Desde que o mundo é mundo o Homem faz da guerra um meio de conquista de territórios alheios, e os atacados se defendem, e vice-versa. Enfim, os confrontos entre grupos humanos existem desde os primevos do planeta, com cada grupo tentando suplantar pela força o oponente para ocupar os mais seguros espaços de sobrevivência. Locais com abundância de alimento e água sempre lideraram a lista de prioridades, vindo a seguir a topografia ideal à defesa contra as intempéries, as feras e os inimigos. Os melhores lugares, claro, sempre foram conquistados pelos mais fortes. Os fracos, por sua vez, ou fugiam para lugares inóspitos e sucumbiam ante as adversidades, ou se tornavam escravos submetidos ao jugo do vencedor.
Reações dos vencidos aconteciam, sim, algumas até bem-sucedidas, desestabilizando reinos e cidadelas que se impunham em tirania extremada. Porém, a maioria dessas reações culminava na dizimação dos recalcitrantes, e a vida continuava com poucos mandando em muitos, geralmente pela crença em “dons divinos” mui bem elaborados por pessoas aparentemente dotadas de superpoderes e capazes de se comunicar com o mundo invisível. Sim, o sobrenatural era mais temível que ferozes animais ou cruéis guerreiros.
Nesta leva de supranaturais se incluíam os oráculos, os adivinhos, até que esses supostos elos físicos com os metafísicos se transformaram em instituições clericais poderosas. Seus membros, crendo piamente nos seus poderes, não só morriam por eles como também ungiam monarquias, impérios e dinastias e pairavam acima dos homens comuns transformados em “ovelhas”. Essas instituições religiosas se legitimaram a ponto de se impor pelas guerras de conquista e pela ocupação de territórios, sob o pretexto de combater hereges ou domesticar gentios de todas as espécies e em quaisquer recantos do mundo. Essas matanças, mesmo as destinadas à “salvação das almas”, se poderiam resumir numa palavra: TERROR.
Ao longo dos séculos e até hoje o TERROR predomina, – fundamentado no sectarismo religioso, – como forma de atingir fins de dominação. A cobiça também produziu colonizações a ferro e fogo, fomentou a escravidão, com os povos belicamente organizados destruindo civilizações que até então viviam isoladas e em paz. De todas essas aves de rapina que se marcaram na História da Humanidade, sem demérito das outras, destacaram-se a França, a Inglaterra, a Holanda, a Espanha, Portugal, e, em períodos mais recentes, a Alemanha nazista. E por aí ocorreram as “guerras quentes”, as “guerras frias”, as revoluções, as guerrilhas intermináveis, o terrorismo surpreendente e muitas outras matanças; e, em meio a tanta desgraça capitaneada por seres “humanos”, sobreleva hodiernamente a degradação da sociedade mundial em consequência do comércio transnacional de drogas, garantido por uma demanda que aumenta na proporção do crescimento populacional. O tráfico se assemelha, sem exagero, a qualquer modalidade de TERROR.
O consumo de entorpecentes instituiu na tessitura social mundial uma espantosa pandemia. Pior é que não se cura com vacina nem com isolamento dos afetados. Trata-se de um mal generalizado, que atinge indistintamente a todos sem distinção de sexo ou idade. Também não se situa preferencialmente em nenhuma classe social, alcançando o miserável e o ricaço. E, se não bastasse a expansão do fenômeno criminoso, emergem como consequência direta ou indireta do binômio “uso-tráfico” (não há como separá-los à força) os crimes de fraude e sangue. Porque a droga precisa ser produzida e circular para atender ao seu consumo desenfreado por viciados nos quatro cantos do mundo.
O tráfico e o uso de drogas como doença coletiva lembram a Peste Negra que assolou a Europa no século XIV, matando milhões de pessoas. Numa analogia grosseira, poderíamos aqui comparar traficantes aos Rattus rattus com suas pulgas (Xenopsylla cheopis) a picar os usuários e contaminá-los com a letal bactéria (Yersinia pestis). Nada demais, portanto, alguns Rattus rattus do Complexo do Alemão fugirem pela rede de esgoto, um de seus prediletos habitat... Eis como o ciclo calamitoso se completa e expande no Brasil e mundo afora, e até os dias de hoje nenhum país, desenvolvido ou paupérrimo, conseguiu vencer a pandemia das drogas. Nem nos regimes totalitários, que condenam o crime de tráfico com a morte e aplicam em viciados penalidades igualmente pesadas, o tráfico e o vício cederam. Juntos, como irmãos siameses, o vício e o tráfico avançam: destroem física e moralmente as pessoas; danificam relacionamentos familiares; induzem usuários à prática de desatinos; fomentam a delinquência juvenil e o contrabando de armas; e acirram as carnificinas, como atualmente se vê no México, e, ressalvadas poucas diferenças, vê-se também no Brasil.
E finalmente chegamos ao Rio de Janeiro, Estado Federado, que, por acumular como ervas daninhas suas desgraças históricas desde os períodos coloniais, apresenta-se como ápice do problema nacional desde muito ignorado pela União. A começar pelo desordenamento social consequente da migração de nortistas e nordestinos, somando-se essa população de excluídos aos remanescentes da escravatura. São pessoas sem mobilidade social apinhadas em favelas, condição subumana de moradia que passa ao largo das preocupações governamentais. Trata-se de fenômeno social danoso, jamais assumido e seriamente enfrentado por qualquer governante estadual ou municipal, e especialmente ignorado pela União.
Assusta-me, pois, deparar com a surpreendente declaração do futuro ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso (Jornal O Globo, 2ª Ed., 4 de dezembro de 2010, pág. 14, O PAÍS), no sentido de que “embora a segurança pública seja uma tarefa dos estados, o governo federal tem um papel a cumprir na articulação com os estados e os municípios na fiscalização das fronteiras e no aprimoramento da nossa inteligência.” Ora, existe uma desordem pública nacional e a insegurança não é fator isolado. É nacional! Estamos ante um poderoso sistema criminoso com ramificações internacionais afetando o mundo e o Brasil. O que acontece nos Estados Federados e nos Municípios é pura consequência do todo, que é inegavelmente globalístico, ou seja, é maior que a soma das partes. Portando, o reducionismo assumido pelo futuro ministro da Justiça é simplesmente ininteligível e inaceitável. Porque a Carta Magna prescreve que a segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”. Eis seu Art. 144:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (...)
§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Ora, a questão da Segurança Pública Nacional não é problema de “governo”, é de “Estado”, no sentido amplo do vocábulo constitucionalizado, ou seja, do Estado Brasileiro como somatório de seus Estados-membros e Municípios que materializam a União, a quem cabe o dever maior com a garantia da Ordem Pública. Que me desculpe o futuro ministro!... Ademais, a segurança pública é ainda “responsabilidade de todos”. E, claro, a fala do futuro ministro não se insere nesta parte, a não ser ele se vendo como cidadão comum a quem a Carta Magna generalizadamente atribui a “responsabilidade”. Sabia e sabe o legislador constituinte pátrio que a segurança pública envolve situações cotidianas que se resolvem naturalmente dentro do lar, da escola, da igreja, dos clubes de lazer e em outros segmentos de convívio social em que um mesmo cidadão desempenha variados papéis. Esta convivência social, segundo os ensinamentos doutrinários do Direito Administrativo da Ordem Pública, deve ser “harmoniosa e pacífica, fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade”, conforme nos ensina o Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto ao conceituar a Ordem Pública como “objeto da segurança pública”, ainda acrescentando que “os princípios éticos abrangem as leis, a moral e os costumes”.
Por conseguinte, não é o “governo” que responde pela segurança pública, mas o Estado Brasileiro e toda a sua estrutura, cultura que, por sinal, avançou deveras durante os últimos oito anos e tende a melhorar, porque, como grafei (apenas minha opinião), existe uma pandemia instalada no mundo contemporâneo: o tráfico e o uso de drogas. Como resolver tal situação, confesso que não sei. Apenas consigno que a segurança pública seria um problema de “governo” se estivéssemos vivenciando algum regime de exceção. Não é o caso, como podemos afirmar, ainda mais depois daquela animadora união das forças estatais civis e militares do Estado Brasileiro no Complexo do Alemão. É óbvio que a ação não eliminará o tráfico nem mesmo ali nem onde instalaram as UPPs. Mas sepulta a lógica desmoralizante de que o Poder Marginal é mais poderoso do que o Poder Público. Depois da histórica ação operativa conjunta no Complexo do Alemão, provado está que o Estado Brasileiro é mais forte e pode pelo menos controlar, em níveis toleráveis, a criminalidade do tráfico e seus efeitos colaterais, que, como os da Peste Negra, são muitos e nefastos à Ordem Pública Nacional, da qual a Ordem Pública nos Estados Federados e seus Municípios são partes unas e indivisíveis, e assim devem ser para combater a pandemia trazida pelos Rattus rattus...
Um comentário:
Caro amigo Larangeira,
Fico muito feliz de ler o artigo postado no seu blog e parece que estamos falando a mesma linguagem, pois afinal de contas militamos na mesma corporação por mais de trinta anos.
Sem ler o seu artigo veja o que postei hoje a tarde na carta dos leitores do jornal O Globo.
CARTA AO FUTURO MINISTRO DA JUSTIÇA
Atenção sociedade brasileira para as declarações do futuro ministro da justiça do governo Dilma Roussef José Eduardo Cardozo que disse que Segurança Pública não é da competência da união mas sim dos estados federados.
Ao afirmar tamanho descalabro o futuro ministro demonstra desconhecer totalmente o “mandamus” constitucional no que se refere a Segurança Pública. Para início de conversa caro futuro ministro o artigo 21 da carta política da nação defere à união algumas competências que como vossa senhoria desconhece vou passar a enumerar:
Inciso XIV- organizar e manter a polícia federal, a polícia rodoviária federal, bem como a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal e territórios.
Inciso XXII- executar os serviços de polícia marítima aérea e de fronteira.
Além disso senhor futuro ministro, segundo prescreve o artigo 22 da mesma carta, compete privativamente a união legislar sobre:
Inciso XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares
Inciso XXII - competência da polícia federal e das polícias rodoviárias e ferroviária federal.
Ademais senhor futuro ministro o Capítulo III da Constituição que trata de Segurança Pública, no artigo 144 diz que a mesma é dever do Estado brasileiro e não tão somente da suas entidades federadas(estados membros e municípios).
E para encerrar senhor futuro primeiro ministro, o artigo 144, § 1º, determina no seu inciso II, que à Polícia FederaL compete prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência.
No inciso III atribui ao principal órgão da sua pasta o exercício de polícia aérea, marítima e de fronteiras.
Como nós todos sabemos o pano de fundo da macro criminalidade no Brasil é exatamente o tráfico de drogas e o contrabando de armas, com reflexos diretos nos estados que não atuam nas causas e nem no atacado (entrada de drogas e armas pelas fronteiras abertas do país) mas atuam e sofrem suas conseqüências no varejo, com o banho de sangue nas ruas das cidades mais afetadas como Rio de Janeiro e São Paulo.
Portanto senhor futuro primeiro ministro faça uma auto crítica e veja se possui mesmo competência e conhecimento técnico profissional para assumir uma pasta das mais importantes no que se refere ao maior flagelo que assola a sociedade brasileira NASA últimas décadas, exatamente pela omissão histórica de políticos despreparados: o crime, a criminalidade e a violência.
Saudações
Paulo Fontes
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