sábado, 9 de outubro de 2010

O “ovo da serpente”*




Os recentes arrastões no Rio de Janeiro, para variar, não são novidade. Houve uma época em que o tráfico estava livre da ação policial (não preciso dizer qual governo determinou a omissão...) e mesmo assim os arrastões eram frequentes e violentos como os de hoje. Por conseguinte, não é vero vincular ações criminosas ocorridas no asfalto às UPPs. Isto é reducionismo que não contribui para a solução dos arrastões, na verdade apenas mais um tipo de crime no contexto duma criminalidade que sempre existirá aqui e em outros lugares, variando seus modos de ação ante as condições ambientais que lhes são propícias. Enfim, o crime organizado é fenômeno permanente e interligado em qualquer ambiente social. Não que o crime episódico e isolado tenha desaparecido. Ele ocorre de quando em quando, mas é exceção à regra geral do crime organizado como um sistema, sendo suas variedades nada mais que subsistemas. A regra vale para os crimes de sangue e fraude, passando por delitos de rua visando à aquisição de pequenas quantidades de droga por viciados arraias-miúdas, enquanto não se tornam traficantes para sustentar o vício. Portanto, quem pensa que uma ação bem-sucedida contra o crime organizado do tráfico nas favelas (caso das UPPs) exclui as demais modalidades de crime no seu entorno, engana-se. As UPPs têm objetivos específicos, relevando-se o afastamento dos traficantes ostensivamente armados com fuzis de última geração, algo apavorante para os favelados e desmoralizante para o sistema situacional (governo). Também as UPPs não podem garantir a neutralização definitiva dos delitos e dos delinquentes nas áreas ocupadas. Tanto é assim que muitas ocorrências criminosas vêm sendo atalhadas por PMs de UPPs no cotidiano do policiamento preventivo-repressivo em cada comunidade ocupada, o que é sabido e avaliado pelo sistema situacional. Ainda bem...
Claro que a preocupação maior está na migração desordenada dos traficantes expulsos, mas carregando suas armas. Significa aumento de efetivo e de poderio bélico em homizios de facções amigas. Como ensina o velho ditado, “a necessidade faz o sapo pular”... Mas, se houver a retirada das UPPs onde estão instaladas, os traficantes voltarão e a cobrança será terrível. Vi esse filme pelos idos de 1989-1991, sendo um dos protagonistas. Ocupei com tropa a Favela Para-Pedro (Vila São Jorge), em Colégio, Zona Norte do Rio, depois de expulsar os traficantes. Durante a vigência do meu comando à frente do 9º BPM, a comunidade ficou exatamente como se vê hoje onde há UPP: todo mundo feliz. Porém, o governo mudou e a omissão retornou com mais pujança que antes, desta vez retaliando policiais civis e militares que se destacaram no enfrentamento do crime (também fui personagem dessa tragicomédia brizolista...). Um novo comandante assumiu o 9º BPM e o policiamento foi retirado da favela. Os bandidos retornaram e mataram todos que aplaudiam a ocupação, ficando a emenda pior que o soneto, o que eu não gostaria de assistir novamente...
Enfim, o Rio de Janeiro e circunvizinhanças são ambientes sociais inegavelmente turbulentos, pauperizados, com enorme população apinhada em favelas dominadas por poderosos bandos armados e treinados em guerrilha. E, por mais que se tente minimizar a grave situação da criminalidade no Grande Rio (não somente na Capital), não se há de negar que tudo começa no presídio da ilha Grande e na convivência de presos políticos com membros da Falange Vermelha (hoje Comando Vermelho - CV). Exatamente lá, o aprendizado de táticas de guerrilha urbana, ao longo dos anos, dentre outras manobras de submundo, facilitou o contato dos bandidos com o tráfico internacional de drogas e armas, em especial com a Colômbia, onde os guerrilheiros das FARCs convivem harmoniosamente com os narcotraficantes formando um só sistema criminoso. A facilidade fronteiriça fez o resto e, claro, o Rio de Janeiro passou a ser o epicentro do crime organizado do tráfico de drogas portando armas de guerra e servindo de modelo para a formação de facções em outros Estados-membros, com destaque para São Paulo, onde o Primeiro Comando da Capital (PCC) tornou-se tão poderoso quanto o CV. Nota-se, porém, que em São Paulo o controle de comunidades carentes pelo tráfico ainda não possui os ingredientes apimentados do infelicitado Rio de Janeiro. Mal ou bem, todavia, no RJ muitas dissidências se desdobraram em facções a partir da primeira e histórica dissensão do crime organizado na ilha Grande, com o surgimento da Falange do Jacaré, hoje conhecida como Terceiro Comando (TC). Ainda há o CVJ (Comando Vermelho Jovem), a ADA (Amigos dos Amigos), o TCP (Terceiro Comando Puro), e mais uma facção organizada dentro dos presídios, porém já extrapolando para o ambiente social, denominada Povo de Israel. Até segunda ordem, a velocidade de mudança dos narcotraficantes fluminenses é quântica... E se não bastasse o emaranhado de organizações criminosas, que de quando em quando se enfrentam em escaramuças sangrentas disputando territórios, emergiu ao submundo do crime talvez a mais venenosa de todas as serpentes: a milícia.
Sobre as milícias, não é difícil localizar-lhe a origem: o próprio sistema situacional (o “ovo da serpente”) a jorrar ex-policiais civis e militares e ex-bombeiros militares no ambiente social como se fossem dejetos recicláveis. Essa massa de desesperados não absorvida pela sociedade na volta à vida comum, mas conhecedora dos ambientes institucionais e das favelas, inicia então suas atividades delituosas ante a vista grossa do sistema situacional que a gerou, principalmente a PMERJ, tema que detalhei em outro artigo denominado “O ex-PM e o crime” (1991). Não sei quantos milhares de ex-PMs existem no ambiente social (são milhares sim!); mas é certo que, unidos na desgraça, – muitos deles injustiçados pelo sistema situacional e outros excluídos por motivos relevantes, – esses homens buscaram a sobrevivência do modo que melhor conheciam: ou migraram para o tráfico, servindo-lhe de elo com o sistema situacional, ou formaram “mineiras” para invadir favelas aleatoriamente, até perceberem a possibilidade de, a pretexto de erradicar o tráfico, ao “modo UPP”, partirem para a conquista e a ocupação definitiva de inúmeros territórios, contando com o apoio de policiais e de políticos, ou transformando seus padrinhos policiais ativos em políticos detentores de mandato. Com mais um detalhe que só não vê quem não quer: o sistema de controle da venda de gás, do transporte alternativo, de transmissão clandestina de tevê a cabo e a “segurança informal” no asfalto “vendida” por milicianos comandados por policiais (não somente por PMs, BMs, PCs, ex-PMs, ex-BMs e ex-PCs, mas por PCs e PMs em atividade nas delegacias e batalhões referentes). Toda essa rede criminosa discretamente protegida pelo sistema situacional já se estendeu pelo Grande Rio e se interiorizou como um inequívoco poder situacional paralelo. Tudo isso poderia ser designado como calamidade social, verdadeira epidemia como subsistema de um sistema maior, nacional e internacional, com roupagem de pandemia...
Eis o nosso “ovo da serpente” desdobrado em novas crias pondo ovos em muitos ninhos, assim gerando serpentes e mais serpentes. Agora, ah!, agora elas precisam se alimentar e se voltam contra o seu mentor: o sistema situacional, a pior das serpentes, envelhecida, sem mais pele para trocar, mas ainda produzindo ovos e serpentes em larga escala (inclusões de imensos contingentes de recrutas), para em seguida expurgá-los como ex-PMs desprovidos de salário e outros benefícios familiares. E as serpentes descartadas e furiosas partem então para a clandestinidade e envenenam a mais e mais o ambiente social. Enquanto isso, o sistema situacional (a serpente-mãe) mantém seu ninho a reproduzir ovos e serpentes em larga escala, como se as novas serpentes (“sem vícios”) fossem se alimentar das descartadas (“viciadas”). Mas não! Serpente não engole serpente nem se engole pelo próprio rabo. Unem-se ambas em busca do alimento e vão injetando seus venenos no meio ambiente em mordidas surpreendentemente letais. Como estamos produzindo uma alegoria da serpente, nada demais mostrar um círculo vicioso por meio de uma delas...







*Postado por Atila Francis em 16/07/2008 00:25


O OVO DA SERPENTE - Drama sombrio de Bergman retrata a República de Weimar.

INGMAR BERGMAN – 90 ANOS

O OVO DA SERPENTE (Das Schlangenei / The Serpent’s Egg) Alemanha/EUA, 1977 – Direção de Ingmar Bergman. Há 31 anos, nos fins de 1977, o genial Ingmar Bergman, falecido em de 30 de Julho de 2007, apresentou o filme O OVO DA SERPENTE. A ação se passa na Berlim de novembro de 1923, que vive a euforia do fim da guerra. Nesse ambiente de liberdade, um médico, aparentemente apostando na cura, contribui com as suas experiências pseudo-científicas para destruir seres humanos. Faltava ainda muito para surgir o nazismo, mas já se entreviam os traços do monstro em gestação através da membrana transparente do ovo da serpente. Do ponto de vista político, a grande contribuição de Ingmar Bergman para o cinema internacional é este – O OVO DA SERPENTE (1977) –, filmado no período em que ele esteve como que refugiado na Alemanha por causa de problemas com o fisco sueco. Unindo os resultados de sua leitura do emblemático livro “1984”, do escritor inglês George Orwell (aquele que criou o Big Brother, o grande irmão que tudo vê e tudo controla) e de sua observação direta sobre as consequências funestas do nazismo alemão, Bergman analisa em profundidade como as pessoas são manipuladas por estímulos das mais diversas ordens. Toma como cenário de suas teses a história viável do que teria ocorrido, nos anos 1920 e início dos anos 1930, em pequenas vilas alemãs, onde as pessoas eram estimuladas por gases, com suas reações analisadas e posteriormente controladas. Eram permanentemente vigiadas por câmeras em seus locais de trabalho. Ali estava a origem (o próprio ovo da serpente) do geral condicionamento do povo alemão contra os judeus, ao tempo do nazismo de Adolf Hitler, com as atrocidades hoje conhecidas como o genocídio dos campos de concentração. Os acontecimentos expostos em O OVO DA SERPENTE tornaram-se corriqueiros e consentidos nos dias de hoje, em que é evidente a dominação soft das ações humanas pelos meios de comunicação e por órgãos governamentais. Considerado o maior diretor de cinema de nosso tempo pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos pelo conjunto de sua obra, Ingmar Bergman, nascido em 1918, teve uma vida das mais movimentadas, cujos episódios mais marcantes estão fixados também em outros filmes que produziu e dirigiu, como MORANGOS SILVESTRES (1957), GRITOS E SUSSURROS (1972), A FLAUTA MÁGICA (1975). O OVO DA SERPENTE é um filme forte, pujante, corajoso e obrigatório! Mas por este filme, Bergman foi acusado pela crítica de ter abandonado seus temas em favor de um cinema de grande público.

Fonte: http://fotolog.terra.com.br/cineatilafrancis:1338

Um comentário:

Paulo Xavier disse...

Comenta-se que certa vez um jornalista perguntou ao famoso traficante de drogas Escadinha se o crime compensa, e ele respondeu que no Brasil compensa.
Conheço muitos ex-PMs e alguns preferiram galgar o caminho do crime; desses, poucos sobreviveram. Ou morreram, ou estão presos. Conheço também muitos que preferiram dar a volta por cima agindo com dignidade e trabalho honesto e não estão arrependido por isso.
Acabei de assistir o filme Tropa de Elite II, tão bom quanto o I, nos mostra uma realidade cruel do nosso Estado do Rio e num determinado momento o Cel Nascimento diz mais ou menos o seguinte: Caí, mas caí para cima.
Você ex-PM que está lendo esse comentário agora, caia, mas caia para cima; ou seja, dê a volta por cima com dignidade, vire o placar adverso do jogo, faça seus parentes e amigos se orgulharem de você ao invés de sentirem vergonha.
Ainda tenho muito para falar sobre esse tema e discordando da tese do Escadinha, mesmo não tendo enveredado pela senda do crime, digo com orgulho que o crime não compensa.
Parabéns Cel Larangeira pela coragem em abordar um tema tão complexo.