terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Sobre a extinção das Polícias Militares III


















Em artigo sobre a extinção das Polícias Militares, já postado, fiz um comentário que merece reparo. Aleguei, como continuo alegando, que a profissão policial, seja civil, seja militar (não deveria ser militar), não carece da formação em Direito, vocação genérica que nem sempre se adapta ao exercício da atividade policial. Mas, por outro lado, devo reconhecer que há muitos Delegados de Polícia, claro que formados em Direito, vocacionados para o exercício da profissão policial e a exercem em alto nível de excelência. Atualmente, porém, com a multiplicidade de crimes a cobrar conhecimentos diversificados, como os financeiros, de informática e muitos outros que não guardam nenhuma relação direta com o mundo jurídico-policial, há uma exigência maior de especialidades periciais do que de sapiências jurídicas. Cada vez mais as ciências naturais e matemáticas tornam-se imprescindíveis à elucidação de delitos complexos, não abraçando a ciência jurídico-policial tais conhecimentos. Implica, portanto, considerar a investigação científica como base para a confirmação do fato a ser ou não tipificado como criminoso, tarefa, ao fim e ao cabo, que compete exclusivamente ao Promotor de Justiça. Deste modo, indago: que diferença faz um Delegado de Polícia ser formado em outro curso de nível superior, se o rito formal é tão amarrado que qualquer pessoa de nível médio é capaz de executá-lo com a precisão de um relógio suíço? Até a inferência dos depoimentos são exercícios de Lógica. E a tomada de depoimentos, se realizada por leigo em assunto de natureza complexa envolvendo outras ciências, não atenderá aos seus objetivos de apuração dum fato criminoso complexo. Daí ser discutível a exigência da formação em Direito para o exercício de qualquer nível da atividade policial; muito menos é necessário reduzir esse poder inquisitorial ao Delegado de Polícia, vício brasileiro que não se observa em países avançados. Não significa que uma pessoa com formação em Direito não se destaque como excelente investigador criminal, que é o que um Delegado de Polícia deve ser e muitos são magníficos nesse labor. Mas imaginar sua atuação restrita aos autos frios de um Inquérito Policial por ele mandado instaurar e levado a termo por Escrivães de Polícia, muitos dos quais formados também em Direito, mas sem qualquer vocação para a atividade policial, é querer muito pouco para um Delegado de Polícia e para a atividade policial em geral. Unificar as polícias estaduais é uma necessidade; eliminar da atividade policial o tacanho militarismo é medida urgente; instituir um novo modelo estrutural de polícia voltado para a atual realidade social e política, não se discute. Mas de nada adiantará reformular a polícia sem cuidar do conjunto da obra, ou seja, do sistema de segurança pública como um todo globalizado nos três níveis de poder do Estado: União, Estados-membros e Municípios. Porque, se a polícia melhorar a ponto de gerar demanda para o falido sistema carcerário, este romperá como uma represa no seu nível máximo em dia de tempestade. Aliás, o sistema carcerário nacional desde muito tempo faliu em ineficiência e ineficácia em relação aos seus fins. Distribuir responsabilidades nesses três níveis de poder é providência inadiável. Trazer à lide os sistemas ministeriais e judiciais como subsistemas a serem listados juntamente com os subsistemas policial, carcerário, ainda inserindo no contexto as Guardas Municipais e outros organismos de fiscalização que se refletem na segurança pública como garantia da ordem pública, para, num contexto de SISTEMA, assim funcionarem, tudo sob o império das leis pátrias, muitas delas carcomidas pelo desuso ou pelo mau uso, é mais que urgente, é urgentíssimo.
Venho acompanhando atentamente o raciocínio de alguns estudiosos da segurança pública em debates televisivos e artigos versando sobre o assunto. Destaco em importância os cientistas sociais Roberto Kant de Lima, Elisabeth Sussekind, Luiz Eduardo Soares, Jorge da Silva e Michel Misse, dentre outros que, por mérito de isenção, deveriam estar aqui sublinhados. Pena, porém, que não sejam ouvidos mais atentamente, pois, no contexto de seus posicionamentos há uma saudável convergência e uma agradável isenção. Mas não é a regra. Infelizmente, há muitos cientistas sociais fragmentando o tema apenas com o intuito de atacar ou defender a soldo não sei de quê algumas posições corporativistas. Porém esses cinco, pelo que tenho ouvido e lido deles, ressalvadas algumas úteis divergências, colocam-se acima das paixões corporativistas e alcançam o tema no seu todo, evitando atacar as partes, mas criticando-as por serem estanques e interessadas no poder pelo poder e não no interesse maior da sociedade. Eles e ela, diferentemente das conspirações gravadas em PECs que tramitam no Congresso Nacional, buscam diagnosticar a parte sem esquecer o todo, impondo uma visão globalística na segurança pública que não se pode resumir numa apressada desconstrução da atual polícia para soerguer porcarias em seu lugar e eternizar poderes distanciados do interesse público. Não se discute a necessidade de forjar um novo modelo de segurança pública, que há de envolver concomitantemente os Municípios, os Estados Federados e a União. O que não se pode é aceitar passivamente os desvios constitucionais, como é o caso da Força Nacional de Segurança Pública (aberração inconstitucional), que não disse a que veio a não ser para abalroar o Estado Democrático de Direito. Ora, não se pode conceber uma democracia plena sem o império da legalidade, que é o limite de todo um povo constituído como nação. E a esta legalidade se devem submeter, principalmente, as instituições públicas detentoras do monopólio do uso da força por delegação da sociedade, esta sim, parte legítima e insubstituível do processo democrático para atualizar o sistema de leis.
Sabemos, por demais cansativamente, que a segurança pública é a garantia da ordem pública. Também sabemos à exaustão que a ordem pública é uma situação de paz e harmonia na convivência social que envolve fatores como salubridade, tranquilidade e estética, demais de fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade (as leis, a moral e os costumes), como nos ensinam Diogo de Figueiredo Moreira Neto e outros não menos renomados administrativistas pátrios e alienígenas. Ou seja, segurança pública não é labor exclusivo de polícia administrativa e de polícia judiciária. É muitíssimo mais... Daí o controle de ilegalidades passar por diversas fiscalizações do poder público desde o Município, com punições várias (multas e cassação de alvarás etc.), até se chegar à contravenção e ao crime assim tipificados e coibidos pela ação policial, ministerial e judicial, não necessariamente nesta ordem. Tudo que é permitido ou proibido deve estar claramente posto em leis, decretos, resoluções e outros instrumentos legais informadores do ato administrativo visando ao interesse coletivo, sem jamais ferir os preceitos constitucionais. O poder de Polícia informa ações fiscalizadoras municipais, estaduais e federais, permissivas ou proibitivas, e institui penalidades seguindo a lógica constitucional de que a segurança pública é “dever do Estado” no seu sentido mais abrangente. E quando prescreve que é também “responsabilidade de todos”, evidencia a Carta Magna que a participação da sociedade no processo de controle dos seus atos é fundamental numa democracia. Traduzindo esse princípio para o cidadão individualizado, – e se ele tem responsabilidade com a segurança pública, – ele deve interferir no sentido de que a segurança pública efetivamente atenda ao bem comum sem perturbar seus direitos e garantias individuais. Para tanto, basta que as leis sejam cumpridas e, por conseguinte, dinamicamente adequadas à realidade social decorrente dos anseios e valores vigentes numa sociedade democrática amparada no Bom Direito. Releva, pois, o papel dos doutrinadores pátrios do Direito Administrativo da Ordem Pública, bem como é indispensável que todos esses estudiosos das ciências sociais (antropólogos, sociólogos e outros intelectuais dedicados ao tema) formem com aqueles um sistema conceitual e físico para gerar as soluções esperadas pela sociedade. Caberá ao Estado e suas instituições, em especial ao Poder Legislativo, interferir com isenção e com projetos de boas leis, já que, por conta do “vício do cachimbo”, as instituições tendem a pressionar os políticos para a manutenção de seus anacrônicos modelos estruturais e suas avelhantadas tradições já a merecerem descanso no túmulo das coisas mortas que chamamos Museu... Essas instituições, sem exceção, com perfis autoritários, estão mais interessadas no poder pelo poder, e não no servir pelo servir.

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