No caso do renomado estudioso, quando ele critica a polícia, mais particularmente a PMERJ, para mim funciona como ouvir um vascaíno mangar das cores rubro-negras. Mas, cá pra nós, em meio a muita desrazão e algum desconhecimento da nossa cultura intramuros (no fim de contas, ele não tem a vivência do PM), na maioria das vezes em que ele aborda o tema lhe escudam sobejas razões e vasto conhecimento de causa...
Daí, – e dando o meu braço à torcedura máxima, – não resisti e capturei do blog do Coronel PM Josias Quintal um texto do estudioso pela simples razão de que o considerei lapidar. Não apenas este: guardo outros e outros, que estou estudando, sobre os quais gravarei posteriormente minha opinião. Assim o farei para que os leitores reflitam sobre as muitas alternativas que traçarão o futuro desenho da segurança pública brasileira, cujo modelo, – como eu venho admitindo há anos, – é anacrônico e antidemocrático, a começar por seu ultrapassado título constitucional (“Título V – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”). Não é questão somente de reformar a polícia brasileira...
Boa parte do que defendo está excelentemente grafado pelo supracitado antropólogo e cientista político, o que me obriga a tornar pública minha mea culpa em prol da causa de uma Polícia Militar verdadeiramente cidadã. Não significa, porém, que eu vá sempre concordar com ele em outras ocasiões e não mais me irritar com algumas caneladas que receberei nas suas entrelinhas que não são a mim endereçadas, mas culmino absorvendo-as. Pois ele joga duro com o tema, e eu também, embora nesse caso, em aceitando o irretocável argumento dele, não me envergonha dizer que tenho cá minhas reações corporativistas. Ora bem, vamos embarcar no primeiro “trem-bala” do Professor Luiz Eduardo Soares, com cinto de segurança para me firmar nas curvas dos nossos contrastes e consensos... Mas, que seria do mundo se não houvesse a dialética?...
A força policial é a única das instituições nacionais que não foi reformada após o fim da ditadura.
A sociedade brasileira cumpriu uma trajetória histórica, que custou o sacrifício de muitas vidas: transitou da ditadura para a democracia, adaptando, através da promulgação da Constituição cidadã, em 1988, as instituições nacionais ao novo contexto, marcado pelo respeito às liberdades individuais e aos direitos civis. Esse enorme esforço coletivo envolveu o investimento na redefinição das metas, dos métodos e dos valores de nossas principais organizações. Por mais paradoxal que seja, uma instituição foi esquecida nas trevas do passado autoritário: a polícia. Conservadores, liberais e progressistas debateram o destino de cada órgão público e disputaram a liderança de cada processo de reforma. Entretanto, não apresentaram à opinião pública projetos que adequassem a polícia à democracia. Afinal, o que seria a polícia do estado de direito democrático?
Essa omissão histórica condenou a polícia à reprodução inercial de seus hábitos atávicos: a violência arbitrária contra pobres e negros, a tortura, a chantagem, a extorsão, a humilhação cotidiana e a ineficiência no combate ao crime, sobretudo quando os criminosos vestem colarinho branco. Claro que há e sempre houve milhares de policiais honestos, corretos, dignos, que tratam todos os cidadãos com respeito.
Mas as instituições policiais, com raras exceções regionais, continuam a funcionar como se estivéssemos em uma ditadura ou vivêssemos sob um regime de apartheid social. A finalidade era construir uma espécie de cinturão sanitário em torno das áreas pobres das regiões metropolitanas, em benefício da segurança das elites.
Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que o esquecimento da polícia, no momento da repactuação democrática, em certa medida, acabou sendo funcional para a perpetuação do modelo de dominação social defendido pelos setores mais conservadores. Ou seja, essa negligência talvez tenha sido mais um golpe de esperteza do que uma indiferença política. Mas o fato é que a polícia permanece prisioneira dos anos de chumbo e organizada para defender o Estado e não os cidadãos, o que ocorreria se as leis fossem respeitadas pelas instituições que as aplicam.
A conseqüência da ausência de projetos de reforma é tudo isso que conhecemos: degradação institucional da polícia e corrosão de sua credibilidade, ineficiência investigativa e preventiva, ligações perigosas com o crime organizado e desrespeito sistemático aos direitos humanos. Ou seja, a polícia, abandonada pelo processo da transição democrática, retorna do passado sombrio como um espectro a nos assombrar. A dinâmica é parecida com o mecanismo individual da neurose: aquilo que reprimimos e procuramos esquecer porque não conseguimos elaborar e integrar à vida interior e às nossas emoções retorna com a força da energia recalcada e perturba nosso equilíbrio, subvertendo nossa felicidade.
É preciso salvar a polícia do passado, torná-la contemporânea do presente democrático e reinventá-la para o novo contexto político. É necessário tirá-la do armário em que guardamos os fantasmas históricos. Libertar a polícia do passado implica inverter sua identidade e seus fins institucionais: ela existe para garantir as liberdades e os direitos, consagrados nas leis, inscritas na Constituição democrática. Ela só pode fazer cumprir as leis se as cumprir. Para que essa virada profunda aconteça, a PM terá de cortar seu cordão umbilical com o Exército, adaptar seu regimento disciplinar medieval ao nosso século e atribuir prioridade ao trabalho comunitário e à prevenção, via diagnóstico dos problemas e planejamento estratégico.
A Polícia Civil terá de ser inteligente, amparada por uma perícia autônoma e tecnologicamente sofisticada. A confiança da sociedade terá de ser reconquistada e o controle da corrupção será o grande alvo do governo. Os salários dos policiais terão de respeitar a importância de sua atividade, viabilizando o cumprimento da lei que proíbe o trabalho na segurança privada. Finalmente, a própria divisão entre as instituições policiais deverá ser suprimida. Poderá haver uma, duas ou muitas polícias (o que será possível com a desconstitucionalização da matéria). O problema não está no número. Os Estados Unidos têm 19 000 departamentos de polícia. O problema está no fracionamento do ciclo do trabalho policial. É necessário que todas as polícias cumpram o ciclo completo, que envolve as tarefas ostensivo-preventivas e investigativas.
* LUIZ EDUARDO SOARES é antropólogo e cientista político, ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do governo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelo programa de segurança pública da Prefeitura de Porto Alegre e membro da coordenação que elaborou o Plano Nacional de Segurança do Instituto Cidadania.
Um comentário:
GOSTEI DO TEXTO MUITO BEM ELABORADO, PRINCIPALMENTE NO QUE TANGE A REMUNERAÇÃO DOS NOSSOS POLICIAIS. BEM LEMBRADO, NOS ESTADOS UNIDOS EXISTEM + OU - 19.000 DEPARTAMENTOS DE POLÍCIA MAS DEVEMOS LEVAR EM CONTA QUE LÁ AS LEIS SÃO BEM MAIS RÍGIDAS E FUNCIONAM. LÁ, UM "MENOR" QUE PUXA O GATILHO PARA MATAR UM POLICIAL OU UM PAI DE FAMÍLIA, VAI PRESO COMO QUALQUER ADULTO. LÁ, SE ESSE MESMO MENOR TEM CAPACIDADE PARA VOTAR, TAMBÉM TEM CAPACIDADE PARA RESPONDER JUDICIALMENTE PELOS SEUS ATOS CRIMINAIS, O QUE INFELIZMENTE NÃO ACONTECE AQUI. ENTÃO ANTES DE NOS COMPARAR COM OS ESTADOS UNIDOS, O GOVERNO DEVE IGUALAR O SALÁRIO DAQUELE QUE SOBE O MORRO, QUE ENFRENTA O MARGINAL E MUITAS VEZES É LEVADO AO SOLO NO CUMPRIMENTO DO SEU DEVER. QUE PENA! COMO DIZIA EINSTEIN: "SE VOCE TIVER DE ESCOLHER ENTRE O MUNDO E O AMOR, ESCOLHA O AMOR, POIS, SE ESCOLHER O MUNDO, FICARÁ SEM AMOR, MAS SE ESCOLHER O AMOR,COM CERTEZA CONQUISTARÁ O MUNDO". E OS NOSSOS POLICIAIS, MUITAS VEZES TRABALHAM MAIS POR AMOR DO QUE PELO DINHEIRO QUE GANHAM.
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