sábado, 15 de janeiro de 2011

Sobre a calamidade serrana

“A calamidade é ruim para o povo, mas boa para a sociedade.”
(Erich Fromm)



Fatalidade é ruir neste momento um prédio na Vieira Souto matando do porteiro ao morador da cobertura. Fatalidade é o extraordinário, o inesperado, o surpreendente... Na serrania fluminense não houve fatalidade. Não houve antecipação alguma. E a cada dia que passa aumenta o número de mortos em Friburgo, Teresópolis e Petrópolis (zonas urbana e rural) em virtude do fenômeno de sempre: desmatamento e ocupação irregular das encostas, que reclamaram soterrando centenas de pessoas, e assoreamento de rios em cujos leitos as irregulares moradias proliferaram a despeito de o Poder Público adrede saber que bastaria uma enxurrada para destruí-las. Os rios reclamaram, a enxurrada veio e pessoas morreram. Ou seja, muita previsibilidade, nenhuma fatalidade.
Nesta capacidade de prever não incluo as gentes ignaras que morreram sem melhor alternativa de moradia neste nosso país da imobilidade social. Não posso crer que pessoas desprezem suas vidas e vidas alheias (de crianças, principalmente) a não ser por desespero. Porque, ressalvados os casos de loucura, morar em casarios plantados em encostas íngremes ou em calhas de rios, − como se fossem arcas de Noé ou ninhos de pássaros-pretos − só pode ser estado de necessidade.
Soterramento de lares não se não se dá por fatalidade. É risco previsível, bastando um pouco de lucidez para evitá-lo, o que nos permite concluir que somente a absoluta privação mental induz alguém a se decidir por esse extremo risco para si e sua família. É neste ponto que se impõe a diligente e precursora ação do Poder Público para retirar essas gentes das áreas de risco, inclusive com o uso da força cujo monopólio é restrito ao Estado.
Devemos atentar, por outro lado, que o deslizamento de terra ocorre até mesmo em encostas florestadas e jamais tocadas pelo homem. Afinal, a natureza é dinâmica e o planeta está longe de sucumbir em inércia. Daí em muitas ocasiões vermos nesgas de floresta desbarrancando em montanhas sem interferência humana. O próprio peso das árvores ultrapassa o limite de contenção e a floresta naturalmente se desfaz até renascer das sementes que porventura permaneçam no ponto original ou venham trazidas pelo sopro de Éolo ou por pássaros; e a mãe-natureza reconstitui a floresta devassada. Agiria ela como um ser humano a cortar cabelos ou unhas para vê-los crescer novamente: tudo muito natural, nada de fatalidade.








Enfim, o desbarrancar das encostas, se ocorrem sem a ação humana, com esta fica patente que o fenômeno é provocado. Tal avaliação é cabível para quase todas as favelas do RJ plantadas em elevações feitas de muita pedra e pouca terra ou em baixadas irrigadas por rios e riachos assoreados, dois perigos assustadores no tempo das chuvas de verão. Mas a memória do povo carioca e fluminense se recusa a relembrar desastres idênticos ao longo das quatro últimas décadas. Tudo bem que o povo não lembre! O que não se pode é admitir deslembranças em se tratando do Poder Público cuja função-síntese é prestar segurança ao cidadão, ou seja, garantir sua integridade física e moral em vista de antivalores e riscos, o que a Doutrina designa como “segurança individual” e “segurança comunitária”.
Quando a doutrina da segurança pública deste modo se apresenta (garantia da ordem pública), não está se referindo ao campo restrito da atividade policial, mas a todas as atividades exclusivas do Estado nos seus três níveis de poder: União, Estados-membros e Municípios. Esse poder-dever intransferível não tem cumprido o seu papel para evitar desastres artificiais, embora se tenha tornado um eficiente “sistema caça-níqueis” que assola também calamitosamente as algibeiras do povo: multas de “pardais”, de “lei seca” e outras invenções destinadas a vigiar e punir os cidadãos a pretexto de que os estão “protegendo”. Mentira! Estão, sim, cerceando a liberdade individual por meio de proibições capazes de onerar os já exauridos recursos de um povo pagador dos impostos mais caros do mundo.
Essa dinheirama não pode ser aplicada sem burocracia na prevenção de desastres. Em festas, pode, a Lei de Licitação dispensa formalidades. Deste modo, para os políticos é mais salutar gastar em shows, todos ridentes em meio ao povo e sambando ao som de vozes famosas no alto de grandiosos palcos iluminados. Sabem os políticos que a culpa da calamidade pode ser transportada para trás e que podem fingir o chororô reclamando das críticas (“Não é hora de críticas!”, dizem em desfaçatez). É hora de quê?... De elogios?... De silêncio?...
E assim, “bonzinhos” e indignando-se com as críticas de suas descaradas omissões, tentam calar na marra a voz do povo. E ofertam o dinheiro difícil de ser alcançado, e apelam para a solidariedade popular tão fortemente que o povo se sente culpado e entra de corpo e alma ajudando neste momento agudo. E a oferta estatal para assentamento dos desabrigados, como no caso do Morro do Bumba, em Niterói, torna-se fade. E o povoléu miserável recomeça o plantio de barracos sobre os escombros anteriores, ignorando os mortos que naquelas profundezas de lama desbarrancada fixaram sua eternidade. E ali, neste mesmo lugar, os barracões de zinco esburacados afloram “salpicando de estrelas” o chão-túmulo-futuro. E o romantismo segue o seu curso até que um novo trovão se anuncie e a tempestade faça o seu trabalho trapeiro por ordem da Dona Morte.

3 comentários:

NEIDE disse...

NO FIM, TUDO NÃO PASSA DE NOTÍCIA PARA ESSE GOVERNO QUE NÃO SE SENSIBILISA COM A DOR DO SEU POVO. DEVERIAM SE ENVERGONHAR DE VER MORADORES DE TANTOSA OUTROS LUGARES SE MOVEREM EM PROL DE ALIMENTAR E PROVER O BÁSICO NECESSÁRIO PARA AQUELES QUE CONSEGUIRAM COM A AJUDA DE DEUS, POIS, É E SEMPRE SERÁ COM ELE QUE PODEM CONTAR, PARA QUE CONSIGAM SE REERGUER NESSE POUCO ESPAÇO QUE LHES SOBROU. E CONCORDO QUANDO É CITADO EM SEU TEXTO QUE AS MESMAS MORADIAS, SEM A AJUDA DO GOVERNO NÃO VEEM OUTRA ALTRENATIVA SENÃO LEVANTAR SEUS BARRACOS EM CIMA DOS ESCOMBROS QUE FICARAM SOBRE OS CORPOS JÁ TÃO DISTANTES DE TÃO TRISTE EPISÓDIO. ELES SÃO CULPADOS? NÃO! PORQUE O GOVERNO NÃO TOMA ATITUDES EMERGENCIAIS DEFINITIVAS, APENAS FLOREIA ATÉ QUE A MÍDIA ESQUEÇA E TODOS VOLTEM A SE CONCENTRAR NO TÃO ESPERADO "CARNAVAL". AH!!!! ESSE ESPETÁCULO TEM QUE ACONTECER E A VERBA APARECE RAPIDAMENTE COMO PASSE DE MÁGICA. NITERÓI QUE O DIGA.

Paulo Xavier disse...

Somos vários Brasis dentro de um só país. Temos um Brasil que exporta bons veículos para vários países do mundo. Temos outro Brasil que exporta avião e outro que é pioneiro em exploração de petróleo a quilômetros de profundidade em mar alto. Temos cientistas dos mais renomados, das mais diversas áreas, atuando dentro do nosso próprio país e outros tantos espalhados por esse mundo afora, pesquisando, ensinando e aprendendo.
Em contra partida, temos governantes que não conseguem minimizar uma tragédia como essa da Região Serrana, onde centenas de vidas foram ceifadas. São omissos e omissão pra mim é sinônimo de covardia.
Creio que caberia responsabilidade criminal para casos como este. Fôssemos um país sério, meia dúzia de políticos já estariam atrás das grades. Pra mim o nome dissso além de covardia, é crime!

Anônimo disse...

Caro amigo Larangeira

A música Súplica Cearense de Gordurinha e Nelinho imortalizada na interpretação de Luiz Gonzaga retrata uma realidade vivida pelo sofrido povo nordestino diante da inclemência da seca.
Falcão cantor do Rappa acrescentou na música alguns versos para deixar bem claro de quem é a culpa pelas mortes ocorridas nas cidades tanto no sertão do nordeste quanto nas cidades da serra do rio de janeiro.

“corrupto demais,
política demais,
tristeza demais.
O interesse tem demais!
Violência demais,
fome demais,
falta demais,
promessa demais,
Pobreza demais,
roubo demais,
povo sofre demais”.