segunda-feira, 17 de maio de 2010

Sobre o mito da estatística na segurança pública


"O mito é o nada que é tudo./ O mesmo sol que abre os céus/ É um mito brilhante e mudo - / O corpo morto de Deus,/ Vivo e desnudo." (Fernando Pessoa, "Ulisses" in Mensagem)


Toda vez que o Instituto de Segurança Pública (ISP) divulga suas estatísticas de crimes ocorridos, eu me enfio em mim, cismático. Não que eu questione a veracidade dos índices. Não creio em manipulação. Apenas discordo ao ver a estatística como um propósito a ser alcançado e me incomoda principalmente o ufanismo ou a frustração quando algumas taxas de acontecimentos criminosos baixam ou sobem em relação ao passado. Tanto faz. Porque, mesmo se subissem, minha opinião seria a mesma: estatística é meio, não é fim, é instrumento de medição dentre muitos outros que se integram à complexa ciência administrativa, que abarca também a segurança pública enquanto organização destinada a garantir a paz e a harmonia na convivência social. Transformar estatística em objetivo a ser alcançado sugere-me jogar com a sorte, ou com o azar, já que na prática nenhuma mudança se observa no cotidiano das ações policiais, ou seja, malgrado algumas variações operacionais, tudo se resume à mesmice e o resto é cascata midiática. No fim de contas, e para resumir, qual é a vantagem de saber se houve mais ou menos homicídios num período qualquer comparado a outro? Em que isso beneficia ou prejudica o sistema? Que reflexos produzem no povo que enfrenta os riscos de sempre nas ruas e em suas casas?
Ora, as estatísticas nem mesmo explicam as circunstâncias de cada crime, suas motivações, localizações etc. E, se assim o fizessem, as estatísticas não servem para nada além de instituir uma falsa impressão de sucesso ou de fracasso do sistema de segurança pública. Na verdade, esses índices estatísticos atendem mais aos anseios da mídia: os números oficiais lhe servem como luva para produzir matérias mirabolantes, com gráficos e comentários que mais prejudicam que ajudam a administrar a insegurança pública, integrante viva da assimetria que rege a convivência social. Pode parecer paradoxal afirmar que a desordem é necessária à evolução da própria ordem; mas é assim que o mundo cósmico funciona, é como o mundo das partículas funciona, e é como o mundo social funciona. Encarar, portanto, a realidade de uma insegurança a ser administrada, em vez de focar a segurança (o seu oposto) como meta sistematicamente perseguida, é fundamental ao controle da primeira (insegurança) e de sua manutenção em níveis toleráveis. Porque o crime, como nos ensina o mestre em criminologia Manuel Lopez-Rey, é inerente ao ser humano, tal como o amor e o ódio, e sempre existirá na tessitura social, gostemos ou não. Negar o crime como realidade passada, presente e futura é se enganar para enganar terceiros.
Ora, estatística é limitada medição instrumental. Não é objetivo a alcançar. Serve apenas para apurar resultados e auxiliar nos processos decisórios, assim como outros métodos mais acurados de medição como, por exemplo, a Pesquisa Operacional. Em meio a tantas alternativas oferecidas pela Teoria Matemática da Administração, dentre outras bases conceituais e práticas interessantes à evolução da organização em vista dos seus fins sociais, apontar apenas que o número de homicídios aumentou ou diminuiu em determinado período não significa absolutamente nada em termos de eficiência, eficácia ou efetividade da segurança pública enquanto organização estatal. Em qualquer sociedade, nas empresas públicas ou privadas, e também nas ciências e na arte de sobreviver e competir, a medição é imprescindível para comparar objetivos com resultados, e estes, sim, hão de ser bem-sucedidos, se vinculados a objetivos adrede traçados e passíveis de mudanças e inovações constantes. É o que se espera de qualquer organização social. Deste modo, sem objetivos previamente medidos (mesmo que instintivamente) não há como apurar resultados. Por isso, ao se fixar um objetivo deve-se ter em mente projetar uma estrutura capaz de alcançá-lo com eficiência, eficácia e efetividade, entendida a primeira (eficiência) como estrutura, a segunda (eficácia) como resultado ótimo, e a última (efetividade) como sua aceitação plena.
A característica fundamental de qualquer objetivo é a sua concretude. Claro que não falamos numa metafísica em que o objetivo da oração é ganhar os céus. Este é um campo que não importa no momento à nossa reflexão, embora saibamos que a eficiência (oração) pode alcançar resultados (salvação) em vista de objetivos meramente especulativos (alcance indireto do objetivo). Mas vamos nos prender aos objetivos organizacionais concretos, que não são poucos. Deste modo, visto o objetivo como um sistema, ele é somatório de muitos subsistemas. Mas, se o objetivo (sistema) é ou não globalizado (o todo maior que a soma das partes), isto é outra história...
Comecemos, pois, pela ideia de que qualquer objetivo deva ser concreto para que o resultado seja a sua contrapartida em igual concretude. Por exemplo, se você vai comprar um pão de dez reais, deve sair de casa à padaria com, no mínimo, dez reais. Se você levar mais dinheiro e for assaltado de caminho, em vez de perder somente o pão, perderá todo o alimento do dia. Se você levar menos de dez reais, não comprará o pão e voltará com as desculpas cabíveis, dentre elas a reclamação de que o preço subiu para onze reais, possibilidade, aliás, plausível na nossa turbulenta economia. O certo, então, é conferir antes o preço para levar o dinheiro medido e finalmente comprar o pão equivalente à medida: objetivo = resultado. Este é o mínimo exigido à transação, que, como se vê, não é um ato isolado, mas um processo decisório dinâmico.
Nem vou especular se o pão é para ser dividido por mais bocas que seu tamanho e seu peso. A suposição é a de que houve avaliação prévia para concluir que a partir do objetivo houve uma estruturação capaz de plenamente atingi-lo. Mas o comprador poderia apenas especular sobre a possibilidade de conseguir o pão gratuitamente, ou mais barato, partindo da ideia de ser ele capaz de convencer o padeiro a diminuir o preço. Ou diminuir o tamanho do pão para esticar o dinheiro. E assim partir à aventura de comprar o pão com menos de dez reais no bolso. Se ele conseguirá ou não, jamais saberemos, a não ser que aqui eu enverede pela ficção literária, já que faço uma alegoria para demonstrar que o objetivo deve ser planejado por meio de diagnóstico preciso e tão completo que possa garantir um resultado concreto. E para efetivar um diagnóstico preciso é necessário disponibilizar instrumentos vários de medição, dentre os quais a estatística.
Ora bem, quando vejo o ufanismo do sistema de segurança pública a comparar atuais índices de ocorrência de homicídio com períodos anteriores, transformando meio em fim, vejo-o como o faminto que vai à padaria sem saber o preço do pão, ou que pão comprará, ou mesmo se haverá pão; nem se importa se carrega menos ou mais dinheiro nas algibeiras. Depois volta em euforia para dizer que comprou um pão, mas não o desejado pela família. Enfim, uma aleatoriedade que funcionou à parte do seu custo/benefício: gasto de energia que poderia ser evitado se cada passo do caminho entre o comprador e o pão fosse antes medido. Deste modo, não houve eficiência, eficácia nem efetividade na decisão: o pão (objetivo) comprado não era o resultado esperado, o dinheiro em excesso poderia ter sido roubado e a família, em vez de se alegrar com o pão errado e aplaudir a compra, reclama da decisão aparentemente perfeita aos olhos de quem a concretizou a seu modo. Em termos de fixação de objetivo e de obtenção de resultado, nada funcionou, nem mesmo os mínimos anseios familiares.
Se estendido o raciocínio para a sociedade, fixar objetivos torna-se tarefa das mais complexas porque ela se desdobra em duas vertentes importantes: a) os anseios institucionais (anseios e valores da estrutura destinada ao fim colimado, somados aos anseios e valores das pessoas responsáveis pelas tarefas); b) anseios sociais (maior sensação de segurança como resultado esperado pela população-cliente). Enfim, pesquisa complicada. Não é fácil detectar simultaneamente o que anseiam os servidores públicos integrantes da estrutura (anseios e valores pessoais, familiares, profissionais etc.) em vista dos objetivos da própria estrutura com a paz social (anseios e valores sociais). Mais complexo ainda é identificar os resultados esperados por uma população cujos anseios e valores são os mais diversificados possíveis, tanto que os anseios e os valores dos moradores de uma rua podem ser diametralmente opostos aos dos moradores da rua ao lado. Como atender a tanta diversidade? Como fazer a fusão de tantos anseios e valores diferentes e por vezes conflitantes? E quando esses anseios e valores são de tal modo emergenciais que se enfiam num torvelinho tão misterioso como o intrigante buraco negro do cosmo imenso?...
Não é outro o desafio da segurança pública (estrutura) como função governamental. Ela atua dentro de uma turbulência ambiental que lembra os cataclísmicos tempos terrenos. Medir objetivos e apurar resultados numa situação de realidade tão aberrante não têm produzido mais que fracasso em meio a falseados sucessos brilhantemente generalizados por publicidade enganosa. Não vivenciamos segurança alguma, experimentamos uma insegurança descontrolada e a falsa impressão de que está tudo bem na superfície das estatísticas ufanistas apontando a queda de alguns crimes em relação a seus equivalentes ocorridos no passado.
Ora, ora!... São discutíveis esses números estatísticos e é absurda a importância que a eles é dada por uma imprensa comprometida com o sistema oficial. Não houvesse verbas publicitárias governamentais à larga, não creio que a mídia estaria acariciando tanto assim o governo. Porque é mui primário destacar estatística de simples contagem de homicídios ocorridos antes e depois, com a cautela de não divulgar quantos deles foram elucidados antes e depois, tendo seus autores e culpados singularizados com provas técnicas e entregues às barras dos tribunais.
Eis aí um objetivo concreto, capaz de apontar resultado concreto nos seus aspectos eficiência, eficácia e efetividade. Afinal o Inquérito Policial Civil, obrigatório na apuração de homicídios e de outros delitos, tem um objetivo concreto: singularizar autores e culpados de crimes e coligir provas suficientes para levá-los aos tribunais. Este é o fim da peça inquisitorial e o resultado ótimo é o seu alcance com eficiência e eficácia. Isto conquistado (eficiente e eficazmente) é só correr ao aplauso (efetividade). Por que não é feito?... Por que não se apura estatisticamente a elucidação de todos os delitos ocorridos nos ambientes geral, intermediários e específicos do território fluminense, inquérito por inquérito, mês a mês, ano a ano, órgão por órgão?... E não importa se o resultado não for favorável; importa, sim, conhecer esses dados para redirecionar o labor das duas polícias (Civil e Militar) no sentido de administrar melhor a insegurança pública, esta que, gostemos ou não, sempre subsistirá como ameaça à ordem pública e à paz social.

3 comentários:

Celso Luiz Drummond disse...

Os últimos números apresentados pela SSP/RJ foram rebatidos semana passada pelo site R7.com. Moradores da Zona Norte, também ligaram para a Rádio Globo para o Programa Se Liga Rio e denunciaram a fraude. Segundo eles os números apresentados não condizem com a realidade. O mesmo disse o pres. da associação de moradores de Copacabana quando entrevistado pelo JB ele chegou a dizer que também acreditava em papai noel e coelhinho da páscoa.
Os números estão sendo manipulados visando a reeleição do (des)governador Sérgio Cabral.

Anônimo disse...

Segundo o Dep Federal e ex Secretário de Segurança Marcelo Itagiba esses dados não são confiáveis. Diz ele:
De acordo com o cálculo artificioso da SSP/RJ em 2008 foram 5.717 homicídios e uma taxa de 34,7 hom p/ 100 mil hab. Em 2009 foram 5.794 homicídios e uma taxa de 34,6 hom p/ 100mil hab. Para que essa última taxa fosse verdade teríamos que ter uma população de 16.745.664 hab, quando na verdade segundo o IBGE a população do RJ era de 16.010.429 quando essa taxa de 34,6 seria na realidade 36,2, superior inclusive superior aos 34,7 de 2007.
Portanto, até as próximas eleições deveremos ouvir essa história de redução de criminalidade. Quem viver verá.

Neide disse...

PARA QUEM FICA EM CASA ASSISTINDO TELEVISÃO TALVEZ ACREDITE NESSA INSANIDADE DIVULGADA. QUE BOM SERIA SE ESSA ESTATÍSTICA TAMBEM CONTASSE COM OS INÚMEROS CASOS ATENDIDOS NAS EMERGÊNCIAS DOS NOSSOS HOSPITAIS, VÍTIMAS DE ASSALTOS, BALAS PERDIDAS, ESTRUPOS E TANTAS OUTRAS OCORRÊNCIAS NUM PERÍODO DE 12 HORAS DE PLANTÃO. REALMENTE A PALAVRA "ELEIÇÃO" TEM UM ENORME EFEITO ESTUFA EM DETERMINADOS ÂNGULOS. QUE BOM QUE TUDO ISSO FOSSE VERDADE E A MESMA SE PERDURASSE POR MUITOS E MUITOS ANOS. SONHAR É PRECISO!!!!!!!!