sábado, 11 de fevereiro de 2012

A lógica cruel do militarismo estadual


“(...) Que as alegres canções dos trovadores eram sufocadas pelo barulhento tilintar das armas, que as festivas passeatas com tochas eram substituídas por marchas guerreiras para os campos de batalha, e que os exuberantes jovens, no verdor da mocidade, eram chamados às armas pelo sino de guerra, para dar suas vidas pela Igreja ou pela coroa, pela honra do senhor feudal ou pelo orgulho dos burgueses.” (René Fülöp-Miller – Os Santos Que Abalaram O Mundo)}.

A sede de poder e riqueza, de um lado, e a necessidade de defesa contra as investidas dos sedentos fez nascer o militarismo e suas regras hierárquicas extremas. A mais gravosa era a pena de morte, que acontecia também durante a paz em muitos casos considerados incompatíveis com a cega obediência à hierarquia e à disciplina num sistema obrigatório de convocação que, se fosse burlado, punia-se o faltoso com a morte.
No Brasil, depois de criadas as províncias e suas forças policiais militarizadas, que hoje chamamos Polícias Militares, o recrutamento era feito “a pau e corda” e a deserção dos “recrutados” resultava penas pesadíssimas. Em caso de convocação para a guerra ou situação interna semelhante, a deserção era punida com o fuzilamento.
Nesse belicoso caldo de cultura proliferaram as regras militares, quase todas trazidas da França, que, entretanto, delas não possuía patente: são regras tão antigas que algumas remontam a eras anteriores ao calendário cristão. Na Arte da Guerra de Sun Tzu já encontramos generais decapitando esposas de imperadores somente por não levarem a sério um simples treinamento militar situado entre aqueles que Foucault denuncia como preparação de “corpos dóceis”, ou seja, o exercício sistemático de movimentos medidos e coletivos, de modo a tornar o ser pensante coisa a ser usada e descartada sem reação.
Não é difícil viajar ao passado para confirmar que o atual Estatuto da PMERJ foi copiado do seu equivalente do Exército Brasileiro no transcurso da II Grande Guerra (pode ter sido até antes, mas até 1946 eu conferi e garanto que são iguais até nas vírgulas). E, como muitos brasileiros não queriam ir à guerra, era do costume a alegação de doenças e outras artimanhas que as leis militares tinham de impedir a qualquer preço e mediante contrapartidas invencíveis. Esses grilhões disciplinares mantêm ainda hoje seus resíduos na legislação militar, especialmente no Estatuto, no Regulamento Disciplinar e nas leis penais militares.
Ressalvando que as Forças Armadas vêm aos poucos aprimorando seus dispositivos disciplinares, humanizando-os em alguns pontos, na verdade continua “tudo como dantes no quartel de Abrantes”: os tacanhos regulamentos disciplinares associados às leis penais militares representam um poder invencível nas mãos dos superiores hierárquicos. Acontece que no militarismo puro, exercitado pelas Forças Armadas, que ainda dispõem do serviço militar obrigatório e do sistema de conscritos, essas regras extremas são mui pouco ou nada utilizadas. E os brasileiros que engajam no militarismo federal e permanecem por tempo maior não enfrentam os dissabores das guerras, e, no máximo, são submetidos a treinamentos castrenses para manter a forma física e não esquecerem as regras básicas da disciplina consciente, que é saudável e não necessita de grilhões. Mas eles, os grilhões, estão lá, nas letras frias e remotíssimas das leis e dos regulamentos, em ameaça permanente. Ressalve-se, no entanto, que o modelo não é privilégio pátrio. É assim ou pior em derredor do planeta...
No início da sua criação, as guardas das províncias nacionais enfrentaram guerras e revoluções. Para tanto, eram aquarteladas e recebiam forte treinamento militar, demais de serem comandadas por oficiais do Exército que vinham muitas vezes trazendo seus estados-maiores para as forças públicas instaladas nas Províncias, depois tornadas Estados-membros da República. Enfim, as atuais Polícias Militares eram exclusivamente militares e forças auxiliares reservas do Exército Brasileiro, e eram aquarteladas tais como ainda são os infantes verdes-olivas. Mas foram os verdes-olivas, a partir de 1964, que lançaram às ruas e logradouros os militares estaduais, – treinados para ações de exército de linha e aquartelados como forças auxiliares, – para atuar como serviços policiais, fracionando-se a tropa que existia segundo o modelo rígido dos “corpos dóceis”, agora como “indivíduos policiais” obrigados a discernir sem a cabeça, eis que eliminada do corpo condicionado a agir sem pensar – ao modo pavloviano. Cá entre nós, não faz muito tempo a praça militar estadual não tinha direito ao voto e pedia permissão ao comandante para casar...
Ora bem, são esses militares estereotipados como policiais, ou são esses policiais estereotipados como militares, tanto faz, a ambiguidade transita num só continuum, que começaram a se reunir para reivindicar direitos como “cidadãos livres”, chefes de família, e ocupantes de profissão voluntária e permanente, porém submetidos aos mesmos regulamentos tacanhos daqueles tempos em que eram “caçados a pau e corda”. Regulamentos invencíveis, se utilizados ao pé da letra, e é o que agora se vê, para azar dos que insistem em reagir aos poderosos grilhões, mas com uma brutal diferença: são todos voluntários; não são mais “caçados a pau e corda”, são conscientes das regras que norteiam a vida castrense, e todos estão intimamente ligados ao juramento solene, perante a Bandeira Nacional, de defender a sociedade com o risco da própria vida.
Por outro lado, entretanto, sabemos que muitos se submetem a essas regras militares porque não há mobilidade social que lhes permitam buscar suas reais vocações no mundo civil. A necessidade faz o sapo pular e enfia muitos na farda a contragosto. Afinal, ela representa a aceitação individual da regra massificada do militarismo atualmente a serviço da sociedade na função policial, que é eminentemente civil, sem essa de militar, que é erro de origem. No início, as forças públicas provinciais eram pequenas colinas; hoje são montanhas interligadas pela mesma natureza, sendo certo que qualquer delas pode eclodir em fogo e lava sem aviso prévio. E contra as Leis da Mãe-Natureza de nada adiantam leis mal escritas por alguns de seus filhos...
Se no início o número de militares estaduais era pequeno, talvez alguns poucos milhares, hoje são 500.000 almas acolhidas pelas corporações dos Estados-membros. Se antes esse efetivo de militares estaduais era aquartelado e só morria em poucas guerras e revoluções, com a maioria envelhecendo sem dar um só tiro, hoje predomina em suas vidas o exercício da função policial num ambiente infestado de bandidos portando fuzis de última geração e sem pejo de apertar o gatilho ao deparar com militar estadual, mesmo de folga e à paisana, bastando para tanto ser identificado. Como se sabe, a situação não é tão romântica como no passado em emoção ao entoar de nossos nostálgicos hinos. Hoje o militar estadual morre de fato ou perde pedaços do corpo em alto grau de probabilidade no seu labor cotidiano.
Alguma coisa precisa mudar, o modelo precisa ser reestudado, o tratamento não pode ser o mesmo do passado, na base do “é contra a lei, prende e está resolvido!”. O Congresso Nacional precisa urgentemente legislar sobre a segurança pública para acabar com esses improvisos seculares que, ao fim e ao cabo, explodirão em desgraça total, com cada montanha (Estados-membros) lançando de volta toneladas de lavas como reação ao chumbo derretido e despejado sobre alguns afoitos manifestantes, de modo a servirem de exemplo ao todo em “castigo-espetáculo” semelhante ao de Damiens, exemplo retratado por Michel Foucault em seu clássico Vigiar e Punir. Ora, já passou o tempo de o “castigo-espetáculo” medievo, amparado em leis anacrônicas, dar resultado sempre a favor de quem o aplica. No fim de contas, nenhuma revolução social consegue se travar depois de explodir em lavas avassaladoras, nem por meio de boas leis, ainda mais considerando as de hoje, que não são boas: são irreais e péssimas. Mas o sofrimento do militar estadual brasileiro é real e inclui nesta triste realidade a sua sofrida família...


“Declaração Universal dos Direitos Humanos

(...)



Artigo 23°



1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.
3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social (...)



Artigo 25°



1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade (...)”

5 comentários:

Anônimo disse...

Como de costume,textos inteligentes e com profundidade característica de pessoa com alto grau de vivência: dá gosto ler e contextualizar com os dias em que vivemos, seja como cidadão ou cidadão-Policial.
Quisera o país com mais pessoas com essa clareza de raciocínio: talvez muita coisa fosse diferente.
Parabéns!

Anônimo disse...

ESPARTA VIVE
300
Prender administrativamente sim , submeter a CD,CRD,CJ,sim mas colocar em Bangu I,nnnnn~~ãaaaaaaooooo._E ilegal, imoral, antiético e de uma carga de burrice institucional enorme.Historicamente, quem abre mãos de suas prerrogativas pessoais é um fraco e quem abre mãos de prerrogativas institucionais, é um fraco criminoso e irresponsável de todo gênero.Sugiro que os responsaveis da PM e BM releiam um pouco este final de semana a essência e o desdobramento da Revolução Francesa,e meditem que, para a GUILHOTINA tanto faz se o pescocinho é de chico ou de francisco, QUANDO AS LEIS NÃO SÃO CUMPRIDAS E SE MANDAM ÀS FAVAS OS ESCRUPULOS,A ÉTICA, O ESPIRITO DE CORPO SADIO E A SALVADORA HONRA, então será apenas uma questão de tempo para que os pescoços algozes de hoje virem os pescoços decapitados de amanhã......

OBS Além da Revolução Francesa, basta fazer-se um rápido estudo de caso a respeito das 6(SEIS) inquietantes trocas de comando nas Instituições Militares Estaduais(Guilhotina, guilhotina,nunca tiveste tanto trabalho-Até ai tudo bem, MAS BANGU I, NNNNNNNN~~~~~~ÃAAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO0)


ANIBAL(aquele que não consegue embora tente, tirar o tubo....)

Reynoso Silva Cidadão Bombeiro... disse...

Por favor compartilhe!!! O Ten BM RODRIGO Jose Neves GROETARES esta desaparecido desde ontem a noite qndo saiu sozinho de uma festa na Est do Engenho em Bangu. O carro de propriedade dele (fox preto) foi encontrado pela família. Os familiares pedem ajuda. TEL PARA CONTATO: (21) 8883-0444; (21)9995-5589;
De: Fabricio Nishio Nishio

Paulo Xavier disse...

SPARTA 300 VIVE. Você tem razão, porém infelizmente, salvo raras exceções, o que se vê de uma maneira geral na nossa sociedade, e a PM faz parte dela, é omissão, desídia, casuísmo, prevalecendo aquele velho ditado : Farinha pouca meu pirão primeiro, e o resto que se dane.

Luiz Monnerat disse...

O anônimo Sparta 300 tocou na questão mais grave de todos os acontecimentos: o jogar no lixo as garantias e prerrogativas previstas para os militares. De fato, é imoral, é ilegal, é inconstitucional, é burrice supina, é idiotice política, e, é atentatória à DEMOCRACIA a atitude adotada para com TODOS os militares que foram conduzidos em prisão para Bangu I. Isto é o que se chama de final da picada... Para essa Cícero também clamaria primeiramente, em total espanto na sua Catilinária: "O tempora! O mores!", para depois, raivosamente: "Quousque tandem, Sergius Catilina, abutere patientia nostra?" ( Ó tempos! Ó costumes! Até quando, Sérgio Catilina, abusarás da nossa paciência? )Lúcio Sérgio Catilina foi um escroque romano que Cícero desancou no Senado Romano.