sexta-feira, 11 de junho de 2010

Crítica sobre a estratégia da PMERJ

Há críticas que não raramente atingem pessoas. É difícil criticar obra nascida de ideologias ou dogmas de poderosos. Há sempre a paternidade dela defendida com o ardor de propriedade passada em cartório, em especial se a obra acertar o gosto geral das pessoas e interessar aos mandatários políticos. Excluo desta apreciação as más obras propagadas como boas por meio de manobras publicitárias. Como observava Maquiavel: “Os homens em geral julgam pelo que veem, e não pelo que experienciam.” Falo de obras (experimentais ou tidas como definitivas) que mereçam críticas, boas ou ruins, mas sempre com intento construtivo.
Sei, afinal, que a dinâmica do mundo moderno nos exige destruir para construir o novo ou reconstruir o velho. É normal esse comportamento na gestão de coisas públicas ou particulares. As voltas, viravoltas e reviravoltas de decisões fazem parte do jogo da vida em sociedade e devemos estar preparados para corrigir rumos. Acontece, porém, que a crítica à obra às vezes ofende seus mentores porque estes erradamente a personalizam. No cenário político, isto é comum. O político, no fundo, sente-se como o “Rei-Sol” Luiz XIV: defende seus acertos e não admite críticas, em especial quando exercita despoticamente o poder (L'Etat c'est moi). Ele quer sempre exibir boas qualidades e ocultar as más... E quem o critica passa a ser adversário, no mínimo, ou inimigo em sua extrema vaidade. Já o servidor, civil ou militar, – eventualmente subordinado ao mando político, – deve estar atento às críticas, aceitando-as ou rejeitando-as, porém jamais as tornando “pessoais”, a não ser que encerrem no conteúdo alguma ofensa. Mas se a crítica for à obra, ela resume um direito do contribuinte, mesmo que seja, ao fim e ao cabo de sua avaliação, considerada sem fundamento, o que também é normal.
Feitos os devidos reparos, vejo com certo ceticismo o militarismo praticado na corporação da qual faço parte desde 1965. Tudo continua como dantes: superior hierárquico na PMERJ não admite crítica de subordinado, no máximo aceita alguma sugestão para se demonstrar “democrata”. Na PMERJ, o superior “sempre tem razão”, embora em muitos casos o seu desempenho intelectual seja deplorável ao longo dos cursos obrigatórios e da carreira continuada. O invólucro elegante iguala-o e lhe oculta a inata estupidez. Vale o poder representado pela legalidade do posto ou do cargo muitas vezes conquistado à custa de puxa-saquismo, a ponto de um repetente de Academia de Formação de Oficiais ser alçado à “legítima” condição de comandante-geral, como ocorreu faz pouco tempo. Ora, repetir ano num curso remunerado e com dedicação exclusiva, com média ponderada mínima de aprovação igual ou superior a cinco, é de doer. Na verdade, repetência em situação assim deveria gerar a imediata exclusão da corporação e o mau aluno deveria, ao longo da carreira, responder gravemente por seu baixo rendimento escolar, a não ser que prove sua competência intelectual em cursos seguintes. Mas não é assim que a banda toca. Afinal, num ambiente coletivo pautado pela meritocracia e pela aparência, o usual é que “a árvore oculte a floresta”, parodiando um provérbio alemão.
Li outro dia uma gratificante referência do comandante-geral da PMERJ, Cel PM Mário Sérgio (de quem sou sincero admirador, embora nem sempre com ele concordando), ao Cel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, morto em circunstâncias imerecidas. O Cel Cerqueira era um homem de paz e idealista. Possuía formação acadêmica de psicólogo e era emérito pesquisador. Alçado à condição de comandante-geral no primeiro momento brizolista, elaborou com sua assessoria um Plano Diretor para a PMERJ com o foco na Integração Comunitária. Todavia, para conquistar esse objetivo, dentre muitos outros, ele sublinhou o HOMEM PM como o principal objetivo a ser trabalhado no campo das atitudes para mudar comportamentos. O Plano Diretor não era um instrumento de intervenção aleatório e distante da teoria. Tratava-se de trabalho fundamentado na Teoria Geral da Administração (Desenvolvimento Organizacional, Teoria de Sistemas etc.), instituindo um sistema composto de vários subsistemas conceituais a serem praticados em benefício da globalidade do labor miliciano no cumprimento da missão constitucional de manutenção da ordem pública. Na verdade, o Cel Cerqueira idealizara para a PMERJ uma mudança comportamental de “força de segurança” para “serviço de segurança”.
Com um romantismo talvez quixotesco, ele cria no sucesso da empreitada ao iniciar o seu comando. Com o tempo, porém, percebia-se que a resistência à mudança era tão tamanhona que o Plano Diretor foi ficando esquecido: sobre o Boletim da PM que o publicou foram empilhados os seguintes, dia após dia, mês após mês... Foi quando eu, atuando na PM.5, e não menos quixotesco, peguei o texto e trabalhei no sentido de editá-lo em livreto para difusão dos pensamentos nele contidos, nova chance de convencimento da oficialidade que se mantivera indiferente ao seu conteúdo. No mínimo... Bacharel em Ciências Administrativas, claro que me empolguei com o Plano Diretor. Via nele a bússola que faltava para romper a resistência às mudanças, verdadeiro escudo que protegia das turbulências a mesmice eternizada. A cultura interna, porém não permitiu mudar comportamentos por meio de mudanças de atitude, o que em Planejamento Organizacional costumamos designar como “mudança evolucionária”. Ninguém desejava se arriscar em “mares nunca dantes navegados”.
Apesar da resistência surda e muda, os cursos obrigatórios ganharam nova roupagem e o conhecimento trazido de fora foi aos poucos penetrando nos jovens oficiais, e a cultura tacanha do militarismo foi cedendo lugar a novos conhecimentos das áreas humanas e sociais, embora contestados por quem já se livrara desses cursos obrigatórios que antes eram apenas pró-forma... E bastou o comando do Cel Cerqueira acabar para muitos que o viviam a bajular mostrassem a verdadeira cara: a Integração Comunitária pretendida pelo Plano Diretor tornou-se alvo de chacota interna e passou a ser apodada de “interferência comunitária”, pejorativo alardeado aos quatro cantos por quem detinha novos mandos internos. E do avanço feito em direção ao “por que fazer as coisas” retrogradou-se ao “como fazer as coisas”...
Tornamos à estaca zero, ou, pior ainda, instituiu-se na PMERJ o cisma do “fodão” versus “bundão”, significando “operacional” versus “administrativo”. Esta ruptura não permaneceu na teoria. As retaliações trovoavam e as facções contrárias ao Cel Cerqueira atacavam-no o quanto podiam. E nesse péssimo clima organizacional em que o passado dos “bundões” parecia ter perdido a guerra para o presente dos “fodões”, o Cel Cerqueira reassumiu o comando-geral da PMERJ. Mas ele não era o mesmo... Não era mais quixotesco... Chegou zangado e descrente, e o abismo aprofundou tanto que hoje não enxergamos o seu fim
A PMERJ ainda se ressente desses tempos complicados que fortaleceram o indevido: as facções internas. Porém, se antes o divisionismo interno era grave, hoje tende a ser ameno. No passado, a bússola se perdeu num campo magnético desnorteado. Deste modo, sobrou para os oficiais superiores de hoje a solução do grave problema conjuntural interno e confesso que não sei se tal intento será alcançado porque continuamos obedecendo às mesmas leis e regulamentos de antanho. Não abandonamos ainda o nosso modo tacanho de ser. Ou de ter... Os novos tempos exigem uma “mudança revolucionária” (Trata-se, em Planejamento Organizacional, de mudança de comportamento impostos por novas leis, para que não confundam com “motim” ou algo semelhante).
Entendo que os oficiais de hoje possuem as melhores condições para sepultar o passado. O Cel Cerqueira venceu num ponto importante: rompeu a cultura da mesmice dos bancos escolares internos e atualmente há uma oficialidade culta não apenas nas teorias avançadas da segurança pública, mas também nas áreas humanas e sociais. Hoje o coronel é o tenente de ontem que combateu e estudou. Reúne as duas condições antes separadas por pejorativo: é “bundão” (administrativo, estudioso) e é “fodão” (combateu o crime na linha de frente do risco extremo). Não há mais o divisionismo pernicioso de outrora! Desapareceu das ironias internas a figura do “policiólogo”! Hoje o estudioso tem vez e é respeitado. O resto do resto do resto ficou para trás...
Atualmente, há certa uniformidade de pensamento (conhecimento) e de ação, boa hora de elaborar um corpo doutrinário próprio, independente, flexível e compatível com a mutável realidade do ambiente social do Estado do Rio de Janeiro. É hora de sepultar leis e regulamentos anacrônicos, ainda vergonhosamente copiados do Exército Brasileiro em época de II Grande Guerra ou de regime militar desconfiado da gente. Isto não mais vigora. Portanto, é hora de mudar tudo, mesmo que, – parodiando o Dr. Beltrame a imitar a máxima de Josef Stalin, – se quebre alguns ovos para fazer a omelete... Porque antes, com o emaranhado de quadros dissidentes e facções várias no serviço ativo, não era possível unir a oficialidade. Hoje é possível, a oficialidade é toda do Quadro I, portanto bastante homogênea em seus conceitos e práticas. Momento melhor para implantar uma nova doutrina de ação para a PMERJ não existe. Claro que, como um sistema conceitual passível de revisão e aprimoramento constante.
Pena que o Cel Cerqueira não esteja mais entre nós para constatar que aquela quixotesca mudança de atitudes por ele sonhada vem ocorrendo gradativamente, e ele não mais estaria a lutar contra seus ilusórios moinhos. Por outro lado, entretanto, a dinâmica da política e dos “principados” hodiernos traz Maquiavel de volta com toda a força. É fácil constatar em UM LIVRO BOM, PEQUENO E ACESSÍVEL SOBRE ESTRATÉGIA (Chris Carter e outros – Porto Alegre: BOOKMAN. 2010), que lembra o livreto (Plano Diretor da PMERJ) esquecido em algum arquivo ou jogado no lixo: “(...). E por isso a representação daquilo que um príncipe faz (em termos modernos, cobertura pela imprensa, planos estratégicos, relatórios anuais, proclamações de objetivos, manipulação da informação, etc.) acaba se tornando mais importante do que a própria realidade. A retórica cria a realidade; a aparência é mais importante do que a ação.”
Evitar esse danoso fenômeno somente será possível se a PMERJ emergir da mesmice e partir corajosamente para uma nova polícia e um novo policial, resumo do sonho do Cel Cerqueira e Grande Objetivo do seu (dele) Plano Diretor. Para tanto, basta agir silenciosamente intramuros enquanto a política dá as cartas do lado de fora, o que é inevitável por não existirem boas leis, bons regulamentos e uma Doutrina de Polícia de Manutenção da Ordem Pública tão firme e inabalável como o é a Bíblia para os cristãos. Por enquanto, na verdade, só existem bons homens e boas armas. Falta acrescentar a cultura da mudança de cenários de atuação, como sói ocorrer no teatro em que o cenário perdura na medida certa da interpretação dos atores. E assim, com novos cenários e novas interpretações, os atores PMs ora farão sucesso, ora serão criticados ou até apupados. Mas seguirão se redescobrindo e se atualizando ante as novas realidades sociais, de modo a receber a máxima aprovação popular. Não custa sonhar com isso...

2 comentários:

CHRISTINA ANTUNES FREITAS disse...

Cel Emir:

Brilhante seu artigo, pois acredito que estamos no momento certo para que as mudanças aconteçam de forma estruturada e sutil. Porém para isto, precisamos que Oficiais e Praças (somente os que precisam) comecem a conjugar o verbo DESAPEGAR...
Não vamos pedir muito: DESAPEGAR, no Presente do Indicativo, já estaria de bom tamanho:

DESAPEGAR
Presente do Indicativo

eu desapego
tu desapegas
ele(a) desapega
nós desapegamos
vós desapegais
eles(as)desapegam


E não acredito que isto seja uma utopia!

Abraço fraterno,
CHRISTINA ANTUNES FREITAS

Paulo Xavier disse...

Toda mudança requer esforço, coragem e predisposição. É preciso quebrar tabus e preconceitos, se cultuar ao máximo e testar nossos próprios conhecimentos. Quanto mais soubermos, mais nos especializarmos, mais progrediremos.
Cel Larangeira, estou falando isso porque muito mais difícil que aceitar mudanças de regras e comportamento dentro de uma corporação, é sobreviver fora dela e carregando na testa a inscrição "EX-PM".
Vemos que existe uma resistência muito grande quando se fala em quebra de paradigmas, de conceitos, mas é preciso que se mude quando o time está perdendo e a torcida começa vaiar.
Hoje vejo que não é tão difícil assim, como já disse, é preciso acima de tudo coragem para se aceitar novos desafios.
Sinceramente não guardo boas lembranças do Cel Nazareth Cerqueira, também não guardo mágoas. Comi o pão que o diabo amassou, mas foi bom para mim, criei resistências morais que preservo até os dias de hoje.
Parabéns pelo texto que desperta a uma reflexão, principalmente aos detentores do poder.