Não obstante o fato de serem os comandantes-gerais da PMERJ e do CBMERJ homens justos e corajosos, e de as Corregedorias Internas das respectivas corporações serem formadas por profissionais íntegros, as punições administrativas intramuros, numa alegoria nem tão forçada, poderia ser comparada mais ou menos ao Ministério Público ou à Justiça denunciando, processando, julgando e punindo crimes em suas sedes.
O ideal seria existirem na PMERJ e no CBMERJ Tribunais Disciplinares nos Comandos Intermediários (com estruturas semelhantes às dos Conselhos de Sentença da AJMERJ), com as Corregedorias Internas na função acusadora, tais como ocorre no lado de fora, ou seja, formando partes independentes, com os julgamentos abertos à imprensa, aos familiares dos acusados e a quaisquer cidadãos interessados. Esses tribunais seriam nomeados pelos comandantes-gerais conforme o posto do acusado, respeitando-se os preceitos hieráquico-disciplinares.
Não me atenho a nenhum fato em si (administrativo e judicial) nem ao que ocupa o pódio do “castigo-espetáculo” (a recente ameaça de greve). Preocupa-me, sim, o formato do sistema punitivo a desatender à função, pondo os comandantes-gerais na incômoda posição de detentor da primeira e da última decisão, abraçando-se a uma cultura inquisitorial tal como nos remotos tempos, e em seguida jorrando o resultado como se fora “fumaça” de secretíssima eleição papal. A paradoxal situação inspira-me trazer à reflexão geral um velho texto meu, seguido de magistral conto do mestre Machado de Assis:
JULGAMENTO
"A versão brasileira da organização formal do sistema de júri é um bom exemplo de como uma instituição democrática popular e igualitária transformou-se pela cultura jurídica numa instituição autocrática, hierárquica e elitista." (Roberto Kant de Lima)
O cenário do júri já montado, as personalidades em seus respectivos lugares: sete jurados, mui dignos representantes da formal sociedade, todos em tronos soberbos postados lateralmente ao juiz e ao promotor, estes, porém, entronizados no mais alto lugar do solene ambiente e ombreados em imponentes cadeiras, que, em estilo, remontam aos idos Del-rei.
Na outra lateral está o advogado de defesa, quase que ao nível do chão; e, por fim, o réu, figura central da solenidade, sentado em cadeira comum, no patamar mais baixo de todos e com os olhos cosidos no soalho, queixo colado ao peito, mãos entrelaçadas em meio às pernas, os pulsos algemados (mesmo que não estejam, parece que estão por força do hábito), pés calçados com sandálias deformadas pelo uso.
Assim fica o réu, isolado em sua cadeira, diante do juiz, ele bem cá embaixo e o juiz e o promotor bem lá em cima, como se fossem ambos quatro mãos segurando um só martelo em posição de bater num insignificante prego. O nosso réu, para variar, é negro, pobre, roto, esfaimado, não é nada mais que prego social.
Atrás, nas arquibancadas, vê-se a entusiástica platéia, como aquela dos tempos romanos das arenas e dos leões, uma platéia previamente selecionada, todas as pessoas recrutadas por algumas prestigiadas ONGs em razão do limitado espaço a ser ocupado. Mais acima, no privilegiado camarote, os repórteres voejando como aves de rapina sobre a presa.
Pronto, estão todos superpostos e em posição de combate, com o réu reduzido a apenas um ponto negro e insignificante no centro da arena. É hora de começar o espetáculo! Que sejam soltos os leões! Ó respeitável público! Luzes, câmeras, ação!...
O juiz: Qualificado o réu, Manoel Pedro da Silva, negro, sem profissão, endereço incerto e não sabido. Lida a denúncia, ouvida a única testemunha, feito o relatório, tudo conforme a magnânima lei, dê-se início ao julgamento do famigerado réu pela acusação de tentativa de homicídio. Com a palavra a insigne acusação.
O promotor: Meritíssimo senhor doutor juiz, magnificentíssimos senhores jurados, lídimos representantes da sociedade, vox populi vox Dei!...
1º jurado (pensando): "Que eloquência! Que frontispício! Que citação de abertura! A voz do povo é a voz de Deus! Eu sou a sociedade, a voz do povo, a voz de Deus! Que homenagem bem posta! Esse garboso jovem deve ser de importante família de juristas, é certo que deve..."
O promotor: Estamos aqui, longânimes senhores jurados, neste sagrado espaço da Justiça, para vos sugerir a condenação deste contumaz criminoso, como um dever cívico de todos nós. Como lídimo representante do Estado e guardião das leis e da sociedade, peço-vos desde já a punição do réu à pena máxima pelo crime que ele cometeu, pois assim é que tout est bien quui finit bien...
2º jurado (pensando): "Que capacidade de síntese! Que erudição! Saiu do latim para o francês como quem passa de uma sala a outra! Tudo o que termina bem, está bem! Que inferência! Este belo rapaz deve ter estudado na Sorbone..."
O promotor: Magnificentíssimos senhores jurados, o Estado tem a certeza de que o réu é culpado. A vítima, uma nobre e indefesa senhora de oitenta anos, não teve qualquer dúvida em identificá-lo. É certo que a defesa apelará para a falsa idéia de que a vítima usa óculos de grau, que era noite fechada, que esquecera os seus óculos em casa, entre outras falácias e sofismas. Não acrediteis! Uma pessoa tão lúcida, tão inteligente, e de tão boa estirpe, como a senhora vítima, nunca se enganaria ou se prestaria a ser imprecisa. Também é certo que a defesa de Manoel Pedro da Silva apelará para a alegação de erro de pessoa, como já insinuou no processo. Apelará, é certo, para o in dubio pro reo... Um mero sofisma, pois certo é que in dubio pro societas. Por isso, não acrediteis nas lucubrações da defesa! Nós somos o Estado e a Sociedade unidos contra o mal que nos assola. Tenhamos, pois, o máximo de cautela contra esses argumentos de falsas dúvidas em favor do réu, que certamente virão...
3º jurado (Mulher nova – pensando): "Que elegância! Que terno alinhado! Que pão! Que bonitinho! Que cabelo bem arrumado! Será que ele tem namorada?..."
O promotor (alçando catedraticamente a mão esquerda, e assim brilhando o seu belíssimo anel de grau, presente do pai na formatura): Como vos estou a dizer, nobilíssimos jurados, a verdade, somente a verdade estamos aqui expondo. E ela é somente uma: o réu é culpado! E deve ser condenado! Não vos digo isto apenas em razão de gratia argumentandi, mas por certeza de sua culpabilidade. Credes, veneráveis membros da sociedade, horribile dictu é que o réu é o indiscutível autor do crime. Mas o dever do Estado é o de punir os criminosos, sine ira et studio. Assim o faço, desde que iniciei minha brilhante carreira, vitam impendere vero...
4º jurado (pensando): "Que irresistível intelectualidade! Que discurso! Que citações! Horrível de dizer, mas sem cólera, nem favor! Isto é que é consagrar a vida à verdade! Quem me dera ele fosse meu filho!"
O promotor: E mais vos digo, excelentíssimos senhores jurados. Aqui, a prova testemunhal, trazida pela ilustre vítima, e a firmeza desta não menos eminente testemunha em identificar o réu como criminoso, não permitirão à defesa a sofística arguição do to be or not to be: that is the question.
5º jurado (Mulher velha − pensando): "Que maravilhoso! Ser ou não ser, eis a questão! Que lindo! Que menino bem-apessoado! Quem dera que eu fosse a sua mãe! Que orgulho ela deve ter desse filho!"
O promotor: Vejais bem, veneráveis jurados. Que o criminoso atentou contra a vida da nobilíssima senhora vítima, não há dúvida. Mas a defesa vem alegando que ele não foi ele, que seria impossível sua identificação por parte da vítima, que negros no escuro se confundem... Assim, deste modo grosseiro, tenta a defesa, sem outro argumento mais consistente, desculpar o réu. E, pior, o réu não quer confessar que atentou contra a vítima e muito menos quem o mandou executar a terrível empreitada criminosa... Pois é certo que o homicídio foi encomendado. Também tentará a defesa, como já vem tentando, desmoralizar o testemunho do ilustríssimo doutor que acompanhava a vítima no momento do atentado, sob a singela alegação de que tão nobilíssimo cidadão não poderia identificar, com a precisão que o fez, o criminoso, por não enxergar bem. Sim, venerabilíssimos jurados, apelará a defesa para o testis unus, testis nullus. Mas estamos atentos a isso, e espero que os senhores e senhoras também o atenteis.
6º jurado (pensando): "Que rapaz ex professo! Este conhece a fundo a questão! Que capacidade de antecipação! É lógico que o testemunho é único, mas pesado a ouro de sapiência e de credibilidade... E que posturas e modos de se nos dirigir a palavra! Se me fosse permitido, eu o aplaudiria entusiástico e de pé!"
O promotor: Sim, magnificentíssimos senhores jurados. Culmino a minha acusação com a convicção de que o criminoso daqui não sairá impune. Estamos diante de um caso que nos permite declinar a máxima et crimine ab uno disce omnes. Por esse crime particular, pode-se imaginar que em outros crimes esse réu ainda poderá cometer! Deixamos claro o quis, quid, ubi quibus auxillis, cur, quomodo, quando. Não há mais que fazer, a não ser aguardar, sereno, que o réu receba o castigo que merece, em respeito à ilustre vítima, ao Estado e à Sociedade, esta que aqui está tão bem representada pelos nobilíssimos senhores jurados, eis que vox populi vox Dei.
7º jurado (pensando): "Que espetáculo à parte a acusação! Que citação probatória apropriada: quem, quê, onde, por que meios, por quê, como e quando... Duvido que o reles advogado tenha entendido tão solene latinização... e muito menos o réu... Duvido que o pobre-diabo do advogado de defesa do réu, aqui e hoje, consiga alguma coisa. E que elegância do promotor ao apontar o réu! Que gesto magnânimo! Se ele nada falasse... só em apontar o réu como culpado, da forma como o fez, para mim seria suficiente."
O juiz (cumprimentando efusivamente o promotor, agora retornando ao seu assento, ao lado do juiz, lá no alto): Que a defesa ocupe a tribuna e inicie a sua parte!
O advogado: Senhores jurados, serei breve. Estamos aqui para julgar um réu injustamente acusado. Quem está qualificado nos autos é Manoel Pedro da Silva, que na data dos fatos teria atentado contra a vida da vítima. Quero-lhes acrescentar apenas dois argumentos, simples argumentos, bem simples mesmo: o réu que aqui está sendo julgado não é Manoel Pedro da Silva. O seu nome verdadeiro, de registro oficial, em cartório, é Pedro Manoel da Silva. Também as digitais constantes na ficha referente a Manoel Pedro da Silva não conferem com a do réu. Em resumo: um não é o outro! E, para encerrar, juntei no processo a prova de que o réu estava na Bahia na data dos fatos. Portanto não poderia, nunca, estar aqui no Rio, e muito menos atentar contra a vida de ninguém! É só o que lhes tenho a dizer, além de discordar de tudo aquilo que o promotor eloquentemente salientou, que não corresponde à verdade dos autos e nem à realidade dos fatos. E lhes reafirmo: o réu é negro, e não poderia ser reconhecido, à noite e no mais completo breu, por duas pessoas idosas e que sabidamente enxergam mal. Mas nem precisava apelar para estes argumentos para defender o réu. Pois é certo que o criminoso não é ele!...
Os sete jurados (pensando em uníssono): "Que coitadinho! Que malsucedido na profissão! Com essa roupa puída e deselegante, − e com esse discurso sem vida e despido de intelectualidade, − que pretende esse advogado aqui? Isto é até uma afronta ao meu juiz e ao meu promotor! E que relógio incompatível! Como esse advogado teve a petulância de vir para cá com esse relógio de borracha no pulso? Que cabelo malcuidado! E nem barba fez! Será que tomou banho, pelo menos? Ah, que mau gosto!"
O juiz (sem dar a mínima para o advogado): Que os senhores jurados se retirem à sala secreta, para a votação!
(Pausa de meia hora, retorno dos jurados)
O juiz: Por decisão unânime dos soberanos jurados, o réu foi considerado culpado! Farei a leitura da sentença reprovadora de sua conduta criminosa. Ele deverá ser recolhido à cadeia pública.
Feita a leitura, recolhido o atônito réu, enquanto o promotor dá entrevista à imprensa, sorrindo, vitorioso. Os jurados, discretamente, se retiram para as suas residências, na Zona Sul, com a certeza do dever cumprido. Fecham-se os panos do cenário de mais um inocente, − negro, pobre e sem nome, − na cadeia, como nos velhos tempos... Abrem-se os panos dias depois, ao segundo ato. E nele surge um corpo caído ao chão, inanimado, o sangue escorrendo em torno dele. É a distinta senhora que acaba de ser assassinada pelo verdadeiro criminoso, este que veio consertar a falha anterior...
SUJE-SE GORDO!
(Machado de Assis)
UMA NOITE, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.
– Fui sempre contrário ao júri, – disse-me aquele amigo, – não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes.
O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.
Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.
Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele!
Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando.
Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, – proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, – chamava-se Lopes, – replicou com aborrecimento:
– Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.
– Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.
– Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer Sujar-se? Suje-se gordo!
"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada.
Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.
Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.
Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.
– Como se chama? – perguntou o presidente.
– Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.
Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim.
Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.
Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito. Os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu.
Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes. Os gestos contrários do outro acusado.
O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.
Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico:
"Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.
Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!"
Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.
2 comentários:
A propósito da posição das partes nos julgamentos, parece brincadeira, mas olha só...até o Supremo está metido nisso! Notícia de ontem.
Desculpem-me, mas estou aqui colando o texto que deveria estar no meu comentário anterior. Monnerat
Extraído de: Associação do Ministério Público do Maranhão - 15 de Março de 2012
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