As ações operacionais que deram origem às UPPs, embora não se constituam em novidade, a não ser pela denominação, representam uma profunda alteração na rotina do policiamento ostensivo: troca a exceção pela regra. A regra é fragmentar o efetivo e irradiar maximamente o policiamento preventivo/repressivo de polícia administrativa pela presença nas ruas do policial uniformizado, a pé, de moto, de bicicleta, a cavalo, em lanchas, helicópteros, ou embarcado em viaturas caracterizadas. A exceção seria a concentração eventual de meios materiais e humanos nos policiamento de áreas circunscritas (grandes shows, eventos desportivos, manifestações populares etc.).
Acontece que a regra preventiva, até então aplicada somente no asfalto, instituía um cruel isolamento das favelas, tornadas ilhas de pobreza e perigo cercadas de asfalto policiado por todos os lados. Além desse inaceitável fator de descaso social, ou em razão dele, o tráfico de drogas dominou esses territórios, tornando-os suas aparentemente inexpugnáveis “cidadelas”, motivo pelo qual a presença da polícia é sempre e invariavelmente repressiva, ficando o cidadão favelado sem direito à prevenção cotidiana que se vê no asfalto.
Essa conquista pelos facínoras se deu gradualmente, até que emergiu para toda a sociedade a dura realidade de que o Estado perdera o controle do crime nas comunidades carentes. Tudo começa com a deliberada omissão brizolista (proibição de incursões policiais repressivas em favelas, não sem certa lógica), permitindo a exploração da ideia contrária (ação/repressão) na campanha política seguinte: a gangorra. Sim, entrou em cena a gangorra da ação/omissão, dependendo do governante que assumisse os destinos do RJ, tendo os votos favelados crucial importância no resultado das eleições.
Quando o governante optava pela ação nas favelas, tome-lhes repressão em incursões descontroladas e violentas. Quando optava pela omissão, o poder dos bandidos crescia junto com a ganância, e os confrontos marginais igualmente infernizavam a vida dos favelados, piorando ainda mais quando a polícia interferia naquela guerra particular. Enfim, sempre a violência prevalecendo e os favelados que se danassem!...
Assim transcorreram os últimos 25 anos, no mais ou no menos, com a favela à mercê do terror dos bandidos nos tempos da omissão e à mercê da violência policial nos tempos da repressão sem endereço certo e sabido. Ou à mercê de ambas, concomitantemente... Com a polícia agindo em subjetiva suspeição e violentando os direitos de pessoas decentes por desconhecer os anônimos bandidos, agora fortalecidos em moldes paramilitares.
Os bandidos, – com homizio seguro em suas fortalezas embandeiradas por siglas criminosas, – fizeram desses lugares depósito de carros e motos roubados em quantidades absurdas, como se provou com a conquista e a ocupação do Complexo do Alemão. Demais disso, as favelas do Complexo do Alemão se transformaram em “atacadões” de entorpecentes e armas a serem distribuídos em consignação ou venda para outras favelas e pontos ocultos no asfalto. Enfim, emergiu no seu ápice a “CIDADE PARTIDA” denunciada pelo jornalista Zuenir Ventura (1997).
E em meio a esse caos social surgem do limbo das “mineiras” as “milícias” ocupando o poder em algumas favelas. O pretexto seria o de acabar com o tráfico, mas a intenção maior é a exploração de atividades ilegais lucrativas, o que o tráfico também já o fazia. Enfim, o império da anomia ignorado pelo Estado em descarada omissão, exceto quanto a jorrar no ambiente social milhares de ex-PMs (muitos apenas inadaptados à profissão policial), que, sem opção de vida e trabalho honesto (ser ex-PM é pior que ser ex-presidiário), engrossaram e engrossam o efetivo das “milícias”. E, como o PM sabe de antemão ser forte sua probabilidade de curta permanência na PMERJ, ele se solidariza com as “milícias” como alternativa futura de emprego informal, tudo, claro, evoluindo num só contexto anômalo e enraizado na tessitura social. Porque “milicianos” não passam de pés de chinelo, tais como os favelados e os marginais que ocupam as favelas, e tanto como eles próprios (PMs) são em sua maioria favelados, conforme provou em tese acadêmica o Coronel PM Lenine Freitas no seu Curso Superior de Polícia. Demais disso, há um enorme contingente humano favelado que atua no asfalto em atividades informais (comércio de alimentos e doces) e ilegais (venda de piratarias, flanelinhas); ou são simplesmente pedintes moradores de rua que não têm onde, quando nem o que comer. O nome disso não é apenas desordem pública, mas desordem social.
Não há como a sociedade pagadora de altos impostos conviver com tanta anomia. Não sei se a contracultura operacional das UPPs vencerá os tempos e será solução para tudo isso. Parece-me que não. No caso específico do Complexo do Alemão, a “UPP” terá efetivo maior que muitos batalhões sediados no asfalto. Portanto, tudo depende de muitas variáveis conjunturais e estruturais ainda inexistentes e fora da capacidade de absorção pela PMERJ. A corporação depende de investimento maciço e mudança das regras de ingresso para facilitar o aumento dos efetivos policiais, como, por exemplo, o aproveitamento de jovens já treinados em Forças Especiais das Forças Armadas, ensinando-lhes o labor policial. Não há outra de curto prazo, e esta medida simples não é nova. Parte da realidade de que as Polícias Militares são constitucionalmente “forças auxiliares reserva do Exército”.
Antigamente, era possível ao jovem até mesmo optar entre servir na PM ou no EB, num sistema de “praça reengajada” que se renovava à efetividade aos dez anos e alcançava a aposentadoria. Por que não reavivar a medida, exigindo-se dos voluntários a escolaridade de segundo grau? Afinal, se os militares estaduais, como os militares federais, são servidores públicos diferenciados, por que tratá-los como iguais e submetê-los a concurso público sem a consideração de que se trata de profissão de risco e que, por isso, deveria ser voluntária? Ora, concurso público para PM não passa de falácia. Seleciona jovens desempregados e sem qualquer vocação para a profissão policial. Não seria melhor recrutá-los e selecioná-los já testados no militarismo das Forças Armadas e na vocação (meio caminho andado), concomitantemente com o concurso externo para os que não tivessem treinamento militar especial? É tema do momento a reformulação das polícias estaduais a partir da desconstitucionalização da segurança pública. Que se comece flexibilizando a regra do concurso público para as Polícias Militares e as Guardas Municipais. Nem digo que o salário, nos dois casos, há de pelo menos ser decente...
Não que eu seja partidário da quantidade nem defensor desse anacrônico modelo militarizado de polícia. Apenas constato que o modelo é este no militarismo nacional (exército de conscritos e serviço militar obrigatório), ou seja, o privilégio da quantidade em detrimento de uma tropa profissionalizada e dotada de máxima tecnologia. Mas, que fazer? Se o modelo é quantitativo, que pelo menos o seja com um mínimo de qualidade. Afinal, é a nossa cruel realidade constitucional. É necessário mudar? Sim! Mas quando e como?... Afinal, as UPPs, ora aplaudidas pela sociedade, primam exatamente pelo efetivo quantitativamente concentrado e que por isso deve ser aumentado...
Essas perigosas ineficiência e ineficácia decorrentes do modelo quantitativo, entretanto, vão além. Alimentam a esperteza de instituições policiais civis, que pretendem ocupar o integralmente poder representado pela atividade policial, restringindo-a falaciosamente à obrigatoriedade da formação em Direito para Delegado de Polícia e de nível superior para cargos da tiragem. Ora, o curso de Direito, – nem curso superior algum, que até muitos PMs possuem em graus de mestrado e doutorado, – não se legitima como necessidade imperiosa ao exercício da atividade policial. Na verdade, é absolutamente desnecessário para o exercício do ciclo completo de polícia, que depende de treinamento de investigação criminal fundada em provas técnicas e científicas, e não se resume a floreios eloquentes e demais ilações gravadas em relatórios policiais.
Serve o conhecimento do Direito não mais que para sugerir a tipificação de algum fato criminoso apurado, indiciando os prováveis autores e culpados a serem judicialmente processados, o que somente ocorre após denúncia do Ministério Público (titular exclusivo da opinião sobre o delito), este que, por sinal, nem sempre concorda com a opinião anterior do Delegado de Polícia. Aliás, para o Ministério Público importa o fato comprovado para acionar o Direito em competência intransferível. Concluir uma investigação criminal, portanto, nada mais é que exercício de lógica para se chegar à certeza e à verdade de um fato, o que independe de conhecimento profundo do Direito. Depende mais de técnica investigativa e da coleta de provas técnicas e científicas fundamentando o Inquérito Policial. O resto é inútil solenidade do presidente do Inquérito Policial Civil, no caso o Delegado de Polícia; Já na PMERJ o Inquérito Policial Militar é presidido por Oficial Encarregado, que, por sinal, não necessita de formação de Direito para investigar e encaminhar o resultado à Justiça Militar, de onde imediatamente se despacha ao Ministério Público para a formulação de denúncia ou o arquivamento do IPM, se for a decisão do Juiz Auditor. O mesmo rito se dá com o Inquérito Policial Civil.
Ora, o que o Ministério Público necessita é do fato devidamente investigado e comprovado para opinar, com exclusiva competência, se haverá ou não a denúncia de contravenção ou crime. E depois depende do magistrado a decisão de aceitá-la ou não, cabendo contestação pelas partes envolvidas no verdadeiro mundo jurídico, este sim, dependente de Advogado de Defesa ou de Defensor Público (parte), de Promotor de Justiça (parte) e do Juiz de Direito, todos, porém, autônomos em suas funções jurisdicionais. Esses três personagens, sim, devem ser formados em Direito. O resto é puro corporativismo amante de peças inquisitoriais que vêm dos tempos do Santo Ofício e que insistem em permanecer como modelo ideal nos dias de hoje, embora a maioria dos inquéritos policiais civis e militares se finalize em carcomidas prateleiras como alimentação de traças...
Por derradeiro, lembro de ter afirmado em outro artigo que a situação do Complexo do Alemão demandaria a necessidade da decretação do Estado de Defesa, o que não houve. Esse atropelo à Constituição da República Federativa do Brasil pode resultar consequências legais no futuro. Porque a missão dos militares federais no Complexo do Alemão não foi e não é de treinamento em zona urbana, mas uma situação de fato de restauração da lei e da ordem, ou seja, uma situação de Defesa Interna. Deste modo, a ação dos militares federais não se ampara na Lei Maior nem nas demais leis referentes. Por sinal, numa entrevista do General Fernando Sandenberg ao Jornal O Globo, ele deixou clara a sua opinião, embora afirmando que preferia não opinar a respeito do que antes literalmente consignara: a necessidade de decretação do Estado de Defesa circunscrito ao Complexo do Alemão para legitimar a ação do Exército Brasileiro. Enfim, o Exército Brasileiro, por meio de sua tropa de elite, permanece no Complexo do Alemão contrariando inclusive a sua doutrina de emprego em combate, bastando para tanto consultar a Wikipédia:
“Emprego Operacional
A Brigada de Infantaria Paraquedista é uma das tropas de elite do Exército Brasileiro, preparada para saltar e operar atrás das linhas inimigas. Está preparada para atuar em no máximo 48 horas em qualquer parte do território nacional, seja em ambiente de selva, caatinga, montanha e pantanal, e permanecer sem apoio logístico por até 72 horas. Após o cumprimento da missão, entrega o território a outra unidade convencional para manter a posição conquistada; de acordo com a doutrina de treinamentos do Exército Brasileiro, geralmente uma unidade ou uma brigada de infantaria blindada fica encarregada de substituir a Brigada Paraquedista no terreno; após o repasse do território a outra unidade da Força Terrestre, a Brigada Paraquedista é lançada novamente atrás das linhas inimigas para abrir caminho as tropas aliadas.”
Um comentário:
Creio que nem mesmo o serviço de inteligência ou os alto escalões das nossas polícias civil e militar conheciam o poderio bélico e a enorme quantidade de drogas estocadas no Complexo do Alemão e por esse mesmo motivo essa operação obteve um sucesso maior que o esperado. As tropas de segurança desmoralizaram o inimigo, pondo-os pra correr,e isso trouxe a paz, resgatando a confiança entre os moradores. Agora, mais do que nunca, será preciso manter a ordem, com um relacionamento de respeito e auxílio mútuos. Se isso for feito, creio que a paz reinará por muito tempo naquela comunidade, onde o bem venceu o mal.
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