sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Sobre a criminalidade e seus freios oficiais


Homo homini lupus est (Plauto – Asinaria – 254/184).





A criminalidade multifacetada e onipresente vem assustando a sociedade brasileira. As modalidades de crime se ampliam em velocidade assustadora. Para contê-las, a punição é a regra preferida, e as pressões midiáticas reduzem o fenômeno ao seu matiz sociopolítico (rotulação de crimes e agravamento das penas), privilegiando o Direito Penal e suas variáveis processuais, executórias de penas e de recuperação dos criminosos, tendo nos direitos humanos um suposto freio. Fixando-se o controle da criminalidade no Direito, desde logo o sistema de justiça criminal se prende à solenidade (distanciamento) das relações entre o sujeito e o objeto. O policial deve ser operador do Direito, de modo a preparar o processo para seguir o curso das penalidades programadas em ritos que transformam o sujeito numa espécie de Deus e o réu num mero objeto a ser apreciado em seus defeitos (mais) e qualidades (menos) sob a ótica da erudição jurídica.
Já nas dependências policiais, o cidadão infringente de alguma lei é introduzido como objeto. Ainda nas ruas, na verdade, sua conduta passa por avaliações subjetivas de policiais “conhecedores das leis” que se postam acima dos direitos e garantias individuais. A subjetividade desta relação policial-infrator não raramente se inverte em avaliações futuras, na solenidade dos ritos e em função de eloquências jurídicas que escapam daquele conhecimento inicial mínimo das leis pelas partes envolvidas (policial-infrator). E a sucessão de ritos solenes e de embates jurídico-judiciais põe o réu como coisa a ser julgada, e junto com ele está o policial, sempre contestado pela defesa em rito idêntico. Um teatro que não mais se desfaz na vida do infrator. Torna-se ele réu e permanece para o resto da vida marcado por no mínimo o preconceito pelo fato de ter sido réu, embora inocentado, não importa, réu é coisa a ser apreciada pelo sujeito. Sempre...
Quando se fala em mudança de modelo policial, em novas estruturas de segurança pública, os primeiros discursos e medidas emergem do mundo jurídico-legislativo. Daí as sugestões de acirramento das penas como forma de punir com mais eficiência e eficácia os criminosos contumazes, insistindo-se no erro histórico de o réu ser “coisa” a ser guardada a sete chaves. E o Direito se fortalece na sua complexidade, foge do conhecimento popular e passa ao largo da sociedade, que não decora suas regras, doutrinas e jurisprudências. E a sociedade se torna refém desses aplicadores do Direito, unidos como seres infalíveis e poderosos o suficiente para sê-los. Ao povo em geral só cabe assistir a isso e tentar se desvencilhar do sistema de vigilância e punição estatal que trata as pessoas comuns e ignaras como seres fundamentalmente maus a serem atalhados até quando dormem. Lembra os tempos sombrios da Inquisição.
A prática policial insere-se no Direito desde o primeiro momento da vida coletiva e da ausência do delito apenas como suposição de que está ausente porque a polícia está presente e sendo vista. É o que denominamos prevenção pela presença nas ruas e logradouros de uma polícia ostensiva (homens uniformizados e viaturas caracterizadas). Deste modo, o olhar do policial conhecedor mínimo do Direito Penal se projeta sobre (ou contra) o cidadão que ele, policial, pressupõe ser um potencial infrator. Quando não há um policial, há decerto uma câmera a filmar cada movimento dos cidadãos. Isto ocorre especialmente no trânsito, como fonte de lucro a eliminar a possibilidade de o usuário de veículo se distrair minimamente numa pista de rolamento; hoje, ao ultrapassar a velocidade astutamente permitida, a multa está garantida. Não há mais o policial para admoestar educadamente o cidadão distraído. Ele já se torna infrator (fonte de renda) e é grudado à teia da poderosa aranha inventada pelo Poder Público para lucrar, sob o singelo e falso pretexto de que assim o “protege” contra seus próprios excessos. O excesso não pertence ao particular. É privilégio do Estado.
Quando se fala em mudanças estruturais e conjunturais do aparelho de segurança pública, logo se nota nas propostas a intenção de seus operadores em reunir mais poder além do que dispõem. Isto se considerarmos um sistema de segurança pública abrangendo, no mínimo, o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia, o Sistema Carcerário, as Leis Penais e Processuais Penais e demais códigos e estatutos reguladores do comportamento individual e coletivo no contexto da convivência social. Pretendem esses organismos, mais conflitantes que convergentes, maior poder para si e seus membros. Esgotam-se, sempre, e de imediato, as possibilidades de se ampliar concretamente o direito do cidadão de não ser incomodado nem tocaiado pelo sistema de vigilância e punição. Mais grave ainda é assistirmos esses sistemas em solenes discursos reforçadores da dicotomia sujeito-objeto no seu sentido menos filosófico-humanitário e mais pragmático-desumano. E o tempo passa, e os conflitos se avolumam, e o poder representativo dos cidadãos (poder legislativo), atrelado aos demais poderes como a carroça se atrela às animálias, nem merece o maiúsculo de suas iniciais.
As teorias administrativas não são levadas em conta quando se trata de controle do crime. Cuida-se apenas de política e de poder voltados para o referido labor, ignorando-se o fato de que o crime organizado é também empresarial e compete com a “empresa estatal” destinada a vencê-lo no ambiente social (mercado): o sistema de segurança pública. Mas a ausência de visão empresarial no serviço público torna o sistema nada mais que um emaranhado de organismos disformes e dispersos em relação ao controle da violência e do crime. Não há objetivos comuns norteando o sistema. Todos agem isoladamente e não abrem mão de seus poderes, solenidades e ritos. Nem se lembram de que são servidores públicos. Enquanto isso, a sociedade clientelista sofre na própria carne as consequências de sua opção pelo estado interventivo e paternalista. Mas esse estado não a acaricia; antes, e a pretexto de atingir o delinquente, usa contra a sociedade a chibata por ela mesma ofertada em exagerado conformismo. No fim de contas, o estado é formado por homens, e homo homini lupus est.


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