segunda-feira, 5 de abril de 2010

Era tempo do brizolismo...

Naquela época, os senhores coronéis da PMERJ andavam de opala azul, sentados no banco traseiro, lendo os jornais enquanto se deslocavam para seus quartéis. Formavam um conjunto interessante: farda azul combinando com a cor do veículo oficial, e às vezes o quepe na cabeça sublinhando a importância do bordado. Hoje não creio que algum coronel se arrisque a tanta ostensividade sem seguranças em torno de si, embora não recue ante ao perigo dos confrontos, prática que traz dos tempos de tenente em que já enfrentava os perigos das ruas.
Antes eram tempos românticos, sem dúvida, mas que marcariam o acirramento da criminalidade do tráfico por conta da deliberada omissão estatal em combatê-lo nas favelas, a pretexto dos “direitos humanos” dos favelados. A ordem governamental nem era tão tácita assim. Houve proibição explícita de helicópteros da polícia sobrevoarem favelas e discursos focando o direito de favelados ordeiros (maioria absoluta) não serem incomodados por operações policiais que pouco valiam contra os marginais e muito esculachavam as pessoas decentes. Cá pra nós, não havia lá muitos confrontos em favelas; não eram sistemáticos e dependiam mais da índole de cada comandante de unidade operacional que de política governamental determinando isso ou aquilo...
Mas proibir?... Medida polêmica, sim, porque havia lógica nela e na frenagem da “polícia do estado”, geralmente violenta, vício do cachimbo ainda mui enraizado. Por outro lado, os marginais também existiam e já estavam estruturados em bandos armados dominando comunidades carentes. Há quem afirme que o aprendizado dos bandidos se deu na ilha Grande, fruto do convívio de marginais com presos políticos...
Seria, talvez, um dilema governamental posto sobre a mesa do convívio social entre elite e massa: de um lado a necessidade de combater o crime que existia e atordoava cidadãos do asfalto e da favela; do outro uma polícia a amedrontar mais que proteger os favelados já aterrorizados por bandidos. Enfim, escolha entre duas alternativas ruins. Ganhou a omissão, que fez crescer o domínio marginal nas favelas da capital e circunvizinhanças: o Grande Rio.
Claro que o discurso de campanha da oposição ao brizolismo não poderia ser outro: promessa de ação em vez da omissão. O governante vencedor, na esteira desse discurso, foi Moreira Franco. O slogan era, em síntese, traduzido pela veemente promessa de “acabar com a criminalidade em seis meses”.
Perfeito! Perfeito! Discurso de campanha melhor não havia. Brizola não fez o seu sucessor e a polícia saiu do marasmo à ação. Mas a mudança de comportamento da polícia não ocorreu tão calmamente. Na PMERJ, os oficiais que abraçaram o brizolismo passaram a ser tachados de “bundões”, e devolviam a ofensa designando os que gostavam do enfrentamento como “fodões”. Criou-se o cisma que viria a render péssimos dividendos institucionais no período seguinte: a vitória do brizolismo e seu retorno ao poder com as mesmas peças “bundonas” agora vingativas.
A verdade é que nem todos os que atuaram servindo ao brizolismo eram “bundões”, e nem todos que combateram o crime na linha de frente do período moreirista eram “fodões”. Eram apenas oficiais que cumpriam ordens de avançar ou recuar. Mas o abismo entre as duas facções estava fortemente cavado e nada iria mudar intramuros dos quartéis. As retaliações foram aberrantes, e até os dias de hoje é possível verificar suas indeléveis marcas. Não há como negá-las.
Pior é que antes do brizolismo, em que o comando-geral era exercido por oficial do Exército, já havia, além de certa obscuridade operacional, facções internas oficialmente acomodadas em Quadros de Distribuição de Efetivo (QDE) em vista de suas origens históricas: “QE” (Quadro Especial – formado por oficiais que optaram por permanecer na PMDF por ocasião da inauguração de Brasília e da transferência do Distrito Federal para o Planalto Central e depois retornaram à PMEG; Q2 – formado pelos oficiais da extinta PMEG na mesma data de inauguração da nova capital federal; Q3 – formado por oficiais da extinta PMRJ a partir da fusão da GB com o RJ; Q1 – formado pelos novos oficiais pós-fusão). Ou seja, mistura heterogênea, junção hipócrita de facções disputando o prestígio externo para alcançar o poder interno. O resultado dessa “guerrilha” é a PMERJ de hoje...
Ocorre que, após o segundo período de omissão brizolista, a alternância da gangorra (omissão-ação-omissão-ação) tornou-se lugar-comum; e alcançou os tempos atuais, de tal modo que o governante do presente iniciou seu governo com o discurso da ação (enfrentamento), e depois recuou com mais elegância ao discurso da “pacificação”, fugindo assim da dolorosa pecha de “omisso”.
Com efeito, não há nenhuma omissão atualmente, assim como não se vê nenhuma ação a não ser como exceção. Hoje está melhor, assim como nos períodos anteriores de governo (Garotinho e Rosinha) houve importantes políticas de segurança pública voltadas para uma “terceira via”: Delegacias Legais, Jovens pela Paz, Cheque-Cidadão etc.
Deve-se reconhecer como “terceira via” as tentativas que desembocam nas UPPs, sem, no entanto, deixar de considerar que elas, as UPPs, são ainda inconclusivas em seus resultados. Ademais, pecam pela incapacidade de servir à população como um todo porque estão sendo implantadas apenas para criar uma espécie de cinturão de segurança em vista dos eventos desportivos internacionais: Copa do Mundo e Olimpíadas. Tudo bem! Que a causa das UPPs seja considerada justa, vá!... Porém não um “milagre governamental”, é muito cedo para cantar vitória!...


“O medo levou uma comerciante da Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, a deixar a comunidade. Identificada como Dona Lúcia, ela foi ameaçada por bandidos e abandonou a favela, na última quinta-feira. A mulher fechou o seu bar, na Rua Euclides da Rocha, nº 426, depois de receber um ultimato de um grupo de jovens, que não gostaram de sua aproximação com policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Eles compravam quentinhas no estabelecimento. A comandante da UPP, capitã Rosana Alves dos Santos, foi comunicada. No relatório da equipe que fez a ronda pela área, na madrugada de quarta para quinta-feira, os policiais citam as ameaças e a intenção de Dona Lúcia. Segundo Rosana, os responsáveis pelo crime são companheiros de Gilson da Silva Júnior, de 23 anos, preso há dez dias, acusado de ter roubado um caminhão de gás e agredido o motorista de uma distribuidora. Ele é apontado ainda como um dos responsáveis por ações de vandalismo em ruas próximas à comunidade, quando latas de lixo foram quebradas em protesto pela detenção de três moradores. Um grupo chegou a espalhar lixo pela Rua Tonelero.— Esses jovens fizeram as ameaças porque estão incomodados devido ao bom relacionamento dos moradores com os policiais. Eles não são considerados traficantes, mas vamos procurá-los para esclarecer a denúncia — disse a capitã. Santos afirmou ainda que há um carro da PM baseado no fim da Rua Vila Rica, próximo de onde fica o bar de Dona Lúcia, também conhecido como Toca do Zé. O ponto comercial, fechado por pressão dos bandidos, está localizado a cerca de 200 metros dos dois contêineres que funcionam como sede da UPP da Ladeira dos Tabajaras e do Morro dos Cabritos. A capitã vai procurar a moradora para dar as garantias de segurança e tentar convencê-la a retornar. fonte: Casos de Polícia – Extra.” (Blog falando a verdade - Segadas Vianna)

O importante disso tudo, e deixando as brigas políticas de lado, está na capacidade de a PMERJ se adaptar a tantas variações operacionais para atender a idiossincrasias tão extremadas. E aqui está o mérito da atual oficialidade. Os tenentes de ontem, que muitas vezes foram obrigados a avançar e a recuar, carregam na bagagem a experiência de rua que faltava aos senhores coronéis do passado, verdadeiros chefes militares que nem sabiam da existência de favelas e de bandidos dominando-as. Não era problema deles... Mas já era problema dos tenentes, todos desde cedo com o traseiro na gangorra, ora de um lado (ação) ora do outro (omissão).
Esses tenentes aprenderam muito nas ruas e nas salas de aula, e hoje não é exagero dizer que todos os oficiais superiores da PMERJ (todos, aliás, do Q1 – formado pela nova geração pós-fusão) receberam o “batismo de fogo” dos confrontos em favelas e outros lugares periféricos onde a criminalidade é mais efervescente. Seriam, em última análise, e concomitantemente, “fodões” e “bundões... Por isso a PMERJ um dia conseguirá atingir um ideal operacional, talvez nem tão rapidamente, mas chegará lá, claro que corrigindo erros e repetindo acertos em processo dinâmico. Não há de ser diferente, a modernidade é assim: construir para destruir; destruir para construir...
Sou otimista em relação ao futuro. Sei que a meritocracia interna ainda representa grave entulho. Há muitos oficiais competentes e esforçados em meio a outros distanciados do conceito e da prática. Estes, ruins de tudo, infelizmente, se confundem com aqueles outros por meio do mimetismo e da arte do proselitismo. Mas eles muitas vezes vencem os bons e alcançam o poder, ficando os verdadeiramente capazes numa posição inferior, o que é péssimo à evolução corporativa, com a ressalva de que não é o que ocorre atualmente: o bom comanda e o ruim assiste.
Na verdade, há ainda muitos “fodões” e “bundões” se digladiando em torno de prestígio e poder. Mas a vantagem é que os oficiais de hoje, malgrado os óbices e as disputas, são capazes de separar o joio do trigo, e, mesmo que algumas injustiças ocorram de caminho, fruto de desavenças pessoais insuperáveis numa corporação onde todos lidam com todos durante anos a fio, o final da história tende a ser positivo. Aos poucos, o Bem vencerá o Mal. O que não pode é haver retrocesso. Avançar é preciso, e nenhuma tropa avança sem contabilizar baixas. Que assim seja! Pior seria se as baixas fossem contabilizadas na derrota. Não creio nela. Aposto na nova geração, embora ainda forjada em meio a conflitos internos e reais batalhas nas ruas! A verdade é que eles aprenderam a administrar e a combater. Melhor que antes, quando se estava de um lado sem conhecer o outro, a viatura do comandante de unidades operacionais era um pimpão opala azul, e as PMDF, PMEG e PMRJ, tornadas PMERJ, – parodiando título de romance do mestre Deonisio da Silva (“AVANTE, SOLDADOS: PARA TRÁS), – continuaram cada qual sua trajetória solo, em mistura heterogênea, “avançando para trás”. Hoje, porém, as dessemelhanças são mínimas e a PMERJ, – entregue ao Q1 e por isso mais homogênea, – pode finalmente avançar ao futuro sem qualquer impressão, nem mesmo falsa, de recuo...

6 comentários:

Paulo Xavier disse...

Cel, confesso que desconhecia esse seu lado "guerreiro", (para não dizer fodão) citado em várias passagens no livro Cavalos Corredores, já que fui defenestrado em dezembro de 82 (véspera do Natal)e tive que cuidar da minha vida. Comandei Patamo por alguns anos e a pática me mostrou que, se o chefe partir na frente, sua retaguarda não ficará desprotegida, ou seja, todos avançam juntos.
Hoje vemos que a herança deixada pelo Brizolismo, no que diz respeito ao combate ao crime, foi nefasta para o povo fluminense.

Luiz Drummond disse...

Grande Emir,tudo bem?

Primeiramente parabéns pelo seu texto. Disse tudo, mostrou como a omissão governamental transformou o Rio na situação que vemos hoje.
Vale lembrar que a primeira guerra urbana que a mídia divulgou foi a do morro dona marta em 1987, quando Zaca e Cabeludo travaram uma batalha que durou uma semana aterrorizou o bairro de Botafogo.
Outro episódio importante foi quando o tráfico desafiou o poder do estado. No final do mês de maio de 1988, todos os jornais noturnos na época divulgaram a imagem da transferência do poder no tráfico na rocinha. Os marginais disparando suas metralhadoras do alto de uma laje da favela e curiosamente o último a saber foi o governador Moreira Franco que estava em Portugal.
Quanto as UPP's cada vez mais me convenço que a sua real função é impedir a invasão do morro por facções rivais.

Anônimo disse...

Este texto me fez lembrar do coronel que deixou cair seu quepe bordado em Vigário Geral, era brizolista se não me engano; o curioso é que o chefe do trafico passou a usa-lo. Será que sem uma intenção, é claro; passou ali por diante uma mensagem que o comando do estado era dos marginais?

Anônimo disse...

Este texto me fez lembrar do coronel que deixou cair seu quepe bordado em Vigário Geral, era brizolista se não me engano; o curioso é que o chefe do trafico passou a usa-lo. Será que sem uma intenção, é claro; passou ali por diante uma mensagem que o comando do estado era dos marginais?

Rose Mary M. Prado disse...

Rio de Janeiro, São Paulo são pólos industriais, atraem muita gente de toda parte do Brasil, mas não existe espaço para todo mundo. Muito menos emprego! O custo de vida é alto e a pessoa não consegue se manter. Se aglomeram nas favelas e vêem de lá o Luxo de um pequeno pedaço da cidade.
E dentro dessas favelas não existe mais o Estado Brasileiro, existe o Estado dos traficantes. Os bandidos não sentem medo do Estado, não acham que poderão ser punidos, e isso ajuda a piorar a situação!

Beijo grande para você, Emir.

Paulo xavier disse...

Esse fato citado pela Rose Mary no seu comentário é publico e notório em Macaé, onde moro. Aqui, muitos "forasteiros" não só engrossam a população das favelas, como criam outras novas. Com o advento da Petrobras em Macaé surgiram, mais de vinte, isso em três décadas. A população macaense mais que dobrou e o crime cresceu em progressões geométricas. Seria hipocrisia culpar as Forças Policiais pelo alto índice de criminalidade em Macaé.