Não obstante o fato de ser o Comandante-Geral da PMERJ um homem justo e corajoso, e de ser a Corregedoria Interna formada por profissionais íntegros, a ação noticiada poderia ser comparada, nem tão forçadamente, ao Ministério Público denunciando e julgando em sua sede os crimes denunciados, indo para lá o juiz, em vez de cumprir cada qual sua finalidade com independência e senso de justiça.
O ideal seria existir na PMERJ Tribunais Disciplinares nos Comandos Intermediários, nos molde de uma Corte Marcial, compostos por Oficiais superiores aos acusados em PAD, com a Corregedoria Interna na função de acusadora, nos moldes do Ministério Público e Advogados de Defesa formando a outra parte, bem visível, com o julgamento ocorrendo em máxima publicidade, inclusive com o acesso da imprensa, dos familiares dos acusados e de cidadãos interessados.
Não me atenho ao fato em si que ocupa a preferência do repórter. Deixo claro, inclusive, que tenho cá minha opinião a respeito, mas não me compete julgar ato de ninguém, sou um mero oficial reformado. Preocupa-me, sim, o formato a desatender à função, o que me parece incongruente ante os ditames constitucionais e legais a exigir que o Juiz permaneça distante do Ministério Público e da Defesa, de modo a decidir com isenção. Mas o formato do Júri bem demonstra que a prática é outra, o Promotor de Justiça Público tem assento ao lado do Juiz, e o Advogado de Defesa às vezes nem assento tem, sendo obrigado muitas vezes a se sentar ao lado do réu. Não é como o sistema norte-americano que assistimos constantemente na telinha da tevê...
A matéria jornalística e o formato do julgamento nela anunciado, pondo o comandante-geral na incômoda posição de juiz e carrasco, assim abraçando a cultura inquisitorial como nos remotos tempos, inspira-me trazer à reflexão dos leitores um velho texto meu denominado “Julgamento”:
"A versão brasileira da organização formal do sistema de júri é um bom exemplo de como uma instituição democrática popular e igualitária transformou-se pela cultura jurídica numa instituição autocrática, hierárquica e elitista." (Roberto Kant de Lima)
O cenário do júri já montado, as personalidades em seus respectivos lugares: sete jurados, mui dignos representantes da formal sociedade, todos em tronos soberbos postados lateralmente ao juiz e ao promotor, estes, porém, entronizados no mais alto lugar do solene ambiente e ombreados em imponentes cadeiras, que, em estilo, remontam aos idos del-rei.
Na outra lateral está o advogado de defesa, quase que no nível do chão; e, por fim, o réu, figura central da solenidade, sentado em cadeira comum, no patamar mais baixo de todos e com os olhos cosidos no soalho, o queixo colado ao peito, mãos entrelaçadas em meio às pernas, os pulsos algemados, pés nus e calçados apenas com umas sandálias já deformadas pelo uso.
É assim que fica o réu, isolado em sua cadeira e diante do juiz, ele bem cá embaixo e o juiz e o promotor bem lá em cima, como se fossem ambos quatro mãos segurando um só martelo em posição de bater num insignificante prego. O réu, para variar, negro, pobre, roto, esfaimado, nada mais que um prego social.
Atrás, nas arquibancadas, vê-se a entusiástica platéia, como aquela dos tempos romanos das arenas e dos leões, uma platéia previamente selecionada, todas as pessoas recrutadas por algumas prestigiadas ONGs em razão do limitado espaço a ser ocupado. Mais acima, no privilegiado camarote, os repórteres voejando como aves de rapina sobre uma presa.
Pronto, estão todos superpostos e em posição de combate, com o réu reduzido a apenas um ponto negro e insignificante no centro da arena. É hora de começar o espetáculo! Que sejam soltos os leões! Ó respeitável público! Luzes, câmeras, ação!...
O juiz: Qualificado o réu, Manoel Pedro da Silva, negro, sem profissão, endereço incerto e não sabido. Lida a denúncia, ouvida a única testemunha, feito o relatório, tudo conforme a magnânima lei, dê-se início ao julgamento do famigerado réu pela acusação de tentativa de homicídio. Com a palavra a insigne acusação.
O promotor: Meritíssimo senhor doutor juiz, magnificentíssimos senhores jurados, lídimos representantes da sociedade, vox populi vox Dei!...
1º jurado (pensando): "Que eloquência! Que frontispício! Que citação de abertura! A voz do povo é a voz de Deus! Eu sou a sociedade, a voz do povo, a voz de Deus! Que homenagem bem posta! Esse garboso jovem deve ser de importante família de juristas, é certo que deve..."
O promotor: Estamos aqui, longânimes senhores jurados, neste sagrado espaço da Justiça, para vos sugerir a condenação deste contumaz criminoso, como um dever cívico de todos nós. Como lídimo representante do Estado e guardião das leis e da sociedade, peço-vos desde já a punição do réu à pena máxima pelo crime que ele cometeu, pois assim é que tout est bien quui finit bien...
2º jurado (pensando): "Que capacidade de síntese! Que erudição! Saiu do latim para o francês como quem passa de uma sala a outra! Tudo o que termina bem, está bem! Que inferência! Este belo rapaz deve ter estudado na Sorbone..."
O promotor: Magnificentíssimos senhores jurados, o Estado tem a certeza de que o réu é culpado. A vítima, uma nobre e indefesa senhora de oitenta anos, não teve qualquer dúvida em identificá-lo. É certo que a defesa apelará para a falsa idéia de que a vítima usa óculos de grau, que era noite fechada, que esquecera os seus óculos em casa, entre outras falácias e sofismas. Não acrediteis! Uma pessoa tão lúcida, tão inteligente, e de tão boa estirpe, como a senhora vítima, nunca se enganaria ou se prestaria a ser imprecisa. Também é certo que a defesa de Manoel Pedro da Silva apelará para a alegação de erro de pessoa, como já insinuou no processo. Apelará, é certo, para o in dubio pro reo... Um mero sofisma, pois certo é que in dubio pro societas. Por isso, não acrediteis nas lucubrações da defesa! Nós somos o Estado e a Sociedade unidos contra o mal que nos assola. Tenhamos, pois, o máximo de cautela contra esses argumentos de falsas dúvidas em favor do réu, que certamente virão...
3º jurado (Mulher nova - pensando): "Que elegância! Que terno alinhado! Que pão! Que bonitinho! Que cabelo bem arrumado! Será que ele tem namorada?..."
O promotor (alçando catedraticamente a mão esquerda, e assim brilhando o seu belíssimo anel de grau, presente do pai na formatura): Como vos estou a dizer, nobilíssimos jurados, a verdade, somente a verdade estamos aqui expondo. E ela é somente uma: o réu é culpado! E deve ser condenado! Não vos digo isto apenas em razão de gratia argumentandi, mas por certeza de sua culpabilidade. Credes, veneráveis membros da sociedade, horribile dictu é que o réu é o indiscutível autor do crime. Mas o dever do Estado é o de punir os criminosos, sine ira et studio. Assim o faço, desde que iniciei minha brilhante carreira, vitam impendere vero...
4º jurado (pensando): "Que irresistível intelectualidade! Que discurso! Que citações! Horrível de dizer, mas sem cólera, nem favor! Isto é que é consagrar a vida à verdade! Quem me dera ele fosse meu filho!"
O promotor: E mais vos digo, excelentíssimos senhores jurados. Aqui, a prova testemunhal, trazida pela ilustre vítima, e a firmeza desta não menos eminente testemunha em identificar o réu como criminoso, não permitirão à defesa a sofística arguição do to be or not to be: that is the question.
5º jurado (Mulher velha − pensando): "Que maravilhoso! Ser ou não ser, eis a questão! Que lindo! Que menino bem-apessoado! Quem dera que eu fosse a sua mãe! Que orgulho ela deve ter desse filho!"
O promotor: Vejais bem, veneráveis jurados. Que o criminoso atentou contra a vida da nobilíssima senhora vítima, não há dúvida. Mas a defesa vem alegando que ele não foi ele, que seria impossível sua identificação por parte da vítima, que negros no escuro se confundem... Assim, deste modo grosseiro, tenta a defesa, sem outro argumento mais consistente, desculpar o réu. E, pior, o réu não quer confessar que atentou contra a vítima e muito menos quem o mandou executar a terrível empreitada criminosa... Pois é certo que o homicídio foi encomendado. Também tentará a defesa, como já vem tentando, desmoralizar o testemunho do ilustríssimo doutor que acompanhava a vítima no momento do atentado, sob a singela alegação de que tão nobilíssimo cidadão não poderia identificar, com a precisão que o fez, o criminoso, por não enxergar bem. Sim, venerabilíssimos jurados, apelará a defesa para o testis unus, testis nullus. Mas estamos atentos a isso, e espero que os senhores e senhoras também o atenteis.
6º jurado (pensando): "Que rapaz ex professo! Este conhece a fundo a questão! Que capacidade de antecipação! É lógico que o testemunho é único, mas pesado a ouro de sapiência e de credibilidade... E que posturas e modos de se nos dirigir a palavra! Se me fosse permitido, eu o aplaudiria entusiástico e de pé!"
O promotor: Sim, magnificentíssimos senhores jurados. Culmino a minha acusação com a convicção de que o criminoso daqui não sairá impune. Estamos diante de um caso que nos permite declinar a máxima et crimine ab uno disce omnes. Por esse crime particular, pode-se imaginar que em outros crimes esse réu ainda poderá cometer! Deixamos claro o quis, quid, ubi quibus auxillis, cur, quomodo, quando. Não há mais que fazer, a não ser aguardar, sereno, que o réu receba o castigo que merece, em respeito à ilustre vítima, ao Estado e à Sociedade, esta que aqui está tão bem representada pelos nobilíssimos senhores jurados, eis que vox populi vox Dei.
7º jurado (pensando): "Que espetáculo à parte a acusação! Que citação probatória apropriada: quem, quê, onde, por que meios, por quê, como e quando... Duvido que o reles advogado tenha entendido tão solene latinização... e muito menos o réu... Duvido que o pobre-diabo do advogado de defesa do réu, aqui e hoje, consiga alguma coisa. E que elegância do promotor ao apontar o réu! Que gesto magnânimo! Se ele nada falasse... só em apontar o réu como culpado, da forma como o fez, para mim seria suficiente."
O juiz (cumprimentando efusivamente o promotor, agora retornando ao seu assento, ao lado do juiz, lá no alto): Que a defesa ocupe a tribuna e inicie a sua parte!
O advogado: Senhores jurados, serei breve. Estamos aqui para julgar um réu injustamente acusado. Quem está qualificado nos autos é Manoel Pedro da Silva, que na data dos fatos teria atentado contra a vida da vítima. Quero-lhes acrescentar apenas dois argumentos, simples argumentos, bem simples mesmo: o réu que aqui está sendo julgado não é Manoel Pedro da Silva. O seu nome verdadeiro, de registro oficial, em cartório, é Pedro Manoel da Silva. Também as digitais constantes na ficha referente a Manoel Pedro da Silva não conferem com a do réu. Em resumo: um não é o outro! E, para encerrar, juntei no processo a prova de que o réu estava na Bahia na data dos fatos. Portanto não poderia, nunca, estar aqui no Rio, e muito menos atentar contra a vida de ninguém! É só o que lhes tenho a dizer, além de discordar de tudo aquilo que o promotor eloquentemente salientou, que não corresponde à verdade dos autos e nem à realidade dos fatos. E lhes reafirmo: o réu é negro, e não poderia ser reconhecido, à noite e no mais completo breu, por duas pessoas idosas e que sabidamente enxergam mal. Mas nem precisava apelar para estes argumentos para defender o réu. Pois é certo que o criminoso não é ele!...
Os sete jurados (pensando em uníssono): "Que coitadinho! Que malsucedido na profissão! Com essa roupa puída e deselegante, − e com esse discurso sem vida e despido de intelectualidade, − que pretende esse advogado aqui? Isto é até uma afronta ao meu juiz e ao meu promotor! E que relógio incompatível! Como esse advogado teve a petulância de vir para cá com esse relógio de borracha no pulso? Que cabelo malcuidado! E nem barba fez! Será que tomou banho, pelo menos? Ah, que mau gosto!"
O juiz (sem dar a mínima para o advogado): Que os senhores jurados se retirem à sala secreta, para a votação!
(Pausa de meia hora, retorno dos jurados)
O juiz: Por decisão unânime dos soberanos jurados, o réu foi considerado culpado! Farei a leitura da sentença reprovadora de sua conduta criminosa. Ele deverá ser recolhido à cadeia pública.
Feita a leitura, recolhido o atônito réu, enquanto o promotor dá entrevista à imprensa, sorrindo, vitorioso. Os jurados, discretamente, se retiram para as suas residências, na Zona Sul, com a certeza do dever cumprido. Fecham-se os panos do cenário de mais um inocente, − negro, pobre e sem nome, − na cadeia, como nos velhos tempos... Abrem-se os panos dias depois, ao segundo ato. E nele surge um corpo caído ao chão, inanimado, o sangue escorrendo em torno dele. É a distinta senhora que acaba de ser assassinada pelo verdadeiro criminoso, este que veio consertar a falha anterior...
Um comentário:
O Pedro Manoel da Silva ainda teve direito a defesa. Quantos não foram expurgados da briosa sem ao menos poder contar com um advogado ou um Oficial da própria PM para defendê-lo? Como fica o psicológico de um chefe de família, na iminência de perder seu emprego, rodeado de algozes com os ombros repletos de estrelas e cujas fisionomias mais parece de lobos famintos prontos para devorar sua presa? Mesmo inocente, será que esse futuro ex-PM saberia se defender?
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