terça-feira, 14 de abril de 2015

RIO EM GUERRA LIV


“O mundo está perigoso para se viver! Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta de que não viram.” (Albert Einstein)

Muitos leitores me questionam quando critico o que entendo como falhas do sistema de segurança pública no RJ, geralmente me cobrando o porquê de eu não as ter consertado no meu tempo. Coitado de mim!... Uma andorinha só não faz verão... Não tive poder para tanto. Mas como atuei por longos anos como instrutor de cadetes, graduados e praças (Armamento e Tiro, Instrução Policial Básica Individual e Emprego Tático de Unidades Especiais) na antiga Escola de Formação de Oficiais (EsFO) e na Cia Escola de Recrutas da PMRJ (Cia Es), além de ter sido instrutor de Defesa Civil na ESPM da PMERJ (Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais – CAO – para capitães), sinto-me habilitado ao debate.

Eis porque insisto em participar, só pensando e escrevendo, pois é só o que me cabe como missão neste andar da carruagem de onde já vislumbro minha última estação. Mas, enquanto ela não me alcança, nem eu a alcanço, vou jorrando ideias na esperança de vê-las lidas por muitos amigos visitantes deste blog. Se são aceitas, ou não, é outra história...

Todavia, a quem indaga costumo responder que naqueles tempos de serviço ativo o lado de fora não era muito diferente do de hoje, exceto quanto grau de violência, atualmente muito mais grave devido ao uso indiscriminado de armas de guerra, tanto por bandidos como por policiais, sempre em meio a indefesas populações faveladas. E não por acaso foi exatamente no meu tempo, e durante meu comando à frente do 9º BPM, na Zona Norte da Capital do RJ, que foi apreendido na Favela de Acari o primeiro fuzil de guerra na sua versão civil denominada AR-15. A versão militar era denominada M.16, fabricada pela COLT norte-americana para atender às necessidades do Exército dos EUA no Vietnã, segundo o que especialistas comentavam largamente na mídia.

A apreensão do fuzil AR-15, que se deu em novembro de 1989 (eu jamais antes vira um), foi tão inusitada que gerou matéria até no The New York Times. Atropelado pela imprensa que celeremente acorreu ao 9º BPM, vi-me obrigado a me manifestar e declarei que não dava para a polícia enfrentar traficantes armados com fuzis como o apreendido. Creio, porém, que parte da imprensa me interpretou errada ou maldosamente, noticiando como se eu tivesse demonstrando medo, com uma repórter até insinuando que eu estava “jogando a toalha”.

Muito bem, talvez a insinuação da jornalista tenha sido consequente de incidente anterior, na mesma favela, que quase encerrou a minha cláusula contratual com a vida: um tiro de fuzil endereçado à minha cabeça, mas que acertou a parede uns 50 centímetros acima dela, no exato momento em que eu era entrevistado por equipe da TV GLOBO, com tudo aparentemente dominado.

Não estava!... O susto fez a repórter e o cinegrafista irem ao chão atabalhoadamente, enquanto eu corria em zigue-zague na direção de onde viera o disparo com a intenção (frustrada) de alcançar o maldito atirador. O projétil atravessou a fraca parede e desapareceu, mas todos os PMs que me acompanhavam apostaram ter sido tiro de arma nacional, talvez de FAO, não se sabe, não localizamos o projétil...

Portanto, eu não joguei nenhuma toalha, apenas antevi o sombrio futuro dos confrontos entre policiais e bandidos, aparentemente restritos até então ao uso corriqueiro de metralhadoras, escopetas, pistolas e revólveres, armas de menor alcance, porém não menos letais e igualmente capazes de produzir vítimas entre civis inocentes. Enfim, tudo acontecia como hoje: morriam bandidos, policiais e moradores de favelas em constantes tiroteios. Só na área do 9º BPM ocorriam em média trinta tiroteios mensais entre policiais e marginais, ou seja, um por dia, com muitos ferimentos e mortes contabilizados. E se já era assim com armas, digamos que “obsoletas”, não me foi difícil supor que o acréscimo do fuzil estrangeiro ao arsenal dos bandidos e dos policiais produziria bem mais estragos, como de fato ocorre atualmente.

A evolução desta específica violência decorrente do uso indiscriminado de armas de guerra deu-se em rápido processo. Nem trinta anos escorreram para se chegar à situação de hoje, tendente a piorar, em especial porque não existe no Brasil uma política de segurança pública que especifique claramente os deveres e as responsabilidades do Estado (nos seus três patamares: União, Estados-membros e Municípios) e da Sociedade. Tanto é assim que o atual prefeito do Rio de Janeiro, ignorando a Carta Magna, talvez por ser ela ainda dúbia, declarou e reiterou na mídia que a prefeitura construir sede de UPP é “favor”. Ora, não é favor algum, é dever, porém mal definido a partir da própria Lei Maior, que precisa rever a segurança pública desde o seu Título IV, deste modo grafado: “Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”.

Enfim, o que a Carta Magna sugere é a defesa do Estado e de suas Instituições e não a proteção da Sociedade e do Cidadão no contexto amplo da Ordem Pública, que é objeto da Segurança Pública, sendo esta a garantia estrutural daquela. Talvez a imprecisão conceitual da Ordem Pública responda pelos erros conjunturais e estruturais da Segurança Pública como sua garantia. Isto representa uma cruel contradição, pois a União mantém o comando constitucional da Ordem Pública, mas não assume o seu posto nem permite que os Estados-membros e Municípios o façam, como se pode depreender do Inciso XXI do Art. 22 da CRFB: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares;”

Tal preocupação da União não ocorreu com as polícias civis. Somente as Polícias Militares são atreladas ao freio constitucional por serem elas Forças Auxiliares do Exército, espécie de “reserva técnica” em vista de hipóteses remotas de Defesa Interna e de Defesa Territorial. Enfim, ambas tão distantes da realidade atual que estão num horizonte a perder de vista. Mas enquanto a carroça estatal da segurança pública permanece estagnada, os velozes carros do crime avançam desenvoltamente. Para tanto, conta com dinheiro a rodo, mão de obra à vontade e armas de todos os mais afamados fabricantes mundiais, sem obstáculos aduaneiros e sem temor de punição. Já a polícia sofre para adquirir armas à altura das utilizadas pelos bandidos, porque depende de autorização da União (entenda-se Exército Brasileiro), que muitas vezes não acontece, a ditadura militar ainda tem seu peso neste importante segmento de defesa da sociedade, que não pode ser fortalecido em vista da possibilidade de se voltar para fins “subversivos”. Ora!...

Mas como a necessidade pressiona deveras, a polícia acaba recebendo armas de guerra, muitas tomadas de bandidos e outras compradas em redobrado esforço, tentando assim, pelo menos, uma igualdade de forças. Impossível! Há mais bandidos que policiais; eles estão hierarquizados tais como as organizações policiais, civis ou militares; ocupam territórios populosos (favelas), que se tornam autênticas cidadelas só faltando muralhas. Mas estas existem, embora invisíveis, como se constata agora no Complexo do Alemão, local em que os traficantes traçaram uma linha imaginária a partir da qual atirarão nos PMs para matar. Pior é que o container da UPP está dentro do círculo imaginário, tendo os PMs que permanecer numa espécie de garagem, fora da linha, parecendo tudo muito surreal.

Claro que na minha época havia limitações semelhantes, havia barreiras de concreto fechando as ruas das favelas, enfim, o mesmo de hoje. E havia também territórios favelados considerados inexpugnáveis, como era caso de Vigário Geral, cuja fronteira era a via férrea. A partir desta, e até a orla da baía de Guanabara, era território proibido à polícia. Entrar era tiroteio na certa. Claro, também, que entrávamos mesmo assim e muitas vítimas tombavam de lado a lado. Tal como hoje, o que significa que nada mudou no “quartel de Abrantes”...

Este é o problema: muitos confrontos desde trinta anos atrás e nada mudou a não ser para pior. Pois o que vemos são políticos enganando o povo com inovações nada mais que “cosméticas”. Sim, nada mudou a não ser para pior, confirmando que a carroça estatal não pode vencer a corrida contra os velozes carros do crime. E se o problema persiste, qual seria, por conseguinte, a solução?...

Acirrar a repressão policial?... Recuar?... Descriminalizar o uso de drogas?...

Como o mundo é feito de opostos, que fique no ar a ideia!...






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