“199 –
Entendendo que, desde que há homens tem havido também rebanhos humanos (clãs,
comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas) sempre muito obedientes
relativamente ao reduzido número de mandatários – entendendo, portanto, que a
obediência foi até agora melhor e mais longamente praticada e cultivada entre os
homens, é natural admitir-se que, de modo geral, cada um possui presentemente a
necessidade inata de obedecer (...). Nesse sentido, de acordo com a sua
intensidade, impaciência e tensão, como apetite grosseiro sem critério de
escolha, aceitará tudo o que lhe grita aos ouvidos qualquer dos que comandam,
sejam eles pais, professores, leis, preconceitos de classe, opiniões públicas
(...). 201 – (...) Na história da sociedade há um ponto de fadiga e
enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica, pelo
criminoso, e o faz a sério e honestamente. Castigar! Isto parece-lhe injusto de
algum modo, mas o certo é que a idéia de ‘castigo’ e do ‘dever castigar’ lhe
dói, lhe mete medo. ‘Não basta tornar o criminoso inofensivo? Para que castigar ainda? Castigar é horrível!’ Fundado
nestas inquirições, a moral de rebanho, a moral do receio vai até às suas
últimas conseqüências (...).” (PARA ALÉM DO BEM E DO MAL – PRELÚDIO A UMA
FILOSOFIA DO FUTURO. Friedrich Nietzsche. Editora Martin Claret – 2004)
Na conversa “Entre
Santos”, narrativa (Conto) do mestre Machado de Assis, ele diz: “O mundo não vai além
da superfície das coisas.” Poderia ele acrescentar, pondo também na boca de um
dos seus santos-personagens, que neste nosso mundo a “superfície das coisas” é
pintada com a tinta da falsidade por aqueles que detêm o pincel do poder e a
chave do cofre. E a nós, pobres mortais, incautos e demasiadamente crentes, cabe
recolher ao cofre nossos impostos até que a morte nos alcance e leve com ela
nossa vã esperança.
Porque só recebemos
migalhas como contrapartida do que contribuímos, e o resto é roubalheira
indecente e meteórica, esta sim, que mais interessa ao poder sustentado pelo
mesmo cofre que abriga nossos tributos. É o que assistimos no transcorrer da
“operação lava-jato”... E é nela, como se fora “mangue” (cabendo-lhe aqui múltiplo
sentido), que algumas poucas autoridades públicas mergulham a tentar fisgar os
ladrões. Mas retornam rápido à “superfície das coisas” na pressão inversa da impenetrável
sujeira do que poderia ser uma grande fossa séptica tupiniquim.
Sim, vivemos
num mundo apinhado de seres enfeitados, autênticos sacripantas a disseminar na
mente do povoléu ignaro suas falsidades, enquanto compram mais enfeites gastando
generosas fatias que surrupiam de nossas exauridas algibeiras. Daí ser o mundo
somente feito de aparências, de mentiras bem postas, de gestos teatrais, de
sutilezas e malícias, que tornam o inverossímil a mais absoluta verdade. Sim,
sim, mundo de pessoas que se gabam do passado, mas o passado as condena não
pelo roubo da chave, mas do próprio cofre já cheio de coisas roubadas (“ladrão
que rouba ladrão tem cem anos de perdão”).
Portanto,
não se é de estranhar que assim seja o mundo. No fim de contas, seus habitantes,
desde os remotos tempos, foram vencidos pela preguiça intelectual e sempre ansiaram
pelo badalar do sino a lhes guiar do nascimento à morte. Com efeito, é assim a coletividade,
feita de mentes vazias e de corpos pedindo favores a qualquer preço, pois
precisam do alimento fácil, das vestes feitas por máquinas, e dos demais
recursos materiais que independem do pensar profundo. Porque tudo está a m ais
e mais posto na “superfície das coisas”.
E se a
miséria não nos bastasse, e se não nos tomasse de espanto a violenta e
incontrolável criminalidade, e se o Estado representativo da sociedade já nasceu
finório desde os tempos coloniais, e se as sanguessugas hodiernas não fazem por
menos e devoram tudo que lhes vem adiante, melhor então lembrar Cecília
Meireles: “Vede os pequenos tiranos/que mandam mais que o Rei/Onde a fonte de
ouro corre/apodrece a flor da lei.”
É o que
vemos em espanto: tudo podre, pessoas e coletividades, dentre as quais muitas
autoridades públicas (“pequenos tiranos”) que deveriam cuidar da “fonte de
ouro”, mas não o fazem! E sentimos vontade de mergulhar no pântano para cortar
as raízes de todos os lírios e o pescoço de todos os ladrões, para que estes não
mais nos enganem dissimulados na beleza e no perfume da flor. Sim, junto com os
lírios florescem os ladrões que desfrutam dos cofres públicos enquanto o povo
passa fome. Ainda assim, quando apanhados, coisa rara, gozam de tantos
privilégios que o tempo escoa e eles morrem antes da punição.
Enfim, os
ladrões não são punidos, recebem o bônus da “doença psiquiátrica” a justificar seus
descarados roubos. E deste modo permanecem na lama, tais como seus iguais que
fingem aceitar a falsa doença e não os punem. Afinal, os que os deveriam punir
fazem parte das mesmas profundezas fétidas, do mesmíssimo “mangue”, todos a
esbanjar lindas vestes e belas gravatas floridas ante os olhos atônitos dos
pagadores de impostos, desgraçados, que não têm poupança, nem conta no
exterior, nem dinheiro no colchão, nem nada...
... E os
santos descem de seus lugares na igreja e conversam. Na verdade, atônitos como
nós diante da avareza, da cobiça e da hipocrisia do ser humano. E retornam
silenciosamente aos seus nichos, e se dedicam à reza como última esperança de
um mundo melhor. Façamos então como eles: rezemos, porém ao nosso modo
poético-irado-irônico:
BALADA DO MANGUE
(Vinicius de Moraes,
1913-1980)
Oxford , 1946
Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Luœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilinguidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!
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