz que vinha vindo do crucifixo sobre os médicos e sobre todos os que estavam no caminho da sua incidência. E vi a luz trespassando aquela cabeça grisalha e chegando a mim. E muitas vezes, até que nada mais vi. 

Acordei às 21hs, mais ou menos, ainda rodeado daqueles abnegados médicos que me buscavam a lucidez, todos muito nervosos. Mas eu me antecipei e comecei a lhes emitir sinais de desconforto, pedindo ou pensando que pedia para que sugassem a secreção do meu pulmão e da minha boca. Custei, mas consegui, até que a Dra. Cláudia (tenho comigo que essa jovem fisioterapeuta salvou-me a vida, apesar de ninguém, nem ela, ter-me falado nada) aliviou-me da secreção. E depois de uma maratona de perguntas, às quais eu entendia e respondia com gestos de polegar, os médicos finalmente se retiraram. Um, porém, não arredou o pé dali, de touca e máscara verde, ainda aceso na sua responsabilidade. Era o meu cirurgião, que não tinha um rosto, mas seus olhos me permitiam penetrar lá dentro do seu coração. E vi que ele ainda estava apreensivo, até que surgiu a médica trazendo um aparato de ecocardiograma. Era a Dra. Jaqueline, uma especialista em diagnósticos complicados, como depois também pude saber. Fora chamada para dirimir as dúvidas dos médicos quanto ao estado do meu coração, por esta hora apenas um pobre coração que foi parado, congelado, cortado e cosido; depois de tudo feito, ele se viu perigosamente tamponado pelo sangue que escapuliu e ficou retido entre ele e o pericárdio, e, simplesmente, parou de novo, agora por sua conta. E por isso o meu peito foi novamente aberto e o coração manipulado por mãos nervosas, e vigorosamente massageado, até que, teimoso, voltasse a bater; depois, tudo foi recosido, o peito fechado pela segunda vez em poucas horas. 

Parecia tudo bem, mas havia a dúvida da sequela, que, segundo os médicos, poderia ter sido de tal monta que não me seria possível, depois de tudo, sobreviver. A hipótese de sequela cerebral já estava descartada, não sem um certo estupor dos médicos, que chegaram a anunciá-la como uma inevitável consequência. A médica realizou o ecocardiograma ali mesmo, diante do médico, e terminou afirmando que tudo estava muito bem, que a cirurgia fora um sucesso, e ainda nos deu os parabéns, a mim e ao médico sem rosto; o seu rosto era o seu coração, que eu via nos seus olhos. E se foram a Dra. Jaqueline e o médico. Eu ali fiquei pensando em tudo que ocorrera até então. Fitei então o Cristo e agradeci. Sem dúvida, foi exclusivamente Ele quem me permitiu ficar aqui por mais um tempo. É certo que terei o que fazer, mas nem me preocupa isto, porque sei que a inspiração virá. 

Enquanto isso, do lado de fora, meus filhos, minha namorada e meus amigos Gallo e Astério recebiam notícias nada alvissareiras dos cirurgiões. Eles não se arriscaram a emitir nenhum prognóstico favorável, apesar do exame otimista da Dra. Jaqueline. Na verdade, ainda apostavam no pessimismo do incidente pós-operatório. Eles receberam a Luz, porém não a viram. Eu vi a Luz. Mas acabei duvidando disso, achando que me alucinara, e que não vira nada além daquilo que teria sido fruto de alucinação. Mas havia a cabeça grisalha, que eu não distinguia em ninguém, mas havia sim, eu tinha certeza. 

Ainda naquela madrugada do primeiro dia, recebi uma caprichada higiene patrocinada pelo enfermeiro Luiz. E, sem qualquer dúvida, posso afirmar que ele me fez sentir-me vivo, de tanto que me revirou para lá e para cá, falando, dando-me força e me tirando daquele estupor de morto-vivo em que eu me encontrava. Senti dor, é lógico, mas uma dor que me deu alegria. Eu estava literalmente vivo, contrariando, pois, todas as expectativas negativas. 

Amanheceu. Chamei a enfermeira e lhe disse que queria falar com o médico. Ela me indagou: “O senhor está sentindo alguma coisa?”. Eu lhe respondi que nada estava sentindo, mas queria saber do médico o que houvera na véspera; em resumo, queria saber por qual motivo me abriram novamente no CTI. A enfermeira reagiu: “Mas, quem falou que o senhor foi aberto no CTI?”. Eu lhe disse: “Ninguém!”, complementando que ela, por favor, chamasse o médico. Ele veio e manifestou o mesmo estupor da enfermeira diante da minha afirmação de que boa parte do acontecido eu vira e sentira. Ele custou a crer, contudo rendeu-se às evidências, porque eu lhe relatei exatamente o que havia acontecido enquanto estava lúcido. O médico não era mais o plantonista da véspera, mas o que assumira o plantão pela manhã, uma sexta-feira. 

Na parte da tarde, às três horas, fui surpreendido com a notícia de que haveria visita aos pacientes no CTI. Eu não me sentia firme, sentia-me fraco, desvalido, especialmente por causa da perda de sangue. E estava emocionado. Nada me tirava da mente que eu conseguira a graça de ter recebido no peito a Luz do Cristo, a quem eu suplicara por minha vida. Mas a dúvida permanecia muito forte dentro de mim. Afinal, eu não me via e ainda não me vejo com nenhum mérito para receber tamanha graça. Fiquei em agonia, e decidi-me que não receberia visitas naquele primeiro dia. E foi o maior rebuliço. Veio a administração do hospital ponderar que seria bom a família me ver passando bem. Queriam, na verdade, desfazer as más notícias que haviam dado aos meus parentes na véspera, colocando-os diante de mim. Não adiantou, não saí da minha teimosia e dispensei a visita de todos. E somente convenci os membros da administração do hospital depois que lhes afirmei que eu estaria a receber uma visita especial naquela tarde. Eles não me entenderam. Então, mandei-lhes que olhassem para trás e para cima, para o Cristo. E lhes disse que aquela era a visita que eu esperava. Convenceram-se e se foram. E eu, na verdade, guardei-me no meu silêncio para refletir... 

Passei o fim de semana como qualquer operado de coração, ou seja, cheio de dores, como se um trem de carga estivesse passando por cima de mim, vagão por vagão, e eu a contá-los sem nada mais poder fazer. Cada enfermeira que vinha para me cuidar da higiene e dos curativos, eu as comparava, algumas, como se fossem os vagões, uns mais leves, e outros com cargas mais pesadas. Enfim, uma barra. Mas, entre aqueles enfermeiros e enfermeiras havia uma que cruzou o seu coração com o meu. Fátima, doce criatura que me deu carinho além do que eu merecia, pois é certo que lá não havia paciente mais casmurro. Depois, não mais. Alegrei-me deveras e pude ver o quanto dependemos de bons enfermeiros. E todos de lá são maravilhosos, assim como aqueles da minha PM. Na verdade, também os médicos, de ambos os hospitais, mesmo que estes os pacientes pouco vejam. 

Na terça-feira da semana seguinte, retornou a Dra. Jaqueline, aquela do ecocardiograma da primeira noite. E me novamente examinou, constatando que meu coração estava absolutamente normal. E então ela me disse o que houvera naquela noite de dúvidas cruéis: os médicos não acreditavam que depois de massagear meu coração, como o fizeram, eu ainda saísse com ele inteirinho e palpitante. Mas saí, por obra e graça do único que poderia me dar essa chance de ouro: o Cristo Crucificado. Eta coração teimoso! 

Chegou finalmente a sexta-feira, completando-se uma semana de CTI, um tempo além do normal. Eu estava bem, havia tomado café e esperava para empurrar mais um dia de furadas e furadas em minhas veias sumidas de tantas agulhadas atrás de sangue, ora arterial, ora venoso, a pretexto de exames vários. Ainda fiz radiografias de tórax, tomografias e quejandos. Já estava de saco cheio de CTI, pra dizer a verdade. E ainda me sentia muito fraco. 

Assim fiquei deitado naquela cama, quando entrei em formidável espanto ao ver quem acabara de chegar. Sim, o médico que eu vira no dia da Luz. Lá estava ele! Ele existia! Eia!... Chamei a enfermeira Ana Lúcia, que me confirmou ser ele o plantonista ao CTI no dia em que eu fora aberto. E se confirmou que ele realmente assistira à cirurgia de emergência, ao pé do meu leito. Eu não me alucinara! Era verdade! Eu vira a Luz, tanto quanto vira o médico, o Dr. Rubens, segundo me disseram que se chamava. E mais um fato curioso: o médico é Rabino ou coisa parecida. 

Fiquei nervoso, excitado, e nem mesmo quis conversar com o médico. Permaneci dialogando com a enfermeira Ana Lúcia, que me disse que todos no hospital não duvidavam de que eu fora salvo por milagre. Salvo eu estava, sem dúvida, mas não em condições de sair do CTI, o que somente ocorreu na terça-feira seguinte, depois de me enfiarem uma boa dose de sangue veia adentro, que me levantou o moral e o astral sobremaneira. Dias depois veio a Dra. Jaqueline, não aquela do ecocardiograma, mas a outra, de igual nome e integrante da equipe que me operara. Examinou-me e não resistiu em me afirmar: “Seu Emir, o senhor é um homem forte!...”. Só me faltou dizer que eu não deveria estar ali depois de tudo por que passei, e ainda mais em quase perfeito estado de saúde. E eu lhe disse que sabia por que ali estava... 

Sobre o milagre, que todos o vejam segundo os seus próprios corações, prefiro assim. Comigo guardarei a certeza de que um dia saberei por que fui poupado. E agora tenho ainda maior convicção de que o coração não é apenas um pedaço de carne, um músculo como outro qualquer. Pois creio que é nele que se abriga a minha alma. E é com ela que agradeço a todos que evitaram que meu coração explodisse antes da hora. Sim, eu recebi o milagre!...

3 comentários:

Paulo Xavier disse...

O milagre existe. O poder sobrenatural da fé ou a vontade do Supremo Criador tudo pode.
Durante alguns anos frequentei uma igreja evangélica, estava muito afastado de Deus, e ali pude ver coisas que pra mim era inimaginável, incríveis até hoje para alguns.
Pude também ver o amor incondicional que Deus tem por cada um de nós, pobres pecadores.
Quando eu conto para as pessoas que em 1989, numa noite às 23:00 h eu me encontrava bebendo num bar próximo à minha casa quando desceram de um carro três elementos fortemente armados em minha direção, o quarto ficou na direção do carro ligado dizia "pode dar que é ele mesmo"; ao me virar deparei com o "demônio" olhando para mim com uma escopeta na mão pronto para atirar. Naquele exatíssimo momento o que estava na direção do carro gritou "sujou" e começou o tiroteio. Só tive tempo de me jogar atrás de uma árvore e minutos depois já na DP pude constatar que os quatro bandidos foram mortos numa acirrada troca de tiros com corajosos PMs do 12º BPM. Naquele episódio também aconteceu um milagre que salvou a minha vida e no dia seguinte estava de volta à minha terra natal.
Sem querer ser pedante ou soberbo, creio que Deus, escolhe algumas pessoas e as separa, isso é bíblico e com certeza o Emir Larangeira está nessa lista dos escolhidos.
Tenhamos um final de semana de paz, na presença do Pai Supremo. Paulo Xavier

Paulo Fontes disse...

Meu caro amigo Larangeira,
Sem dúvida é um emocionante e comovente relato de uma situação extrema que atingiu o seu clímax.
Muita coragem para passar o que vc passou e ainda expor publicamente.
DEUS certamente estava naquele CTI!
Abcs
Paulo Fontes

Emir Larangeira disse...

Obrigado aos amigos pelo carinho!