terça-feira, 2 de novembro de 2010

Sobre as milícias e a “Tropa de Elite II”




A propósito da abordagem do mestre Zuenir Ventura sobre o filme Tropa de Elite II, li o livro e ainda não vi o filme, mas de tanto ouvir comentários sobre ele já conheço parte do enredo. Há uma afirmação atribuída ao ex-capitão PM Rodrigo Pimentel que procede, embora num primeiro momento eu escrevesse sobre milícia e tivesse deixado no ar uma dúvida, como pode ser percebido pela leitura do texto que está disponível no meu site desde 2006. Ressalvado o fato de o ex-PM Rodrigo Pimentel ser uma exceção à cruel regra da desgraça de ser um ex-PM, sorte dele, mais uma vez me ufano por coincidir uma inspiração minha com a do mestre Zuenir Ventura. Refiro-me ao título do artigo dele, que igualmente utilizei de modo diferente (O Ovo da Serpente), postado faz pouco tempo no meu blog. Sugiro humildemente a leitura ou a releitura do artigo, assim como trago de volta ao blog o meu texto denominado “Milícia 1” para reflexão. Só discordo nessa história de uma coisa: a tal “ameaça de morte” endereçada ao deputado, seguindo a lógica do “cão que ladra não morde”, parece-me ficção. Ora, diversos assassinatos são praticados nesse submundo das milícias demonstrando de sobejo que os assassinos, se o quisessem, não pouparia o deputado; demais disso, a denúncia contida no livro indica graves acusações contra pseudônimos que são facilmente identificáveis na vida real. Não sendo ilação do escritor e de seus informantes, por que não se faz uma grande operação policial naquela favela-foco da trama (Rio das Pedras)? Por outro lado, creio que o deputado, com todo respeito, não esclareceu bem sua intimidade com um traficante famoso, embora o autor do livro, com inegável genialidade, tentasse apagar o “lado vilão” da história (tudo indicando que real) para exaltar o perfil “heróico” do ilustre parlamentar...
Na realidade, o fenômeno das milícias resulta de processo histórico e continuará existindo enquanto o modelo policial brasileiro for como é: militarizado e massificado, sem qualquer preocupação com a absurda quantidade de ex-PM que a instituição jorra no ambiente social, e que, com absoluta certeza, não tem a mesma sorte do ex-PM Rodrigo Pimentel. Nota-se, por outro lado, que a crítica contra o modelo policial chega ao público eivada de preconceito ou de ira contra um sistema que rejeitou alguns desses mentores das tramas primeira e segunda (livros e filmes), carecendo ambas, portanto, da necessária isenção. Há muita história de atritos que precisaria vir à tona para que o grande público não seja nem permaneça iludido. Assim afirmo, não com o intento de negar razão aos mentores e autores do estrondoso sucesso do tema “Tropa de Elite-Elite da Tropa”, com marketing e merchandising garantidos no mais alto patamar publicitário. Na verdade, com tão tamanhão apoio midiático, até a serpente do mestre Zuenir, que é uma dentre as mesmas serpentes a que me referi no outro artigo, seria capaz de voar e picar a águia nos píncaros dos céus, invertendo a ordem natural das coisas...

Rio das Pedras



Milícia1

Comunidade de Rio das Pedras: oásis ou miragem?


Em meados de 2006, no mais ou no menos, fui levado pela curiosidade à famosa localidade de Rio das Pedras, comunidade carente situada na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Trata-se de uma mistura de favela com periferia semi-urbanizada, abrigando cerca de 90.000 (noventa mil) moradores, ou seja, uma população maior que muitas cidades brasileiras, duas vezes a Favela de Acari.
Fui à noite, numa quinta-feira. Cheguei por volta de 21h. Enquanto andava do estacionamento até o restaurante (famoso por receber políticos e autoridades públicas, como pude verificar em muitas fotos expostas em orgulho pelo proprietário), fui observando tudo. Pude perceber o fervilhar de gentes humildes e bares apinhados de policiais (em sua maioria PMs e ex-PMs, segundo me informava a “comitiva” que me convidou a conhecer o lugar, depois de um recado que mandei manifestando esse interesse.). Alguns dos “milicianos” até me cumprimentaram em cortesia, outro, desconfiados... Notei, porém, a descontração dos passantes em contraste com os olhares ariscos dos policiais, todos à paisana e aparentemente à vontade. Lugar, com certeza, pra bandido nenhum se arriscar a tomar em valentia. É suicídio!... Bem, cheguei e achei interessante o restaurante: telhado pintado em azul, lugar simples, sem luxo, porém bem cuidado.
Sem dúvida, Rio das Pedras é localidade segura e pululante. Apesar do adiantado da hora, o comércio estava a pleno vapor: bares, mercados, quitandas, lojas etc. Igualmente notei um esquema de transporte alternativo funcionando em primor.
Enfim, uma autêntica cidade plantada na capital e vigiada por policiais civis e militares sob a liderança de um policial civil famoso no lugar. Veio-me inevitavelmente a indagação: "Por que ali é assim, enquanto outras favelas se vêem sitiadas por marginais da lei?"
Logo concluí que os policiais civis e militares, por conta própria (não sei em que número), tomaram para si a defesa da localidade e obtiveram êxito. Ocuparam o terreno antes do inimigo (ou teria sido depois?), seguindo o velho ensinamento de Sun-Tzu. Antes ou depois, todavia, a realidade é que eles estão lá dia e noite e qualquer pessoa, desde que identificada como não-bandido, pode circular livremente, em total segurança. Percebi esta sensação no semblante dos transeuntes, como já afirmei.
Mesmo assim, não posso negar que minha curiosidade foi além da observação epidérmica daquela tessitura social ímpar. Desconheço até então a existência de alguma pesquisa antropológica ou sociológica feita ali. Não sei se permitiriam... De qualquer modo, vi-me ante uma situação inusitada sob o ponto de vista legal: o monopólio do uso da força exercido por agentes públicos por conta própria. Mesmo sendo policiais, estão ali como pessoas físicas, não representam o poder público do
qual fazem parte.
Lembro-me de situação mais ou menos semelhante na Favela Para-Pedro, pelos idos de 1989. Situada na área do nono batalhão, a comunidade, hoje sitiada por traficantes do CV, não permitia a proliferação de bandidos no seu meio. Havia lá um grupo de moradores (não-policiais) exercendo a vigilância a ferro e fogo, com muitas mortes por eles patrocinadas, claro que jamais assumidas. Eram considerados "heróis" pela comunidade e a lei era a do silêncio...
Destinei atenção especial à favela porque bandidos a tentaram tomar à força, inclusive assassinando parte do tal "grupo de proteção" e expulsando o seu líder, um nordestino minúsculo e raquítico conhecido pelo apodo de Menininho. Aliás, de "menininho" ele nada tinha: matava feito cão danado, segundo os surdos comentários de favelados que o idolatravam, mas não respondia a nenhum inquérito policial. E não me houve forma de garantir à comunidade que o batalhão prestaria uma segurança à comunidade melhor que a do nordestino. As gentes faveladas até que confiavam em mim, mas diziam que em pouco tempo eu não mais estaria comandando o batalhão e os bandidos tomariam a favela. Era melhor pra eles, então, manter o tal "grupo" em ação permanente na localidade, em vez da PMERJ. Não aceitei. Mantive o policiamento dentro da favela e o tal "grupo" recolheu-se em "forma cística".
Tinham razão, todavia, os moradores: deixei o comando e não muito tempo depois a favela ficou sem proteção. Os bandidos a invadiram, matando os integrantes do tal "grupo". Menininho desapareceu e até hoje corre à boca miúda que ele "vendeu" a favela para os traficantes, pondo na bandeja seus desavisados parceiros. Enfim, não resistiu ao chamamento do ouro: "Embora a autoridade seja um urso teimoso, muitas vezes, à vista de ouro, deixa-se conduzir pelo nariz." (Shakespeare).
Em Rio das Pedras a segurança é formada por policiais civis e militares, portanto um pouco diferente do modelo que constatei existir na Favela Para-Pedro. Mas fico aqui me indagando se erradicar o tráfico, como de fato lá ocorre, inclui também a prevenção e a repressão de outras modalidades de crime, principalmente os decorrentes de conflitos familiares, bebedeiras e outros motivos afins. Quem sabe não seria interessante estudar e comparar ocorrências policiais registradas na delegacia policial e no batalhão da área com outros lugares favelados controlados por bandidos?
Ah, é bom que se diga, não vi nenhuma viatura policial transitando nas imediações... A indagação procede, sim, pois é de se esperar que as relações entre os micropoderes que ali interagem são convergentes, mas podem ser conflitantes, o que implica a necessidade de um poder maior para desempatar as contendas sociais (e comerciais) que decerto devem ocorrer. Também importa considerar que neste mundo capitalista em que vivemos os negócios mais disputados às vezes não se situam no campo da legalidade, embora aceitos pela população. Destacaria dois temas que vêm polarizando a opinião pública (ou publicada): a fiscalização das máquinas caça-níqueis e do transporte alternativo, podendo-se ainda sublinhar o combate à pirataria, a vigilância sanitária etc.
É claro que sustentar um grupo tão seleto de policiais, que não residem na comunidade, mas a controlam com inegável eficiência, deve custar caro. Afinal, eles arriscam suas vidas a troco de quê?... Eis uma situação curiosa e pouco clarificada: quanto deve custar à comunidade local (e à sociedade) sustentar uma milícia mais poderosa que qualquer "bonde" de bandidos ou qualquer esquema oficial de policiamento? Será que o custo/benefício dos cidadãos favelados é real? Será que estamos diante de um oásis comunitário ou somente de sua miragem?...
Eu, particularmente, observador apenas superficial do fenômeno aqui resumido, creio que é melhor ter um sistema funcionando assim do que depender a comunidade carente (e vale o raciocínio para todas) da proteção e do beneplácito de traficantes, estes, que não podem evitar confrontos com a polícia e com bandos rivais. Também se deve admitir que a maquinaria governamental não proveja as necessidades básicas da população periférica, que, por sinal, vive assolada por tiroteios. Entretanto, sinto que há necessidade de se conhecer o conteúdo do fenômeno, sua parte invisível e profunda, para se aprovar a iniciativa ou rejeitá-la com argumentos sólidos. Vejo como precipitação concluir, sem conhecer a fundo, e desde a sua origem, o fenômeno que se impõe como fato concreto desde há anos na comunidade de Rio das Pedras.
Há, com efeito, muitas indagações a serem formuladas e pesquisas de campo a serem desenvolvidas para se concluir contra ou a favor do inusitado modelo, sopesando sua legitimidade em contraposição à legalidade. Depois disso, aí sim, será até possível entender a presença constante de políticos e autoridades públicas reverenciando os "xerifes da comunidade", legitimando precipitadamente o modelo de segurança informal e estranho ao mundo jurídico-policial. Será que as autoridades que frequentam assiduamente o lugar sabem o que estão fazendo? Pois a presença delas no local implica a legitimação de um fato social fora do comum, embora o grupo de policiais se demonstre eficiente e eficaz naquilo que se propõe, ou seja, manter a comunidade livre de marginais. Mas a questão não se prende apenas nos fins informalmente traçados e atingidos; antes, deve-se conhecer em profundidade os meios utilizados para tanto. Só então se saberá se o que se vê é oásis ou miragem...
Digo, no meu caso, que gostei do que vi, mesmo restrito ao círculo maior que encerra toda aquela comunidade. Neste círculo epidérmico, voltado para o ambiente geral, sem dúvida se percebe uma sensacional segurança. Mas faltam à comunidade investimentos governamentais, e se poderia aqui também pensar em investimentos particulares promovidos por incorporadores, empreiteiras, comerciantes etc. Afinal, a região cresceu para atender às classes média e alta graças aos favelados que vieram de longe para construir os milhares de luxuosos condomínios verticais e horizontais que rodeiam a comunidade de Rio das Pedras em imponência.
Se ali fosse lugar dominado pelo tráfico, é certo que outros crimes graves, como sequestros, roubos de veículos, assaltos e quejando seriam imediatamente acrescidos ao tráfico e perturbariam deveras a tranquilidade do asfalto rico. Portanto, e para evitar que a tentação profetizada por Shakespeare um dia vença o ânimo dos protetores da comunidade, e eles abandonem o barco depois de conquistado, não seria demais que os ricos se preocupassem mais com os "abaixo da linha de pobreza" que com suor mal pago edificaram seus milionários patrimônios. Pois de uma coisa tenho certeza: da mesma forma que a maquinaria governamental jamais erradicou o tráfico e suas conseqüências em lugar nenhum (não é fácil vencer um inimigo bem instalado no terreno), também os traficantes jamais conseguirão retirar à força os protetores de Rio das Pedras. Mas, se um dia conseguirem, ali será a uma paradoxal reedição da "Cidade de Deus", que, na verdade, deveria ser chamada de "Cidade do Diabo".

Um comentário:

Paulo Xavier disse...

E agora José? Seria mal menor ou mal pior?
Eu posso traçar uma linha reta inclinada sobre uma folha de papel e garantir que é uma horizontal. Quem me disser o contrário, eu viro a folha e a coloco de maneira que a linha fique na horizontal aos olhos de quem vê.
Para o leigo sobre o tema "segurança" que assistiu o filme Tropa de Elite 2, certamente foi pra casa acreditando na versão do Cel Nascimento, que a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro deve acabar, e as milícias idem; mas para quem vive ou viveu o dia a dia da árdua tarefa de fazer segurança no nosso Estado do Rio de Janeiro, sabe que o buraco é mais embaixo, ou seja, deve olhar pelo ângulo correto.
O tema milícia é complexo e creio que se fizer um plebiscito com a população, tipo, "Você é contra ou a favor", creio que dá empate.
Cel, aconselho ao sr e a todos que ainda não viram o filme, que não deixem de ver.
Alguém disse que dramatizar é olhar o problema com lupa; não sei se dramatizaram demais, mas que o problema existe, existe.