sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

RIO EM GUERRA - CRÔNICA DO SD PM COSME WESLLEY*

Nota de Emir Larangeira: trata-se de história real, ou de ficção, que retrata a cruel realidade enfrentada pelos PMS da PMERJ nos dias de hoje. O autor, Soldado PM com bastante vivência operacional, culmina por nos oferecer momentos de muita emoção com suas crônicas literárias de alto gabarito. Para mim é uma honra postá-las aqui!




 CONTO DE FARDA I
 
O tiro de fuzil cortou o ar como nenhuma lâmina por mais afiada que fosse seria capaz de tal feito.

Percorreu alguns metros em milésimos de segundos, veloz mesmo!

Atingiu com precisão e crueldade a cabeça do meu melhor amigo, bem do meu lado! Sinto o sangue e a massa encefálica do meu colega sair de sua cabeça e sujar todo o meu rosto e parte da minha farda! O pior cheiro do mundo, o cheiro da morte!

O sangue não é completamente vermelho! Está misturado com cérebro, tom rosa com textura pegajosa e quente! Está bem quente! O projétil, antes de sair de dentro da cabeça dele, fervera tudo como se fosse sopa feita em fogão de lenha!

Seu corpo cai de forma que os joelhos dobram para a frente; seu armamento cai junto ao seu corpo preso pela bandoleira; e ele tomba, sem vida, no meu coturno direito! Bem ali, na minha frente, sem cabeça, sem massa encefálica, apenas um corpo que alguns segundos atrás ainda tinha vida e agora não há o menor sinal dela!

Não é apenas meu colega de trabalho! Ele é meu melhor amigo! Meu irmão! Somos padrinhos de casamento um do outro!

Temos histórias, estudamos e nos formamos juntos! Minha mãe morreu e eu fui criado pela mãe dele, somos irmãos de criação!

Ele é meu único irmão na verdade. Eu o chamava de caçulinha! Meu irmão, meu caçulinha, agora está com parte de seu braço esquerdo sobre meu coturno, caído de frente para o solo, as pernas estão quase retas, sua cabeça não existe mais! Não quero acreditar que ele está assim, jogado aos meus pés e sem vida! Apenas um tiro desse calibre é capaz de fazer um estrago desses!

Esse tipo de armamento não é brincadeira! Explode cabeças, arranca os braços e deixa membros penduradas por fiapos de pele, que ao menor sinal de movimento termina a amputação cruel e devastadora que só um Fuzil calibre 762 é capaz de proporcionar!

É o bicho! Literalmente sanguinário e devastador! Atravessa trilhos de trem, paredes de concreto, causa medo só pelo barulho do disparo!

É um barulho único! Tão único como o rugido do leão dominante da selva!

Um estrondo abalador, que afeta o moral no combate, nos faz ter o dobro de cuidado! Sabemos que não existe colete capaz de segurar esse tipo de tecnologia ceifadora de vidas e mutiladora de membros! Onde acertar é lona, parceiro!

E foi exatamente isso, a lona, que olhei meu amigo caindo, sem cabeça! Eu estava paralisado, os tiros batendo perto de mim, de encontro à parede do meu lado direito!
Os estilhaços de projéteis e paredes, rasgavam a minha farda como papel, entraram na minha carne como faca na manteiga!

Eu não sentia nada, meu corpo estava dormente e eu não queria acreditar que aquele corpo na minha frente, com a cabeça aberta e nenhum vestígio de cérebro, apenas uma caixa craniana aberta e vazia, expulsando as últimas gotas de sangue que ainda restavam; não queria acreditar que "aquilo" era meu amigo, meu irmão!

Irreconhecível, nem a melhor maquiagem de filme de terror seria capaz de proporcionar tal cena! Aterrorizante!

Não é medo dos tiros que congelam todo o meu corpo! Não é isso! Não é medo de morrer e sim desespero de ter a certeza de que nunca mais vou ver aquele meu irmão com vida!

Eu sei disso, mas não quero saber! Brigo com meus instintos para não saber e isso é que me faz paralisar!

É uma briga que não se ganha! Por mais que você não queira, já aconteceu! A morte é a única certeza que temos da vida!

Ouço o restante da equipe gritar para que eu me abrigue, os tiros continuam acertando a parede do meu lado direito, os estilhaços continuam penetrando minha carne, me cortando e ferindo! Sei que preciso me abrigar, mas não posso deixá-lo ali!

Sempre prometemos, um para o outro, que juntos íamos trabalhar e juntos voltaríamos para nossas casas e para nossas famílias!

Num gesto de desespero, loucura e esperança, jogo meu fuzil para minhas costas, ajoelho, puxo o seu braço esquerdo e coloco em volta do meu pescoço; ergo meu corpo de forma que ele vem junto comigo, viro para direita de forma que eu fique de costas para os tiros e consiga proteger meu irmão para não ser mais atingindo,;abaixo e ergo seu corpo para jogá-lo sobre meus ombros!

Com o braço esquerdo seguro seu corpo sob meus ombros e com a mão direita eu saco a minha pistola PT 100, calibre 40, que não chega nem perto das rajadas dos fuzis Ak 47 que estavam atirando para cima da gente!

Minhas cordas vocais entram em erupção e começam a produzir um grito de ódio, dor, e novamente gritos de esperança; saio correndo atravessando a rua e atirando na direção dos vagabundos!
Começo a atravessar a rua, gritando, correndo com meu irmão nos ombros, e atirando contra os miseráveis traficantes!

Torço meu joelho e caio no meio da rua, meu irmão e eu, jogados no pior lugar possível, bem no meio da maldita rua, facilitando toda a mira que os traficantes tinham dele e de mim!
Os tiros que, antes atingiam a parede do meu lado, acompanham meus movimentos e agora atingem o chão, perto de mim e do meu irmão já sem vida.

Dois policiais avançam 20 metros na direção dos bandidos e trocam tiros frente a frente com eles, tentando desviar a atenção dos traficantes que insistiam em tentar nos mutilar com seus fuzis bem mais avançados que os nossos, com rajadas que parecem gargalhadas de filme de terror!

Outros três policiais correm até o meio da rua; dois deles tiram meu irmão das minhas costas e o outro me puxa pelo colete, me arrastando no chão até o outro lado da rua, onde efetivamente estaríamos seguros! Pronto, saímos do alcance dos tiros dos vagabundos!

O apoio chega juntamente com as ambulâncias! Os vagabundos correm quando percebem a quantidade de policiais que está chegando!

Os médicos descem das ambulâncias numa velocidade de colocar inveja nos melhores maratonistas!

Retiram dezenas de equipamentos em segundos, são sincronizados, e cada bombeiro sabe exatamente o que fazer! É uma arte, eles são bons!

Mas nem a melhor arte do mundo seria capaz de mudar os semblantes dos rostos dos bombeiros quando eles veem meu irmão!

Eu sei que eles querem ajudar, mas precisavam falar que não tinha mais solução!
Eles não conseguem dizer isso, sabem que a dor é grande!

Um dos bombeiros, meu amigo, vem até mim, não fala nada, me abraça, fica uns segundos dessa forma, e eu ouço um "Sinto Muito, parceiro"!

Eu os entendo, não têm o que falar! É difícil para caralho!

É foda, parceiro! Ser Policial no Rio de Janeiro é foda!

Que Deus o tenha, irmão! Um dia iremos nos encontrar! Foi uma honra viver e combater ao seu lado! Em breve estaremos juntos


História fictícia
*Autor: SD Cosme, Adm. da página Policiais Operacionais


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