sábado, 11 de setembro de 2010

O velho favelado


Fazia muitos anos que a favela via o velho sentado no rústico banquinho de madeira. Era uma figura enigmática, aquele velho... Amanhecia, e lá estava ele, sentado e fumando seu cachimbo não menos rústico. Ao lado dele, na ponta do banquinho, somente o pacote de fumo e a caixa de fósforos; em frente dele, no chão, um pequeno alguidar de barro a lhe servir de cinzeiro. Negro como o azeviche, magro, não muito alto, cabelos e barba brancos e unidos entre si por suíças, o velho já fazia parte da paisagem favelada: ora alegre, ora tristonha, ora violenta e apavorante. Mas ele, silencioso, com o olhar perdido num horizonte inexistente, ali permanecia até o lusco-fusco do anoitecer, quando então se recolhia ao seu pequeníssimo barraco, tão tosco quanto seu improvisado banquinho de madeira.
A moradia, com efeito, não poderia ser mais simples: era feita de tábuas carcomidas pelo uso em antigas construções e pregadas a estacas de mesma origem. Na parte frontal, que dava para a viela, havia oito dessas tábuas, perfazendo um espaço de dois metros e quarenta centímetros. Duas delas, – presas a pedaços de couro como dobradiças, – eram a porta; numa outra tábua, um buraco de altura e largura iguais fazia a vez da janela. Um pedaço de cobertor cobria o espaço destinado à penetração do ar no pequeno ambiente interno.
Do lado de trás do barraco, e por dentro, uma tábua apenas, – também presa a pedaços de couro como dobradiças, – dava acesso a um puxadinho mínimo, que ao velho servia de banheiro. Numa caixa emborcada, um buraco arredondado era onde o velho depositava em dignidade possível os seus dejetos; dentro da “caixa sanitária”, um cano de esgoto enviava os despejos não se sabe pra onde. Um balde d’água era a descarga, e não havia nada malcheiroso: predominava o olor do fumo queimado. E a prateleira de quina, – contendo uma pequena bacia de alumínio e um pedaço de espelho, – completava a decoração do pequeno espaço destinado à higiene do velho.
Como podia o velho se safar naquele microcosmo, só ele sabia... E no espaço menos mínimo do barraco (o quarto), pregos e prateleiras de tábuas toscas serviam para acomodar as poucas peças de roupa, todas brancas, de algodão, e alguns pertences insignificantes: canivete, escova dental, sabonete numa lata de sardinha, radinho de pilha antigo, apetrechos de fumar, toalha desgastada... Enfim, era tudo que o velho possuía e parecia satisfeito, em especial porque ele só entrava uma vez, à noite, para sair no dia seguinte e sentar-se no seu banquinho até novamente anoitecer, exceto nos dias de chuva, em que ninguém o avistava do lado de fora. E quem pensa que havia goteiras no barraquinho, engana-se. Não havia. O telhado improvisado em folhas de flandres era mui bem vedado.
Por esta hora o leitor deve estar imaginando que o velho era faquir... Não! Uma birosca próxima lhe servia o alimento, regularmente, do café da manhã ao jantar, demais do pacote de fumo e dos fósforos que jamais lhe faltavam. Quem pagava a conta, não sei, mas tudo era religiosamente saldado por algum anônimo sobre o qual o velho e o birosqueiro nada comentavam. Era apenas mais um segredo: o velho não abria a boca. Acenava com a cabeça respondendo aos cumprimentos que recebia dos passantes, e para as crianças fixava um olhar brilhante e sorridente. “Abença, vô!”, elas diziam. Ele as mirava carinhosamente e balançava a cabeça aquiescendo. Respondia pelos olhos e as crianças entendiam.
Era assim o cotidiano do velho, porém nem tão calmo... Havia as escaramuças entre bandidos, ou de policiais contra eles, e o corre-corre dos apavorados favelados em meio aos estalidos fatais. Mas o velho, sentado no banco e pitando seu cachimbo, nem se amofinava; ignorava os tiros, os bandidos, a polícia, e só franzia a testa quando via alguma criança desgarrada dos responsáveis. Aí sim, ele até se levantava do banco e recolhia a criança, não sem antes amarrar a cara para quem estivesse portando arma e atirando, fosse bandido, fosse policial. Seu olhar bastava para envergonhar os belicosos. Mas, tão logo tudo se acalmava, ele sentava no seu banco e nem lhe parecia que houvera antes algum tiroteio.
Assim era o velho, e todos desconheciam a sua origem. Chegara ao barraco como se aquele pequeno espaço já soubesse que seria por ele ocupado. No chão batido e forrado de tábuas velhas – o assoalho –, encostado num dos lados, havia o colchão forrado de plástico protetor, como se fora fabricado naquele dia. O lençol, o cobertor, o travesseiro, a fronha e um segundo lençol compunham a sua cama posta sobre as tábuas. Nada estava sujo, era tudo muito limpinho, como se alguém furtivamente trocasse as peças em algum momento; do mesmo modo, as peças de roupa que usava se apresentavam invariavelmente limpas, de modo que o ensebado do banco era consequência do suor inevitável que se acumulara ao longo do seu sentar indefectível e não por descuido com a higiene.
“De onde surgira o velho?” A indagação corria o morro de ouvido em ouvido em cochichos surdos. Muitos curiosos não resistiam e indagavam a origem do velho ao birosqueiro. O máximo que ele dizia era que o alimentava e cuidava de lavar e passar seus panos de vestir e dormir; e que providenciava a água do banho e da moringa posta sempre ao lado da cama e do travesseiro, a boca da moringa protegida pelo copo de vidro, único, que lhe servia de bica nos instantes da higiene bucal e se enchia para lhe forrar de água fresca o estômago. Também o recipiente da descarga tinha a água reposta regularmente, de modo que fique claro ao leitor que o velho era sozinho, vivia sozinho, permanecia o dia inteiro sentado no seu banco fumando cachimbo e nada devia a ninguém. Nem ao birosqueiro, este que recebia régio pagamento por tudo que fazia, mas longe da favela, o que matava os favelados de curiosidade: “Quem era aquele velho?”...
A pergunta corria a favela, as crianças insistiam com os pais e os mais velhos cismavam, mas ninguém sabia ao certo que concluir e responder. Daí, todos inventavam... E as lendas se acumulavam, das mais simples às absurdas. Uns afirmavam que ele nascera na favela e dali jamais saíra. Na verdade, o tempo fez com que muitos nascessem e crescessem vendo o velho sentado no banquinho. Como favelado costuma morrer cedo, de doença ou tiro, a invenção foi se tornando verdade: o velho sempre existira, tal como muitos asseguram que o Universo sempre existiu e não houve nenhum big bang, nenhum momento primeiro, nenhum “peteleco de Deus” para movimentar o Seu brinquedo atemporal. E, claro, onde impera o mistério, se desdobram as lendas, os mitos, os dogmas e muitas mentiras. Era o que acontecia na relação do velho com a comunidade, que dele só capturava um franzir de testa ou o olhar brilhante quando se tratava de mirar as crianças, únicas que dele se aproximavam sem temor e lhe pediam a benção: “Abença, vô!”
E o tempo escorreu, crianças tornaram-se adolescentes e alcançaram a fase adulta sem que o velho apresentasse qualquer mudança no seu corpo e nos seus hábitos. Passasse por ali o filósofo Emanuel Kant, este acertaria o seu relógio crendo na precisão do comportamento do velho. Enquanto isso, a favela foi crescendo, com os barracos cada vez mais apinhados à beira de precipícios ignorados pelos que necessitavam de um teto em qualquer lugar, por mais perigoso que fosse. E em meio ao turbilhão do ir e vir dos favelados e dos cada vez mais constantes tiroteios, a única imagem que não se alterava era a do velho sentado no seu banco feito da caixa de madeira jogada fora por algum quitandeiro.
Brilhava o sol, lá estava ele: o velho sentado no banco a fumar seu cachimbo. Chovia, e ele não saía do barraquinho. Anoitecia, e ele se recolhia britanicamente... Brilhava o sol... Passava a noite... Brilhava o sol... Mas um dia o velho não saiu, não se sentou no banco, não fumou seu cachimbo, não franziu a testa em meio aos tiros nem tremeluziu seus olhos ante a gurizada alegre. E muitos deduziram: “O velho está morto!” E depois de dois dias sem ele no banco, alguns favelados arriscaram a dar uma olhada de soslaio empurrando a portinhola do barraco... E nada havia dentro... Empurraram a portinhola do banheiro... E nada mais havia dentro, nenhuma peça, nem o velho...
Ele desaparecera sem que ninguém na favela notasse, nem o birosqueiro que o servia. E até hoje o mistério do velho favelado permanece alimentando histórias e mais histórias naquela favela por ele escolhida para viver a modo bom ou ruim, feliz ou infeliz. Ah, de um modo ou de outro, e por mim, ninguém haverá de saber! Que então cada leitor pense o que quiser e escolha o seu próprio jeito de encerrar esta história que mais se assemelha à de um mundo com ou sem espaço, tempo e finalidade: o mundo do tudo ou do nada!...

2 comentários:

NEIDE disse...

A ÚNICA CONCLUSÃO A QUE CHEGO É QUE O VELHO NÃO FALAVA, POIS, SABIA QUE DE NADA ADIANTARIA, NA SUA IDADE JOGAR PALAVRAS AO VENTO. DEVIA PENSAR: O QUE O HOMEM FEZ COM A INTELIGÊNCIA E OS DONS QUE DEUS LHES DEU; COMO TUDO PODERIA SER DIFERENTE SE A HUMANIDADE PARASSE PARA PENSAR QUE TUDO O QUE TEMOS FOI-NOS DADO POR UM SER SUPREMO PARA QUE PUDÉSSEMOS LEVAR A VIDA DIGNAMENTE SEM TIRAR NADA DO OUTRO, POIS, TODOS RECEBERAM O SEU QUINHÃO E UM DIA ESSE MESMO SER SUPREMO NOS EXIGIRÁ OS RESULTADOS DESSA DOAÇÃO. TALVEZ O VELHO TENHA SE CANÇADO DE VER TUDO ISSO SEM NADA PODER FAZER PORQUE CADA UM TEM SEU LIVRE ARBÍTRIO. QUE NÃO TEM DE CULPAR ESTE OU AQUELE PELOS SEUS ERROS A NÃO SER A SI PRÓPRIO. LUZ, DISCERNIMENTO E RESIGNAÇÃO FOI O LEMA USADO PELO VELHO TODOS OS DIAS. SE PARARMOS PARA OLHAR O MUNDO, VAMOS PERCEBER QUE EM CADA LOCAL POR ONDE PASSAMOS EXISTE UM VELHO TALVEZ NÃO IGUAL MAS, PARECIDO TENTANDO NOS DIZER ALGO QUE NOS DESPERTE PARA A REALIDADE DA FALTA DE HUMANIDADE, DE PAZ E COMPREENSÃO ENTRE NÓS.
ADOREI O TEXTO E COMO VOCE MESMO DISSE, QUE CADA UM TIRE SUAS CONCLUSÕES.
PARABÉNS!

Paulo Xavier disse...

Bela narrativa, onde o leitor viaja no fato e de fato e o protagonista da história, igual a tantos que existem por aí, preferiu ir para um asilo se juntar a outros velhos.
Como viver isolado e solitário num mundo egoísta, violento e desumano?
Parabéns pelo belo texto!