sábado, 14 de fevereiro de 2009

Sobre a liberdade de discordar

“Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas. Havia solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.” (O Cemitério – Lima Barreto)



Discordar é preciso?...

O ser humano, como ente naturalmente individualizado e livre, tende a formular e emitir opiniões, porém sempre com a intenção de influenciar. Essa intenção, por sua vez, esbarra no outro para o qual a comunicação é direcionada, podendo ser aceita ou não. Se não, o debate se inicia e, dependendo do oscilar dos pratos da balança do poder a diferenciar ou igualar os interlocutores, o diálogo pode terminar em consenso, discórdia ou conformismo de uma das partes; nesta última hipótese, conforma-se a parte mais fraca: o nietzschiano “gado de rebanho”. Se, todavia, ocorrer a discórdia, e não houver a possibilidade de punição de um contra o outro para fazê-lo conformar-se, daí à inimizade é um pulo. Mas, em havendo o conformismo, o real sentimento do reprimido permanecerá no obscuro campo da dissimulação e tornar-se-á mal somático. Enfim, iniciada uma discussão entre duas ou mais pessoas, o assunto em si poderá levar ao consenso ou aos caos mental e físico.
A vida é feita de contrastes, e estes se iniciam no lar, no seio da família, fonte primeira de uma peculiar interação em que o pátrio poder se impõe sobre o descendente e dependente econômico, embora o escorrer do tempo, aliado a novas circunstâncias, possa inverter esta relação. Seja como for, é inegável que sempre haverá alguém tentando mandar e alguém resistindo a obedecer, e, quando obedece, ou é por concordância (caso raro) ou por imposição (mais comum). No ambiente familiar, na verdade, emerge a primeira socialização da criança, geralmente com predominância dos juízos de valor dos adultos, que vão impregnando a criança e assim forjando o seu caráter. Se ao fim e ao cabo de tudo o caráter for bom ou mau, isto é outra história (“O homem é naturalmente bom e afável, e a vida em sociedade o deturpa.” – Rousseau).
Na escola e na igreja a criança cumpre o seu papel social de aprender o que os “sabidos” lhe ensinam, e o fazem por meio de “sistemas educativos” bem-sucedidos e pelos velhos e usuais castigos, incluindo-se as ameaças de danação. E por aí segue a “lavagem cerebral” a forjar novas gerações obedientes e impregnadas de falsos valores. Lembra-me, quando criança, que eu só ingressava na escola pública se apresentasse a carteirinha carimbada pela paróquia a provar eu ter assistido o padre dizer a missa (em latim e de costas) aos domingos pela manhã. E lá se perdia a minha oportunidade de jogar bola com os moleques (Muitos aplausos para os índios, que respeitam suas crianças!).
Eia! Eia!... Adolescência! Rupturas! Direito à obrigatoriedade de votar! Hum!... Questionamentos no lar! Libertação dos dogmas ou aprofundamento deles! Aventuras! Irresponsabilidades! Cigarro, bebida, drogas! Acidentes automobilísticos, cadeira de roda, mutilação e morte! Enfim, a liberdade!... Liberdade?... Não! Não!... Hora de se apresentar ao serviço militar obrigatório, já o Estado interferindo no reenquadramento do rebelde aos juízos de valor esquecidos e às novidades das leis e normas. Hora do patriotismo imperativo, quando deveria sê-lo por livre-arbítrio ou pelo menos como antigamente, quando as crianças cantavam nossos belos hinos antes das aulas e os desfiles escolares eram um acontecimento marcante. E, enfim, vem a fase adulta, e com ela a imobilidade social, o pânico do jovem-adulto a se ver sem oportunidade no mercado de trabalho, com a namorada querendo noivar e casar... E acelera o problema engravidando... E o jovem-adulto com ela se embola em qualquer canto e de qualquer maneira... E, inevitavelmente, a criança nasce, e assim se inicia mais uma geração do grandioso e conformado rebanho: a boiama social favelizada.
É esse jovem-adulto, — de cultura mínima e sem chance de avançar nos estudos, — é esse jovem-adulto que engrossa o volumoso contingente a prestar prova para ser PM. A peneira é cruel: poucas vagas destinadas aos candidatos, zelo indiscutível dos selecionadores, e logo se inicia a nova fornada de recrutas que em pouco tempo estará policiando as ruas, não sem boa parte ficar pelo caminho no transcorrer do curso. Os que culminam aprovados, aí sim, se vêem ante mais um obstáculo árduo: vencer os bandidos e burlar a severidade do sistema; pois não é fácil ser policial e militar concomitantemente, e sem o direito de falhar. Como numa maratona, de cada turma formada no CEFAP não é significativo o número dos que vencem e vão em frente, vivos e saudáveis, até a inatividade: a miragem no deserto. E aqui se indaga: que condição possui um jovem-adulto, ou um velho-adulto, de discordar de alguma coisa? Que tempo ele possui para fazer valer dentro de casa seus juízos de valor agora perturbados definitivamente pelo ambiente social (piquete militarizado) no qual se lançou como gado de rebanho? O que sobrou do quê?... Discordar de quê?... Eis o servo do Estado pronto e acabado!... Ai dele!...
Toda essa divagação, leiga, diga-se de passagem, visa a demonstrar que a vida social é um processo que não se inicia nem termina na corporação militar estadual. Nós, PMs, somos resultado do sistema de formação de uma sociedade intrinsecamente opressora, calcada na cultura do senhor-escravo com os “capitães-do-mato” no meio a servirem ao “Senhor-Estado” e à “Senhora-Sociedade”, sentindo-se “senhores”, embora não sejam senhores de nada. E vão perseguindo seus iguais (os escravos fugidos) a soldo de um efêmero poder. Pois, na verdade, todos, — exceto os verdadeiros senhores da Sociedade e do Estado, — todos somos gado marcado, somos desprezíveis aos olhos dos históricos senhores, somos povoléu sem direito de ser ou ter. Mas logo aqueles que se sentem “senhores” tornarão à realidade da esquecida marca gravada a ferro que também carregam na anca; e morrerão rejeitados por ambos os lados (senhores e escravos), muitos sem conseguir reunir seis mãos a equilibrar o seu vai-volta até o cemitério mais próximo.

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