domingo, 26 de dezembro de 2010

Sobre a segurança pública no RJ


Crédito: http://aprendercomaexperiencia.blogspot.com/2009/11/estrutura-organizacional.html. Postado por Rafaela, 20 anos de idade, feminino. Local: Salto Grande - SP, Brasil


A revista Época, de 27/12/2010, que recebi em casa em 24/12/2010 (sou assinante e recomendo a leitura do exemplar), expõe dez artigos versando sobre os futuros dez anos nacionais. Sobre a Segurança (Perspectivas) escreve o professor Luiz Eduardo Soares, que a mais e mais se dedica ao assunto e se aproxima do seu cerne: a Carta Magna. Ela seria a nascente do caudaloso rio que inunda o ambiente social em descontrole, tanto que o professor indica no título do seu artigo: “A próxima década no campo da (in)segurança”1. Admite, portanto, ser a segurança uma situação relativa neste mundo feito de contrastes postos num continuum sem origem ou destino. O ponto ideal do continuum, não se sabe, sente-se. Pois devemos ter em mente que a sensação de segurança, estado psicológico ideal, é de difícil prática num ambiente de violentas incertezas e turbulências como o nosso. Deixando de lado o conteúdo total do artigo, não por desimportância, mas por interesse específico, reporto-me ao autor em parte de um parágrafo:


“(...) a alteração do artigo 144 da Constituição, transformando, assim, a arquitetura institucional da segurança pública, que priva a União de maiores responsabilidades, exclui os municípios e condena as polícias estaduais à reatividade, à rivalidade, à repetição inercial de velhos padrões ineficazes e ilegais, ao voluntarismo espasmódico e ao descontrole. O modelo policial com duas meias polícias, a Civil e a Militar, impede a gestão racional, legalista e eficiente.”


Eu expandiria um pouco mais e me encaminharia ao Título V da CRFB (“Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”), que me parece uma pirâmide (des)equilibrada pelo ápice: começa onde deveria terminar e termina onde deveria começar. Demais, ofende a Doutrina do Direito Administrativo pátrio e abalroa a própria Doutrina de Segurança Pública da Escola Superior de Guerra (ESG), que conceitua a Segurança Pública como somatório das Seguranças Individual e Comunitária. A mesma doutrina da ESG informa ser a Ordem “situação”, a Segurança “estado” e a Defesa “ato”2 (manual da ESG, 1989). Kurt Lewin, citado por Idalberto Chiavenato (2004)3 dizia que “nada é mais prático do que uma boa teoria.”. No caso em questão nem se trata de teoria, eis que está anulada pela Lei Maior.
Inspirado na “arquitetura institucional” indicada por Luiz Eduardo Soares (em outras palavras, ele sugere um novo desenho para alcançar novos objetivos segundo a máxima arquitetural de Louis Sullivan de que “o formato segue a função”4, ou, no dizer de Motta & Caravantes 5: “A estrutura deve ser a variável dependente, seguidora e facilitadora do desempenho organizacional.”), vejo como inadiável desatrelar a segurança pública da Carta Magna. Sim, urge a necessidade de se reescrever tudo a partir do Título V da CRFB, cujo imperativo é o da “defesa do estado e das Instituições democráticas”. Ora, são esses erros conceituais que locomovem as máquinas carregando o mesmo entulho autoritário que atualmente não interessa a nenhuma instituição que pretenda servir ao povo brasileiro num sistema democrático de fato e de direito.
Recebi hoje, 26/12/2010, um comentário do leitor Thiago Alexandre, já postado no meu blog, no qual ele me pede para falar da legalização do “bico” por decreto governamental, segundo anunciado na coluna do Ancelmo Gois. Não chego à posição radicalmente contrária ao “bico”, que pode ser lida no artigo do Filósofo Político e Antropólogo Luiz Eduardo Soares, foco desta reflexão. Tento questionar primeiramente a postura inconstitucional do governante do RJ quando se trata de privilegiar PMs de UPPs com gratificações que não passam de “bico” à luz do Art. 9º da Carta Estadual6:


Art. 9º - O Estado do Rio de Janeiro garantirá, através da lei e dos demais atos dos seus órgãos e agentes, a imediata e plena efetividade dos direitos e garantias individuais e coletivos, mencionados na Constituição da República, bem como de quaisquer outros decorrentes do regime e dos princípios que ela adota e daqueles constantes dos tratados internacionais firmados pela República Federativa do Brasil.
§ 1º - Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer particularidade ou condição.
§ 2º - O Estado e os Municípios estabelecerão sanções de natureza administrativa, econômica e financeira a quem incorrer em qualquer tipo de discriminação, independentemente das sanções criminais previstas em lei.
§ 3º - Serão proibidas as diferenças salariais para trabalho igual, assim como critérios de admissão e estabilidade profissional discriminatórios por quaisquer dos motivos previstos no § 1º e atendidas as qualificações das profissões estabelecidas em lei.
Art. 10 - As omissões do Poder Público na esfera administrativa, que tornem inviável o exercício dos direitos constitucionais, serão supridas, no prazo fixado em lei, sob pena de responsabilidade da autoridade competente, após requerimento do interessado, sem prejuízo da utilização do mandado de injunção, da ação de inconstitucionalidade e demais medidas judiciais.


Como se pode depreender, o descarado atropelamento da Carta Magna e da Carta Estadual vem de longe, e parte daqueles que deveriam defendê-la, e nada lhes acontece. Por outro lado, o sistema é diligente para punir. Na verdade, legalizar o “bico” é como treinar um cão em suas fases preliminares até torná-lo dócil (como os corpos dóceis de Foucault em Vigiar e Punir). A cada ordem cumprida, um prêmio em ração; a cada ordem descumprida ou mal entendida, uma chibatada. Enfim, lembra a escravidão e seus métodos: prêmio para a minoria e chibata para a maioria, cultura que o atual regime democrático nacional está longe de vencer, eis que praticado pelo próprio estado com maior vigor atualmente do que no período de trevas, mas que, em termos de cumprimento das leis (claro que muitas delas indecentes) havia mais zelo que hoje. O mais grave é que a “ração” sai dos cofres públicos federais, estaduais e municipais à revelia dos Tribunais de Contas, num sistema de compadrio que culmina ignorado pelo Ministério Público, único organismo capaz de questionar ilegalidades com o peso da sua independência. Daí, a cada aceitação de “bico”, que poderia ser designado como “pirataria oficial de salários”, a tropa da PMERJ aprofunda suas dissensões internas.
Esta assertiva é também válida para os oficiais, cujos “bicos” são hoje os cargos internos remunerados em comissão, embora sejam eles intrinsecamente vinculados aos postos e graduações e à missão. Tudo começou no primeiro governo Brizola, e essas benesses não mais pararam, sendo até batizadas de “cala-bocas”... Daí a baderna atual, o que me obriga ao extremo de sugerir a destruição desse modelo estrutural de polícia para acabar com seus privilégios. Pois, para cada privilégio instituído há uma discriminação tornada real e palpável, merecedora, portanto, da reprovação judicial. Penso, em conseqüência, que o Estado deveria pagar bem a todos os policiais. Na medida em que não o faz, sugere aos não aquinhoados pelos privilégios oficiais que se virem. Eis porque o governante do RJ tenta legalizar os “bicos” em tom generalizado: um perigo. Afinal, a segurança pública não pode ser objeto de acordos e convênios. Com o decreto, por exemplo, será possível a um prefeito qualquer contratar por empresas terceirizadas a quantidade de PMs que quiser e formar uma (es)quadrilha de seguranças armados e remunerados muito além do que eles percebem na PMERJ. Lembra os velhos tempos do “homem da capa preta” e seu séquito armado de metralhadoras, fuzis etc.
Eu poderia aqui exemplificar, mas é tão gritante o fenômeno em alguns municípios, mormente nos comandados pelo PT, que, no fim de contas, a minha denúncia emergirá em voo solo de perdiz e correrei o risco de esses PMs beneficiados com “ração” se voltarem contra mim, tais como os caçadores espreitam a perdiz depois de localizada por seus cães treinados, e... BUUUM!.. E não precisa muito para pôr os cães amestrados atrás das perdizes: basta ameaçá-los com a “chibata da perda do bico sem lhes aumentar a ração”...
A meu favor, todavia, há os que não são ovelhas nem cães amestrados: a maioria. São os “cães pastores”, que se alimentam da verdade e da vocação, e que protegem dos lobos as ovelhas e não caçam perdizes a mando de ninguém. Mas, por enquanto, as distraídas ovelhas pagam com sua carne os privilegiados cães caçadores de perdizes, estas, jamais comidas pelos cães, e que vão ao repasto dos caçadores. Estamos, na realidade, numa sociedade em que predomina a máxima de Trasímaco: “A justiça é o interesse do mais forte, ou seja, do governante.”

_________________________
1. SOARES, Luiz Eduardo – A próxima década no campo da (in)segurança – REVISTA ÉPOCA: A DÉCADA DO BRASIL – PERSPECTIVA – edição 658, 27 de dezembro de 2010, pp 92-93.
2. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA – Doutrina – Rio de Janeiro, 1989, PP 182-184.
3. CHIAVENATO, Idalberto – INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DA ADMINISTRAÇÃO – Elsevier Editora Ltda. – Rio de Janeiro, 2003.
4. SULLIVAN, Louis in CARTER, Cris, Stewart R. Clegg e Kornberger (tradução Raul Rubenich) – UM LIVRO BOM, PEQUENO E ACESSÍVEL SOBRE ESTRATÉGIA – Bookman – Porto Alegre – 2010.
5. MOTA, Paulo Roberto & CARAVANTES, Geraldo R. – PLANEJAMENTO ORGANIZACIONAL – FGV, Rio de Janeiro, 1979, p. 63.
6. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1989.

4 comentários:

Tiago Alexandre disse...

Caro Emir,
Excelente texto...
na minha opinião quando o governador toma tal atitude, ele deixa tranparecer duas situações acerca do que ele pensa sobre a segurança pública:
a) O sucateamento da polícia, bem como sua ineficiência no combate ao crime (este não necessariamente é verdade); veja que ele não discrimina o policial, o qual é reciclado em sua mão de obra, mas discrimina a estrutura salarial como parece em um primeiro momento, bem como a organização da instituição.
b) Que não há perspectiva de melhora na instituição, sendo dadas benesses relativas para uma parcela da comunidade policial militar. nessas horas penso nos inativos, bem como naqueles que tiveram mebros amputados/perdidos no exercício dessa valorosa profissão. Como é que se faz bico Emir, com apenas um olho? ou sem uma das pernas? Que dirá sem as duas?

Tiago Alexandre disse...

continuando...
penso também na inércia do Exercito Brasileiro, órgão supostamente controlador das policias militares, diante de tal situação. Como agirá diante de tamanho ato inconstitucional do governador sobre um órgão que teoricamente está sob sua supervisão? Será que se calará mais uma vez?
grande abraço e desculpe me alongar muito...mas achei um tema deveras interessante, uma vez que um suposo benefício pode vir a ser a declaração de falência de uma instituição.
Tiago
Tiago

Emir disse...

Caro Thiago

Infelizmente, a PMERJ não se preserva com a mesma altivez de outras épocas em que o juramento de honra era um paradigma capaz de resistir às tentações do poder. Talvez a culpa seja da própria conjuntura que fragmentou instituições diferentes e depois as uniu abruptamente para formar a atual PMERJ. Houve a PMDF, que se tornou PMGB, que se somou à PMRJ e PMERJ: miscelânea a 4x1. No final dessas arrumações autoritárias, os valores corporativos, em especial os contidos no juramento de honra, deram lugar à subalternidade dos que se concentram no topo da corporação. Curvam-se aos detentores de um poder político nem sempre merecedor de um mínimo respeito. Merecem bem mais o repúdio corporativo. Mas o poder político, que se posta acima da Carta Magna, predomina como na charge que ilustra este texto. E a subalternidade para cima se inverte na arrogância para baixo até chegar à base da pirâmide como entulhos inservíveis à reciclagem. É como vejo a instituição PM: em processo entrópico. A cada dia mais me convenço disso. Que fazer? Veja os textos do professor Luiz Eduardo Soares. Dói-me constatar que em boa parte ele tem razão.
Abs

NEIDE disse...

AS VEZES ME PONHO A PERGUNTAR SE O GOVERNO SABE A DIFERENÇA ENTRE POLICIAIS E VEREADORES; ENTRE POLICIAIS E DEPUTADOS; ENTRE POLICIAIS E....PORQUE ME PARECE MUITO ESTRANHO O GOVERNO ACHAR NORMAL QUE UM VEREADOR, DEPUTADO, ENFIM UM DESSES GANHAREM MAIS DE 14 MIL REAIS SEM TER DE SOFRER UM ARRANHÃO, SEM SENTIR EM NENHUM MOMENTO SUA VIDA AMEAÇADA, SEM TER DE CUMPRIR HORAS E HORAS DE SERVIÇO DIÁRIO, SEM TER DE ESCONDER SEUS DOCUMENTOS DENTRO DE UM COLETIVO PARA QUE NÃO SEJA ASSASSINADO POR UM MARGINAL....AH!ESQUECI! ESSES MAIORAIS AJUDAM O NOSSO GOVERNADOR, O NOSSO PREFEITO A MANTER A ORDEM PÚBLICA. UM ESFORÇO REALMENTE INENARRÁVEL. MESMO QUE OS NOSSOS POLICIAIS QUISESSEM, NÃO ESTARIAM APTOS PARA "TANTO TRABALHO"! REALMENTE É MELHOR PERMITIR O "BICO" PARA QUE TODOS DURMAM MAIS TRANQUILOS E ASSIM, SIMPLESMENTE ASSIM RESOLVAM O PROBLEMA PORQUE OS POLICIAIS PODEM FAZER 12, 24, 36, 48H DE TRABALHO. JÁ OS NOSSOS POLÍTICOS CUMPREM UMA JORNADA DE 04, 06H DE TRABALHO ÁRDUO SEMANAL QUE EU CHEGO A ME PERGUNTAR COMO ELES AGUENTAM TANTO ESFORÇO. E É CLARO QUE AO FIM DE TODO ESSE STRESSE ELES TENHAM DE VIAJAR E FAZER USO DE TODAS AS REGALIAS QUE LHE COMPETEM DEVIDO AOS CARGOS EXERCIDOS, SEM FALAR NA APOSENTADORIA DEPOIS DE LONGOS 8 ANOS DE MANDATO. QUANTA CRUELDADE PARA COM ELES. VIDA BOA A DOS POLICIAIS, NÃO ACHAM?