domingo, 7 de novembro de 2010

Sobre o avanço das milícias




A excelente investigação jornalística sobre as "milícias", gravada no O Globo de hoje (RIO - p. 32), 07/11/2010, de autoria do competente jornalista Sérgio Ramalho, remete-me novamente ao assunto, sempre, é claro, discordando do uso do vocábulo “milícia” denotando prática de crime, o que atinge em cheio a honra dos milicianos no seu exato entendimento histórico, bastando citar o Aurelião, que, infelizmente, já embarcou na onda política do demérito ao histórico vocábulo tornado neologismo no RJ:

“milícia

[Do lat. militia.]
Substantivo feminino.
1. Vida ou disciplina militar.
2. Força militar de um país.
3. Qualquer corporação sujeita a organização e disciplina militares.
4. Congregação ou agrupamento militante:
milícia partidária;
milícia católica.
5. Bras. RJ Grupo paramilitar, formado ger. por policiais, bombeiros, etc., da ativa ou não, que ocupa região dominada pelo tráfico de drogas, expulsa de lá os traficantes, e passa a cobrar dos moradores por segurança e outros serviços, como gás, água, transporte, etc.:
“De acordo com o delegado .... o morador que não pagasse taxa de R$ 10,00 exigida pela milícia não recebia cartas endereçadas a ele, além de ser impedido de ter visitas e socorro médico em casa.” (Walesca Borges, em O Globo, 26.02.2008.) ~ V. milícias. [Cf. melícia.]

A milícia celeste. Rel. Os anjos; os bem-aventurados.”

Preocupa-me quando o deputado Marcelo Freixo defende a aprovação do “crime de milícia”, sinalizando certa má intenção com as corporações policiais militares, eis que ele atropela a semântica em favor de alguma ideologia embutida na sua preferência, esta que, aliás, não é da autoria dele, mas propagada pela própria mídia, o que não o isenta de responsabilidade, especialmente porque a Carta Magna fala em grupos paramilitares armados, o que o ilustre deputado conhece de sobejo. Mas ele, a exemplo do Aurelião, embarca na onda midiática como um surfista experimentado em se equilibrar na prancha mesmo em ondas haitianas...
Já, por outro lado, sobram bons fundamentos no argumento do deputado Freixo e vale o registro do desafio que ele faz a respeito da ação policial endereçada especificamente a esses grupos paramilitares formados principalmente por ex-PMs, ex-BMs, ex-PCs e ex-Agentes Penitenciários mesclados com policiais da ativa. Também vale registrar a útil afirmação do ex-PM do BOPE e antropólogo Paulo Storani: “(...) Se não houver uma mudança na atual política de combate aos grupos paramilitares, o quadro vai se agravar, principalmente nos bairros da Zona Norte do Rio.”
Eu diria mais: já se agravou nas circunvizinhanças da capital, mormente em iterói, São Gonçalo, Itaboraí e Maricá. Os grupos paramilitares estão, nesses locais, organizados e atuando no asfalto, acrescendo-se ao grave problema o fato de que muitas lideranças desses grupos estão nas entranhas dos quartéis e das delegacias policiais. E muito pior: muitos desses grupos estão cobrando "proteção" como o fazem ainda hoje as máfias norte-americana, chinesa, russa, japonesa etc. Atacam exatamente os que estão na informalidade vendendo bujões de gás, explorando o transporte alternativo e TVs a cabo (Gatonet), vendendo piratarias e outras atividades microeconômicas que se situam na monumental economia invisível que grassa como praga no país. Ou seja, quem deveria coibir as práticas ilícitas tiram proveito delas do mesmo modo que os grupos paramilitares instalados em favelas. É, portanto, a constatação da metástase de um tumor social de difícil senão impossível erradicação, porque não é improvável que o investigador do problema dele faça parte e venha se locupletando ostensivamente. Sim, não se ocultam. Mostram a cara, certos de que não haverá nenhuma repressão sistemática por iniciativa da maquinaria governamental.
O mapa do problema apresentado na matéria é aterrador. Mesmo assim, está longe de alcançar todos os meandros da cobrança de propinas fixas no asfalto, já institucionalizadas como a famigerada propina do jogo do bicho e das maquininhas e dos bingos clandestinos. Ah, é claro, das propinas ofertadas pelo tráfico e pelos grupos paramilitares, todas institucionalizadas em rotina semanal ou mensal.
A situação é grave. Os crimes de sangue e outros não menos violentos (roubo de carros) no asfalto aumentam consideravelmente e chegam às nossas portas. Tanto que, para saber que houve um assalto aqui, um furto ali, ou um roubo de carro acolá, não é preciso ler jornais. A notícia corre no nosso próprio habitat por meio das vítimas que conhecemos. Focar, portanto, o crime de “milícia” e do tráfico como problemas maiores pode não refletir a realidade atual do crime disseminado na tessitura social sem poupar quem quer que seja. Com efeito, reduzir as análises do crime ao tráfico de drogas e à atuação de "milícias" em favelas (como se ambos não existissem em larga escala no asfalto) é um perigo.
O fenômeno do crime é sociopolítico, mas eu indago se bastaria aprovar mais uma lei para “combater milícia” ou ampliar os tentáculos desta lei envolvendo outros órgãos não-policiais, como sugere o deputado estadual Marcelo Freixo, entrevistado na matéria em exame. Claro que o fenômeno necessita ser mais estudado, de modo que represente a realidade atual do ambiente social. Enfim, se não houver um estudo e a implantação de um novo modelo (nacional) de Segurança Pública, nela conceitualmente incluídas outras variáveis estruturais e conjunturais (Sistema carcerário, Ministério Público, Justiça Criminal, Leis penais e Processuais Penais, Estatuto do Menor e do Adolescente etc.), a sociedade organizada não chegará a lugar algum. Continuará, sim, vitimada por uma macrocriminalidade empresarial, sofisticada e a mais e mais sangrenta que atualmente domina o mundo, vencendo os países ocidentais mais avançados e ricos, todos apresentando volumosas apreensões de drogas e armas, e inúmeras prisões, que, na verdade, significam mera gota d’água no oceano criminoso que banha o planeta.

Eis o artigo postado faz tempo no meu site (http://www.emirlarangeira.com.br/)

Milícia 2

Problema ou solução?

A visão policialesca sobre as milícias que se proliferam nas favelas do Rio de Janeiro, expulsando traficantes e instituindo um novo modelo informal de poder a partir da formação de micro-poderes armados, tende ao fracasso. Ora, estamos ante um fenômeno social que de novo nada tem. Imaginar, portanto, que Estado e Poder se restringem a uma sinonímia intransponível, e que o monopólio do uso da força é exclusivo do Estado, é renegar a possibilidade de haver transformações sociais muitíssimo além. Basta citar as revoluções deflagradas contra os poderes
dominantes ao longo da História da Humanidade.
Com efeito, não é assunto novo. Foucault, em sua Microfísica do Poder, esclarece o assunto quando fala em “técnicas de dominação”, concluindo em apertada síntese que aqui se faz: “Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado, distinção que não parece, até então, ter sido muito relevante ou decisiva para suas análises”. Ainda diz sobre as “técnicas de dominação”: “Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.”
Buscando inspiração na frase contida no Manifesto Comunista (“Tudo o que era estável e sólido desmancha no ar”), o norte-americano Marshall Berman escreveu “A aventura da Modernidade”, intitulando-a: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Em texto apurado, e deveras complexo, a idéia do autor traduz a realidade da beleza de uma cidade ao lado do horror que nela se acumula sem que o Estado o consiga evitar, embora seja sua função-síntese garantir a segurança dos cidadãos produtivos e respeitadores das leis. Mas, paradoxalmente, ao lado de cada cidadão produtivo, ou
dentro dele próprio, em forma latente, está o malfeitor que um dia aflorará em incontido desejo de burlar as leis e as regras formais. Afinal, ninguém nasce malfeitor...
Vivemos numa sociedade cuja informalidade é assumida. Existe o câmbio paralelo em contraposição ao câmbio oficial; existe a aberrante pirataria; existem meios e modos de sonegação fiscal; existe um Estado que combate a contravenção e a pratica simultaneamente, como se fosse mero concorrente dos contraventores informais.
Enfim, negar a existência de micro-poderes informais numa sociedade é negar a própria existência do corpo social. As milícias, na verdade, são apenas mais um modelo informal de suprimento da falência absoluta do Estado em todos os seus espaços e tempos. Por isso, creio ser pura falácia a crítica midiática e o coral das autoridades públicas cantando que “combaterão as milícias”. Ora, nem os traficantes instalados como senhores feudais nas favelas o Estado conseguiu vencer, como então vencer as milícias, estas, formadas por membros efetivos da própria maquinaria estatal, ou por ela injustamente expurgados por serem combatentes de bandidos?
Quero estar vivo e com saúde para assistir a mais este fracasso estatal. Pois, se a maquinaria governamental retirar as milícias, retornará o tráfico com seu Poder Paralelo em pujança. Ou seja, será pior a emenda que o soneto.

Um comentário:

Paulo Xavier disse...

Foi no ano de 1981, ao efetuarmos a prisão de um perigoso traficante de drogas do Morro do Estado em Niterói quando eu era o comandante da guarnição do Patamo, comecei o seguinte diálogo com o bandido:
-Estamos há alguns meses atrás de você. Você não estava no morro?
-Estava sim, mas eu sinto o cheiro de polícia longe, e sei também quem joga duro e quem refresca.
-Como assim? perguntei dando uma de desentendido.
-Eu sei a escala de vocês e tem Patamo que não sobe aqui, nesse dia eu fico a vontade, disse ele.
O malandro foi devidamente autuado e soube que pegou uma pena suficiente para passar uns anos trancafiado.
Porque citei esse fato? O bandido só se cria em determinado local se não houver efetiva repressão à sua atividade ilícita, ou se essa repressão for frouxa. Porque as milícias conseguem estancar a ação de criminosos em uma comunidade e as forças legais do Estado nem sempre consegue esse êxito?
Tema complexo que requer reflexão. Talvez um PhD em segurança pública não consiga responder a essa e outras perguntas, mas um miliciano sabe.